Vá a(glomerar n)o teatro, mas não me chame! ou "Adeus Kabul, um dia a gente se vê!"
Intervenções em outros países funcionam? Alguém se sente bem dizendo que escolas não podem abrir, mas que botecos não podem fechar? Espera, não era para eu receber isso amanhã cedo?
Boa noite. Entregando aqui seu v(1), n(32) desta newsletter. Eu me adiantei porque haverá uma manutenção nos sistemas da Substack amanhã e eu sou macaco velho, né? Da época do DOS. Não caio nesta não, meu velho!
Hoje temos mais um texto sobre irracionalidade racional (e dissonância cognitiva), a queda de Kabul (Cabul), não necessariamente nesta ordem. Ah, e algumas observações aleatórias, como sempre.
Kabul, Kabum, Kabô - Triste o que vemos em Hong Kong e em Kabul1. Vale a pena lembrar sobre o que estamos lamentando. Estamos tristes porque há algo que nos incomoda quando alguém (independentemente de sua visão de mundo) tem suas liberdades de expressão, de trocas e de ir e vir suprimidas.
Mas há quem também esteja triste porque sua crença no poder de um transplante institucional encontrou uma evidência terrivelmente negativa. Países já foram remodelados conforme um processo complexo que envolve colonizações (desde muito tempo, não me refiro só às que estudamos na escola), ocupações etc.
Alguns juram ter a fórmula mágica para transformar uma Síria ou um Iraque numa democracia de fazer Tocqueville ressuscitar e escrever um novo livro. Infelizmente, a verdade é que sequer sabemos se uma fórmula que funcionou em um país, em dadas condições, terá sucesso em outro.
Eu imagino que quaisquer que sejam as respostas (pensando que há várias), elas necessariamente envolverão maior liberdade para as pessoas (inclusive, a econômica, já me desculpando com os que querem tomar vacina cubana após se mudarem para Havana).
Uma forma de se experimentar instituições novas sem invasões ou conflitos envolveria o que o pessoal chama de sandbox regulatório que, em sua versão mais ampla, é o que chamamos de Charter Cities2. Em outra oportunidade podemos voltar ao tema. Por enquanto, falemos de países que ocupam países.
Algumas intervenções de países em outros (geralmente após algum conflito) trazem consigo tentativas de se transplantar instituições. O caso específico em que os EUA intervêm em outros países (com ou sem motivos puramente humanitários), foi alvo de um ótimo livro lançado em 2019 com estudos de caso de Eli Berman e David Lake, o Proxy Wars: Suppressing Violence through Local Agents.
Note que não se trata de um livro sobre se países deveriam ou não intervir em outros. Trata-se de uma questão mais singela: dado que o governo dos EUA intervém em alguns países, o que nove estudos de caso podem nos ensinar sobre a qualidade destas intervenções? São intervenções de sucesso, ou seja, cumprem seus objetivos3? Como elas poderiam funcionar melhor? Trata-se de uma análise positiva, não normativa de intervenções de um país em outro.
O arcabouço (o tal framework) dos autores é o modelo do principal-agente temperado com a técnica das Narrativas Analíticas4. Mesmo reconhecendo que as conclusões que se podem extrair destes casos sejam (e são) limitadas, os autores têm alguns insights interessantes. Eis um trecho da conclusão.
First, proxy relationships work well in suppressing political violence when proxies are appropriately incentivized (six or seven of nine cases), but provide disappointing results when incentives are lacking, inconsistent, or absent (two or three of the nine). Second, the United States is surprisingly inconsistent in applying incentives, which accounts for both of the unambiguous disappointments (Yemen and Iraq). Third, the analytical narrative method seems to provide enough discipline to yield conclusions, at least in the fortunate cases where the qualitative data are consistently predicted by theory. [Berman & Lake (2019)]
Este parágrafo poderia te surpreender (será?) em 2019 mas, vendo a queda de Kabul, não creio que alguém tenha dúvidas sobre a dificuldade que o governo norte-americano tem em criar um sistema de incentivos eficiente para suas ocupações. Talvez um estudo sobre a antiga URSS chegasse à mesma conclusão.
Claro que meu (já pequeno) resumo foi injusto com o ótimo livro dos autores. A propósito, Eli Berman é também autor do ótimo Small Wars, Big Data, publicado em 2018. Aliás, este é outra leitura bem legal se você gosta desta conversa de big data, ciência de dados e afins. Ambos, infelizmente, não foram traduzidos para o português, o que nos diz algo sobre o tamanho da demanda em nosso mercado editorial, ou mesmo sobre o grau de integração cultural de nossa sociedade, ou apenas sobre meu exótico gosto para livros.
Acho que seria genocídio reabrir as escolas, mas não os bares - Dissonância cognitiva é um conceito antigo e muito popular na boca do povo. O que é a dissonância cognitiva? O trecho abaixo explica.
Cognitive dissonance, coined by Leon Festinger in the 1950s, describes the discomfort people feel when two cognitions, or a cognition and a behavior, contradict each other. I smoke is dissonant with the knowledge that Smoking can kill me. To reduce that dissonance, the smoker must either quit—or justify smoking (“It keeps me thin, and being overweight is a health risk too, you know”). At its core, Festinger’s theory is about how people strive to make sense out of contradictory ideas and lead lives that are, at least in their own minds, consistent and meaningful. [Aronson & Travis (2020)]
Talvez possamos resumir assim: pessoas não gostam de se sentir inconsistentes em suas atitudes. Obviamente, a pandemia é um bom caso de estudo (um preliminar, para o Brasil da pandemia, aqui). O conceito é de 1950 e, obviamente, de lá para cá, muita coisa mudou. Temos até o interessante paradoxo da hipocrisia que, dizem alguns, ajudam a diminuir o comportamento dissonante. Como? Veja o trecho abaixo.
O que falta no parágrafo acima? O mecanismo teórico pelo qual a exposição às ‘falhas’ anteriores faria com que o sujeito passasse a não mais cometê-las. Afinal, se não lhe custar nada, por que deixar de lado suas crenças inconsistentes?
Como nos mostrou Bryan Caplan (já conversamos sobre isto aqui), a irracionalidade racional implica que, a menos que o preço para se manifestar a inconsistência aumente, o indivíduo seguirá tal e qual antes. A hipocrisia, em resumo, precisa ser precificada. O insight de Caplan é que existe uma demanda por irracionalidade.
Ao contrário do que alguns pensam, a irracionalidade racional não é exclusiva de pessoas desta ou daquela tribo ideológica. A pandemia mostra isto muito claramente. Afinal, a pandemia é apavorante: o medo de morrer é muito sério e muitos se voltam para Deus nestas horas. Ou para seus Deuses. Outros buscam a salvação onde não há, ou seja, na ciência5.
Veja, por exemplo o caso da pessoa que acha cientificamente certo estar de acordo, simultaneamente, com estas três notícias (de fontes insuspeitas): (a) não podemos ter aulas porque não se vacinou todo mundo (ou, num argumento mais curioso, porque adolescentes e crianças não conseguem se enquadrar aos critérios de segurança6); (b) podemos ter manifestação de rua por motivos políticos e é importante que todos (inclusive adolescentes) participem e, por último; (c) podemos aglomerar, mas pelo menos que se distribuam máscaras7.
Conhece alguém que defenda as três simultaneamente de forma sincera? Bingo! Tem um grupo de conhecidos que defende os três simultaneamente? Bingo: você tem um grupo do zap ativo! Conhece alguém que seja condenado como genocida/neoliberal/negacionista/sogra no grupo do zap por ter levantado a dúvida de que talvez houvesse uma inconsistência neste posicionamento? Agora você atingiu o final level do jogo.
Para finalizar este tópico com um certo humor, eis uma divertida frase cunhada pelo Alexandre Soares Silva em sua newsletter.
Ele não queria saber as consequências das idéias que defendia, porque queria manter o suspense.
O preço do suspense pode ser o eterno genocídio (ou uma gorda dançando em um banquinho).
Recuperando uma antiga citação em um blog perdido… - puxando sua orelha.
Puxar a orelha – Era uma invocação à Deusa da Memória, atendida pela conservação imediata do que se procurava reter mentalmente. Fórmula especial de pedir intervenção sobrenatural de Mnemósine, Deusa da Memória e Mãe das Musas. O castigo de “cortar as orelhas”, uma ou ambas, antiqüíssimo e comum, punia a quem não ouvira, entendera, cumprira a voz da Lei. Puxar a orelha correspondia a uma mnemotécnica pedagógica. [Cascudo, Luís da Câmara (1986) Locuções tradicionais no Brasil. Itatiaia/EDUSP, p.220]
Crianças curiosas - Jorge Cham, criador do ótimo PhD Comics, agora tem um desenho para crianças (mas é no canal norte-americano PBS).
Linguagem dos gatos - Nesta breve matéria você vê que, em 1895, alguém tentou fazer um pequeno dicionário sobre os diferentes miados dos gatos.
Venture capital - Talvez a melhor entrevista que você vai ler sobre o tema. Como? Quem? Esta conversa entre Richard Hanania e Marc Andreessen.
É o que tem para hoje. A gente provavelmente se encontra no sábado. Espero você lá. Gostou? Espero que sim. Indique aos seus amigos (e aos seus inimigos, caso não tenha gostado).
Eu poderia escrever “Cabul” mas, honestamente, Kabul é mais bonito. Ou você realmente acredita que “A Ira de Cahn” (com Ricardo Montalbán no papel de Cahn) ajudaria a vender o clássico segundo filme de Star Trek? Claro que não. Mas, quando você lê “A Ira de Khan”, a imagem de massacres mongóis parece café pequeno.
Como você sabe, um sandbox regulatório é neutro com relação aos fins. Você pode criar um campo de concentração para testar modos mais eficazes de aniquilar pessoas. Ou pode criar um paraíso para o empreendedorismo em um país de regime político ditatorial. Este é um tema para outro dia.
Não, não comece com a lenga-lenga de que as intervenções visam se apoderar do petróleo. Ouço isto há mais 30 anos (mas o discurso é mais antigo) e os EUA continuam não sendo donos do petróleo do mundo. Nem do ouro. Nem da soja. Nem mesmo do discurso hegemônico nas federais. Sem dúvida que há gente em várias administrações norte-americanas sonhando com a conquista deste ou aquele país. Norte-americanos não são diferentes de sul-americanos em suas ambições e, a despeito de seu poderio bélico, estão saindo do Afeganistão, caso você não tenha reparado…
O nome principal é: Robert H. Bates. Aqui está o verbete da Wikipedia em língua inglesa.
O grande filósofo Alberto Oliva já disse (acho que foi em seu ótimo A Solidão da Cidadania) que a ciência trata de questões bem distintas das que a religião responde. Eu concordo com ele e, imagino, você também.
O movimento estudantil estava tomando cerveja e, assim, não se manifestou contra esta visão cruel e maniqueísta sobre sua incapacidade de seguir protocolos básicos de saúde. Nem um rufar de tambores. Nem uma pinturazinha de guerra. Sequer uma notinha à imprensa.
É verdade que distribuir preservativos em uma orgia com desconhecidos pode prevenir a transmissão de doenças venéreas tanto quanto a distribuição de máscaras em uma passeata com desconhecidos pode minimizar a transmissão do coronavírus. Parece-me, contudo, que pode ser mais saudável (neste momento) evitar orgias ou passeatas.