O dia em que a biblioteca quase naufragou. O saber nem sempre vem nos ombros de gigantes. Falsificação de preferências. Charter Schools. Etc.
Já que é sobre o que eu "ando lendo", vamos aos livros.
Ok, comemorando o décimo número do segundo volume desta newsletter, dois relatos que envolvem livros em minha vida. Oh, já me esquecia, v(2), n(10). De quebra, um comentário (que ficou maior do que eu pretendia) sobre uma interessante pesquisa em Economia Política e mais sobre a família Shikida. Ufa. Chega.
Vamos ao que importa!
A biblioteca do Goethe Institute e o dilúvio - Poucos sabem, mas por um tempo estudei língua alemã. Cheguei até o intermediário. Embora meus pais não tivessem dinheiro para pagar um curso, comecei em um da universidade (pagava-se uma taxa quase que simbólica).
Lá conheci o caminho das pedras: seria possível, caso você conhecesse a bibliotecária do Goethe Institute, aprender alemão em troca de trabalho como estagiário da biblioteca. O que poderia ser melhor que isto?
Um amigo meu da época (hoje, um professor de filosofia em uma universidade federal do interior de Minas Gerais) era estagiário na dita biblioteca e estava para sair. Indicou meu nome. Fui lá para a entrevista e saí feliz, com um trabalho na biblioteca (= lazer para mim) e umas horas de alemão no Goethe.
O Goethe, para quem não sabe, ficava no belo Colégio Arnaldo, onde, hoje, é um posto da polícia. Digamos assim, o prédio é um quadrilátero. À noite, nas salas de aula, funcionava o Goethe. Num dos vértices do geométrico colégio, ficava a pequena biblioteca. Sendo mais específico, subia-se uma escada e, à esquerda havia uma pequena sala de cinema. À direita, a biblioteca.
Pequena, mas muito elegante, a biblioteca tinha umas seis estantes de madeira, belíssimas, repletas de livros, muitos deles importados da Alemanha. Por trás do balcão ficávamos eu e a minha chefe. Havia um banheiro também. E uma máquina de escrever elétrica e uma excelente copiadora. Tirei cópia de vários libretos das óperas de Wagner ali (ainda os tenho, ahá!).
Os usuários tinham à disposição uma dúzia de mesas (ou umas três, já não me lembro bem) com cadeiras confortáveis.
Também tínhamos uma coleção de fitas cassete com música alemã (claro que todo mundo pegava para copiar e ainda tenho algumas comigo, mas não ouço música clássica faz um tempinho…).
Na época, eu fazia estágio em um certo banco público do estado e fazia, portanto, uma bela caminhada até a biblioteca. Saía a pé no final do expediente (ou um pouco antes, compensando depois), fazendo minha parada na biblioteca. Mais para o final da noite, eu caminhava mais um pouco e pegava o ônibus para casa perto do Parque Municipal. Rapaz, eu já andei muito por Belo Horizonte nos anos 80 e 90…
Num dia não tão belo assim, uma chuva bem forte começou quando eu já estava no meio do caminho para a biblioteca. Cheguei ensopado e minha chefe mandou que eu me secasse no banheiro. Lá torci as meias e tentava me secar enquanto ela se preparava para deixar a biblioteca aos meus cuidados.
Após a ‘torcida’ das meias e de me secar dentro do possível com uma toalha de rosto, sentei-me cansado, com os ombros à mesa.
Na biblioteca, apenas um casal. Pareciam estar no início do namoro. Eram só beijos, olhares apaixonados e, claro, mais beijos. E havia também um barulho de água jorrando. Bom, era um barulho bem forte de água jorrando. Aliás, forte demais. Espera, água??
Levantei a cabeça e procurei pelo barulho à esquerda. Nada. À direita, nada. Mas, quando olhei para frente, quase caí de costas. A água jorrava bem no corredor entre as estantes à minha frente (as estantes eram ortogonais à minha mesa, o que significa que eu enxergava os corredores entre elas).
Saltei da mesa, saí detrás do balcão e fui até o fundo do corredor. Lá no alto, da estante à minha esquerda, a água descia abundantemente. O buraco era imenso. Claro que me apavorei e comecei a correr para lá e para cá como uma barata tonta. O que fazer? Não tinha nada, senão a toalha de rosto com a qual me sequei. Animador, não?
Olhei para o casal e eles, presos naquele casulo da quarta dimensão do amor, seguiam se beijando e se declarando. Ensaiei pedir uma ajuda, mas desisti. Corri até a estante, tirei uns livros e virei-a para mim. Foi um banho, mas não de leitura.
Coloquei os livros perto do casal. Perdi a vergonha e perguntei-lhes se não poderiam adiar seu namoro por algum tempo para poderem me ajudar a salvar uns livros. Para minha surpresa, eles me ajudaram. É, o amor tudo pode, mas um pedido educado de um sujeito ensopado, também (e não me refiro aos clássicos roteiros dos filmes pornôs…).
Naquela noite, eu não iria ter aula. Trabalharia o horário cheio. Isso facilitou meu trabalho de me molhar e tentar empilhar os livros no chão. Contudo, preocupava-me a possibilidade de que a chuva continuasse pelo resto da noite.
Liguei para minha chefe e lhe expliquei o problema. Foi quando ela me disse que eu deveria deixar uma chave na portaria para o pessoal da manutenção ir lá no dia seguinte. Claro que a chuva não deu trégua para que o importantíssimo estagiário da biblioteca saísse.
O casal já tinha se despedido, de forma que tranquei a biblioteca e saí. Obviamente que a água me cobria os pés e me molhei todo novamente pois, veja, eu tinha que dar a volta no quarteirão e alcançar a portaria…
Tendo deixado a chave lá, voltei sob a chuva que já era quase parte de mim. Fui ao banheiro, tirei os sapatos, torci as meias (achei que isso iria se tornar um hábito…) e devo ter xingado alguns palavrões mentalmente.
Mais tarde, com a chuva já convertida em pequenas e esparsas gotículas, saí, caminhei e peguei o ônibus para casa pois, sabe como é, na manhã seguinte teria aula na faculdade.
Sobre os livros: descobriu-se que o vazamento já existia e a água já havia danificado permanentemente vários daqueles caríssimos livros alemães. Vários já tinham as páginas coladas.
Acho que já contei isso em outro lugar, mas não custa tentar uma nova versão, puxando da memória. Antigamente, eu começava esta história assim: você sabia que é possível ter uma vida emocionante em uma biblioteca? Se não tivesse acontecido comigo, juro, eu não acreditaria.
O Saber Nem Sempre Vem Nos Ombros De Gigantes (eu mesmo, por exemplo, só tenho 1 m e 70 cm) - Esta história se passa muitos anos depois da anterior, mas, quase que misticamente, muito próximo, geograficamente, ao cenário anterior. Por muitos anos lecionei em uma faculdade privada que se localizava no prédio em cima do antigo Central Shopping de Belo Horizonte (local que fica no caminho meu querido Instituto Goethe e o banco em que estagiava).
Foi ali que, nos primeiros anos do curso, eu me vi envolvido em uma curiosa doação de livros. Minha memória não é mais a mesma, mas acho que o Instituto Liberdade (o famoso “IL-RS”) estava doando alguns livros para escolas e eu, sabendo disto, entrei em contato com eles porque, afinal, um bom Bastiat sempre rende boas piadas em sala (ler A petição é uma excelente forma de se aprender sobre comércio).
O pessoal do IL-RS topou: iriam enviar umas dezenas de livros em meu nome. Dei o endereço da faculdade, claro. Feliz com a confirmação da doação, alguns dias depois recebi o aviso dos Correios: seu caixote está aqui, venha buscar. Bem, seriam então, mais livros do que eu esperava. Este era o lado bom da notícia.
Feliz da vida, perguntei na faculdade se teriam um carro ou algum funcionário para me ajudar. A resposta? Claro que foi um não. Fui à biblioteca e falei com as duas bibliotecárias que, surpreendentemente (é, eu esperava mais entusiasmo…) também só me deram a negativa. É, não existe livro doado grátis…
Na época, eu ainda não tinha um automóvel. Mas, ora bolas, era só ir até a agência na rua Goiás e pegar a caixa. Para ir até lá, leitor (des)acostumado com Belo Horizonte, bastaria eu descer parte da avenida Afonso Pena e, ali, aos arredores do Automóvel Clube, virar à esquerda e, em seguida, à direta. Parecia uma boa ideia. Um pequeno sacrifício pelo saber. E, afinal, eu já andava muito por BH nos anos 80 e 90, por que não no início do século 21, não é?
Eu disse que parecia uma boa ideia? Parecia. Até eu receber, no balcão, uma bela de uma caixa (não muito pequena) e relativamente pesada. Só que, aí, o orgulho já falava mais alto. Eu já me via como o Conan do Saber, o Átila dos Livros, o Cavaleiro de Sagitário dos livros de Bastiat, o Guardião da Sabedoria.
Além destes meus delírios de grandeza, há que se destacar que, na época, não existia ainda o transporte por aplicativo e nem todo taxista topava um trajeto tão curto. Tudo no universo conspirava para que eu fizesse o que fiz.
E eu era um pouco mais sovina do que sou hoje. Não deu outra: carreguei a caixa no ombro esquerdo e fui a pé de volta para a faculdade. Cheguei bem suado e cansado, mas me deixava feliz abrir o leque de opções de leitura dos meus alunos. Eles ganharam uns Mises (nem sou fã), Bastiat (recomendo) e alguns outros livros legais (tinha até de Eco-Ecologia, que usei em um trabalho de uma disciplina…).
No pain, no books.
Família Shikida - Achei meus registros. Resumindo, em 1992, os Shikida completavam 165 anos com este sobrenome. Além disso, temos mais 200 anos prévios como Shikijitani e Atarashiiya (publiquei sobre isto aqui e também aqui). Assim, neste ano, a família completa 195 anos ou, se você contar desde o início (mas os 200 podem ser aproximados), completamos 395 anos.
Deixa minha prima Maya saber disso. Ela vai querer continuar fazendo a árvore genealógica deste povo louco…
Falsificação de Preferências - O conceito de falsificação de preferências surgiu com os trabalhos do economista Timur Kuran, há alguns anos. Em essência, trata-se de uma situação na qual é racional (“= o benefício é maior que o custo para o indivíduo”) não revelar suas preferências.
Claro que a aplicação mais direta que me vem à mente é o mercado político. Se você é um homossexual e vive sob um governo que considera o homossexualismo um crime, você tem um forte incentivo a esconder suas preferências. O leitor pode pensar em vários exemplos similares.
De um modo mais geral:
Whenever there is a norm against a given behavior, individuals may refrain from engaging in it due to fears of social sanctions (Bicchieri 2017). Individuals with counternormative views may thus prefer to falsify them around others (Kuran 1995). [Valentim (2022), p.1]
Aliás, este trecho está no texto Social Norms and Preference Falsification in a Democracy de Vicente Valentim, ainda em estágio de texto para discussão, que analisa o fenômeno no caso espanhol. Eis o resumo.
Do political preferences translate into behavior? When an individual's views are stigmatized, they have an incentive to conceal them. This paper provides real-world causal evidence of preference falsification in a democratic setting. My research design leverages within-voting station variation in the observability of vote choices induced by a unique decision by the Spanish electoral commission. Using a difference-in-differences design, I show that observability of one's behavior decreased voting for the right-wing party PP, which is stigmatized in the country. At the individual level, individuals who support the party are more likely to make efforts to keep their vote choice secret. Those who make those efforts also feel more uncomfortable answering surveys on politics. The results highlight the role of social norms as predictors of political behavior, and highlight how seemingly minor changes to the electoral procedure can affect electoral outcomes.
No formato atual, o texto deixa vários testes de robustez, bem como interessantes descrições sobre o processo eleitoral nos apêndices. E chama a atenção ele fazer um corte histórico de países pós-autoritários. Lembra muito o conceito de jovens democracias de um artigo famoso de Allan Drazen (Brender e Drazen (2005), mas a mesma discussão está em um artigo aberto deles: Brender e Drazen (2007)), que li há uns anos.
Drazen e seu coautor, naquele paper, argumentavam que os ciclos político-econômicos seriam melhor compreendidos se o corte amostral dos países fosse feito como jovens e velhas democracias e não nas formas tradicionais, como ‘desenvolvidos e ‘subdesenvolvidos’, por exemplo.
Em resumo, sua justificativa era: em democracias velhas, os eleitores aprenderam a punir a irresponsabilidade dos políticos, o que explicaria um antigo problema da literatura na área: a existência de evidências ambíguas sobre a ineficiência democrática. Explico-me.
É que os estudos de ciclos político-econômicos sempre testavam ou a hipótese de que o politicos conseguiam influenciar o ciclo econômico ou que os eleitores seriam racionais e conseguiam impedir esta mesma influência, encontrando evidências favoráveis a ambas o que, obviamente, era um problema.
Ao separar a amostra em velhas e novas democracias, os autores encontraram que a eficiência dos eleitores na fiscalização dos políticos era comum nas velhas democracias, mas não nas novas. Deste modo, os autores ofereceram uma engenhosa explicação para os resultados, até então, ambíguos.
As velhas democracias seriam mais eficientes na punição da irresponsabilidade dos políticos porque teriam, digamos assim, tido mais tempo para aprender como fazê-lo. Claro, o leitor pode argumentar que eleitores não são eternos e que morrem, mas podemos dizer que talvez alguns valores sejam transmitidos de geração em geração.
O argumento não tem a pretensão de ser absoluto ou eterno: nada impede que choques exógenos não possam erodir o poder de fiscalização dos eleitores, por exemplo. De todo modo, o artigo trouxe um pouco mais de insight à nossa compreensão de como funcionam os chamados political business cycles (ou, em português, ciclos político-econômicos).
Voltando ao texto de Valentim, fico pensando se o mesmo tipo de padrão emergiria para a falsificação de preferências. Por exemplo: será que velhas democracias tenderiam a apresentar, ceteris paribus, menores níveis de falsificação de preferências do que as novas?
Esta pergunta pode não fazer muito sentido se os conceitos de pós-autoritários e novas democracias forem fortemente colineares. Olhando rapidamente a tabela de Brender e Drazen (2005), este parece ser o caso. Entretanto, ainda penso que existem oportunidades para se estender este tipo de pesquisa.
Também me ocorre que há um fenômeno invertido curioso: em muitos países pós-autoritários, em anos recentes, o que ocorre não é tanto uma falsificação de preferências (pelo menos não no nível mais geral). Ocorre, sim, uma sinalização de valores (virtudes) para grupos específicos. Posições impopulares até para normas sociais são defendidas vigorosamente, por exemplo, no Twitter. Taí um exemplo do que chamei de choque exógeno: a rede social barateou a sinalização de virtudes.
Pode ser que, conforme o custo-benefício de exposição individual, o sujeito escolha falsificar total ou parcialmente suas preferências. Bem, esta discussão fica para outro dia. Caso você siga nesta linha de pesquisa, terei enorme alegria em ler seu trabalho.
Governança Radical - Eu não vejo problema em que se experimente novas soluções para problemas que não foram solucionados até hoje. Você vê? Não envolvendo escravidão de pessoas, punições com açoites e coisas que só um imbecil defenderia, parece-me razoável tentar algo diferente.
É o caso das charter schools, que muitos demonizam (toda mudança que, potencialmente, gera mudanças no poder de algum(ns) grupo(s) sempre gera esta tensão, ora bolas!). Tem gente que pensa que isso nunca foi tentado no Brasil, o que não é verdade.
Neste sentido, vale a pena ler este antigo relatório. Eis uma longa, mas importante ponderação sobre a experiência pernambucana.
O modelo de escola charter tem ênfase clara em resultados, mas também em trabalho de equipe e criatividade, o que, para esses professores, tornam essas escolas ambientes recompensadores para trabalhar, apesar da maior cobrança e da carga horária intensa. No caso de Pernambuco, havia o bônus salarial, mas observamos que esse não era o único incentivo significativo. Professores que aspiram uma promoção em sua carreira, sem ter que necessariamente abandonar a sala de aula, veem a oportunidade de trabalhar em uma escola charter como uma forma de desafio e crescimento profissional. Mas não é suficiente oferecer uma escola de excelência para professores excelentes. Em troca desse status diferenciado, esses professores precisam também assumir uma responsabilidade diferenciada na rede – como tutores/mentores de professores em outras escolas vizinhas, auxiliando professores de sua disciplina no planejamento, condução e modelagem de aulas. Essa posição, ainda incomum no Brasil, tende a se consolidar na medida em que observamos cada vez mais a necessidade de apoio técnico presencial focado na prática de sala de aula do professor.
Quando o professor reclama da falta de responsabilidades, ele não quer só dizer que aceita um certo ônus, mas também deseja o bônus. O desenho dos incentivos para que o desempenho da turma seja eficientemente conectado ao do professor é algo que não pode, jamais, ser desprezado.
Uma hora eu volto a este tema…
Ciência e veganismo - Eli e Ágata estão fazendo um divertido trabalho em seu podcast. Neste número, o tema é o veganismo.
Desculpa para você não fazer algo chato - Diga que está no grupo de controle. ^_^
Por hoje é só, pessoal!
Caso queira compartilhar, clique no botão abaixo.
Talvez você seja novo por estas bandas. Rapidamente: publico duas vezes por semana, geralmente às quartas e sábados. Eventualmente há algumas edições extraordinárias. Assinar (custo = R$ 0.00 + valor do seu tempo para apertar o botão subscribe com seu endereço de e-mail lá…) me ajuda bastante. A temática? De tudo um pouco. Confira os números anteriores aqui.