O curioso caso de Geraldina Maupassaint e a Exposição Nacional de 1861.
Um longo conto e uma piada.
Eis o v(1), n(58). Neste número, um longo conto sobre Geraldina de Maupassaint, uma ambiciosa servidora do império brasileiro. Depois, só uma piadinha antiga porque o leitor pode reclamar que ler isto aqui virou um suplício.
A Exposição Nacional de 1861 e Geraldina Maupassaint - A saga de Geraldina Maupassaint, a mulher que só internalizava benefícios e dispersava custos para os terceiros, quartos, quintos etc.
I
Geraldina Maupassaint carregara por um tempo o estigma de ter seu elegante sobrenome francês grafado tal e qual o leitor acaba de ver (o que, provavelmente, levou-o a soltar um sonoro ‘ahhhhhhhhh’ em tom melancólico pela minha suposta derrapagem a menos de 5 minutos do início do conto).
Mas isto foi só até os seus doze anos. A partir dali, Geraldina, tendo viajado com os pais para New York e aprendido um pouco da língua inglesa, passou a fazer piada com seu nome, dizendo-se uma santinha.
Santinha? Do pau oco, diriam alguns amigos, anos mais tarde, no serviço público imperial onde trabalhava. Geraldina era famosa pela boa retórica e nada mais. Havia sido educada no seio da aristocracia do Rio de Janeiro complementando seus estudos escolares com instrutores domésticos.
Sim, os pais de Geraldina possuíam um nível de vida muito bom, mesmo para a época. A origem da família podia ser traçada até a época da invasão francesa, no Rio de Janeiro. Seus antepassados, diziam, teriam se estabelecido em Cabo Frio.
De comerciantes do açúcar a traficantes de escravos, com um talento peculiar, talvez genético, para trapaças bem-sucedidas, a família Maupassant prosperou na capital imperial. Foi mais ou menos por volta de 1830 que Geraldina nasceu e, como seu pai estivesse muito feliz com o evento e, portanto, alcoolizado, seu sobrenome foi registrado no cartório como Maupassaint.
II
Sob os auspícios do Ministério do Comércio e Obras Públicas e parceiros, decidiu-se o governo pela realização da dita Exposição Nacional, destinada a preparar a presença brasileira na Exposição Universal de Londres que ocorreria, no ano seguinte, em 1862.
Era uma manhã ensolarada. Do lado de fora do casarão dos Maupassant, pássaros de diversas cores cantarolavam e voavam entre os galhos do grande carvalho que se encontrava no jardim da mansão. Percebe-se, pois, um cenário ideal para o despertar de tão nobre criatura como era nossa mencionada Geraldina.
‘- Some boys kiss me
Some boys hug me
I think they're ok…’
Por algum motivo misterioso, Geraldina cantarolava Material Girl, de Madonna. Como isso seria possível? Mistérios insondáveis do além, dirão alguns. Peraltice do autor, dirão outros (e o autor registra, aqui, sua revolta com tamanho disparate!). O fato é que ninguém, ninguém mesmo, sabe o motivo disto.
Divagações à parte, Geraldina estava feliz. Havia sido escolhida para gerenciar os preparativos de recepção dos produtos na grande Exposição Nacional de 1861 e, afinal, aquele era o grande dia.
Passara o ano anterior planejando como iria recepcionar produtos de tantas províncias. Claro, com aquele descuido que a caracterizava desde sempre. Como também era muito pretenciosa, pouco delegava e, quando o fazia, escolhia apenas os bedéus mais submissos da repartição. Afinal, deveria ser a dona de tudo, ela, a poderosa Geraldina. This girl is on fire!
Espreguiçou-se, pôs-se de pé e sentiu o aroma das folhas frescas pela janela enquanto degustava o chá com bolachas que a criadagem havia-lhe providenciado mais cedo, no mais absoluto silêncio. Afinal, incomodar Geraldina Maupassant em seu sono de 12 horas não era recomendável.
‘- Ah, como sou boa gestora!’, exclamou, mentalmente, com sincero orgulho de si mesma.
III
A quantidade incomum de poeira em frente ao edifício da Escola São João, mostrava os efeitos iniciais da organização. Era um vai e vem de produtos, expositores, empresários e escravos como nunca se vira no local e mesmo pelos seus arredores.
Geraldina, claro, não estava muito feliz com aquele movimento insano de pessoas e a poeira. Ordenou que lhe deixassem bem perto do portão, tentando evitar ao máximo sentir o evento que supostamente organizara com (mais suposto ainda) afinco).
Logo de cara, encontrou seu Adamastor (personagem apresentado ao leitor em outra ocasião e, aliás, em outro período histórico), impecavelmente bem trajado, com uma belíssima cartola preta que recém-chegara em um vapor de Londres, presente de um tio que, há anos, trabalhava para uns sócios dos Rothchild.
‘- Senhor Adamastor, como estão os preparativos?
- Talcott Parsons!
- Deus te proteja. Estás sempre gripado?
- Jane Austen. Jane Austen.
- Ah, pois. Entendo. Desde que horas?
- Thoreau? Thoreau, Thoreau…
- Entendo. Vou ao meu gabinete gerir este MEU evento, seu Adamastor. Cuide aí dos processos mundanos porque preciso pensar nas grandes estratégias.
- Edgar Allan Poe, Edgar Allan Poe, Edgar Allan Poe.’
Tendo instruído seu Adamastor - que, no século 19, era chamado de senhor Adamastor, seu criado ou, apenas, senhor Adamastor - para que cuidasse de tudo que, em tese, era de sua responsabilidade, caminhou a senhorita Geraldina elegantemente ao improvisado gabinete que lhe servia de centro de operações.
Eu disse ‘centro de operações’? A coisa toda mais parecia um improvisado bunker. Não um bunker para a guerra, mas um que ocultasse Geraldina da mesma protegendo-a de perigosíssimas responsabilidades.
Ali, por trás de pilhas de formulários, panfletos e livros que nem sempre tinham algo a ver com a Exposição, ela procurava se esconder dos problemas que lhe traziam os funcionários.
Do lado de fora do bunker, o caótico recebimento de produtos prosseguia. Era difícil organizar tudo? Algumas caixas traziam etiquetas com o nome dos produtos, mas outras, não. Havia de tudo.
Alerto o leitor de que, para manter-me fiel às raízes do evento, passo a grafar os produtos conforme o regramento da época. Assim, em um canto podia-se ver, etiquetados tal como a seguir descritos, produtos como café, chá, assucar, raizes bulbosas cereaes, guaraná e madeiras como a amoreira, o coquilho e a cangerana.
Misturavam-se, na parte central do salão desde amostras de licores, cerveja, algodão herbaceo, obras de palha, animaes dissecados até algumas caixas de ouro, uma machina de vapor oscillante, alguns modelos de construcção naval, copos de barro, bahus, malas de viagem, colletes salva-vida e até photographias.
O caos era evidente. Mas Geraldina, que se via como grande gestora, quase cochilava em seu bucólico - ao menos para ela - bunker.
IV
Seu Adamastor até tentara ajudar, mas as caixas de produtos somente se apinhavam com velocidade exponencial (o leitor deve imaginar uma velocidade exponencial no século 19, sem internet ou televisão, ok?). Os poucos funcionários que Geraldina tinha trazido para o evento não davam conta. Afinal, lembre-se o leitor de que ambiciosa encarregada fazia questão de selecionar os mais ine(a)ptos para garantir sua ilusória competência da qual, acreditava, derivava sua autoridade.
‘- Ah, como estará bela minha exposição!’
Por detrás das pilhas de papéis, por uma pequena vista da janela embaçada (do tamanho, talvez, de um punho feminino), Geraldina observava o caos e, como não entendia absolutamente nada de organização, gestão ou de qualquer outra atividade que exigisse menos palavrório e mais trabalho, imaginava-se diante da famosa e mil vezes mais organizada Exposição de 1851, em Londres.
Os funcionários debatiam-se para dar àquele diversificado acervo alguma ordem. Ocasionalmente trombavam uns com os outros, deixando seu Adamastor desesperado. Como este autor não tem um acervo imenso de personagens a seu dispor, seu Adamastor tinha mesmo que contar com os peões ignóbeis de Geraldina Maupassaint e ninguém mais.
Mas, como tudo que é do ser humano, a expectativa de que Sua Majestade visitaria o grande evento no dia seguinte fez com que os esforçados, mas ine(a)ptos, funcionários conseguissem encontrar algum padrão ordeiro em meio ao caos. Seu Adamastor, dizem, perdeu uns dois quilos, só neste dia.
Tirando o lenço do bolso para limpar o suor, já no meio da tarde, seu Adamastor sentou-se em um barril, apertou mais ainda o cinto de sua calça e exclamou, aliviado:
‘- Mary Shelley… Mary Shelley…’
V
Fechados os portões, Geraldina entregou as chaves para seu Adamastor, expressamente ordenando-lhe que ali estivesse, no dia seguinte, às 7:15 da manhã. Certificando-se de que ele estava ciente das implicações punitivas que enfrentaria caso não cumprisse o horário, dirigiu-se para o casarão da família.
Naquela noite, Geraldina fez questão de se preparar com mais afinco. Um banho caprichado e a escolha do melhor vestido foram apenas parte de seus preparativos. Não podia faltar, obviamente, um longo discurso, florido e recheado de elogios às autoridades.
Talvez fosse a única tarefa que Geraldina, em toda sua vida, empenhasse todo seu esforço esta a de fazer discursos para autoridades. Assim que o leitor não deve se espantar se um dia eu lhe mostrar um de seus discursos dos tempos dos bancos escolares. Ele terá a nota máxima e eu juro que é verdade!
Geraldina tendo escrito, corrigido, lido, relido e ensaiado três vezes consecutivas, deu-se por satisfeita com o produto da combinação de seu ótimo talento literário e de seu ego imenso (que, claro, via seu talento como algo bem maior do que realmente era).
‘- Vou mudar muitos mindsets’, pensou, ainda que não soubesse bem o que era um ‘mindset’.
VI
O dia 02 de dezembro de 1861 amanheceu tão ensolarado e idílico como o que descrevi no início desta história. Geraldina Maupassaint, feliz, aprontou-se demoradamente. Como não poderia deixar de ser, ensaiou seu discurso novamente, agora com maior atenção ao tom de voz e aos trejeitos que caracterizam os oradores populistas. Nascesse uns anos mais tarde e lhe chamariam, com justiça, de Geraldina Mussolini, tamanho o talento para a oratória vazia, mas cheia de adjetivos e trejeitos.
Após o desjejum, olhou-se no espelho, desejou-se sorte, despediu-se dos pais e partiu para a Escola São João. Pelo caminho, observava as pessoas e o comércio que iniciava o dia. Olhava com certo desprezo o vai e vem dos transeuntes e o movimento nas padarias.
‘- Ah, a rotina dos comuns. Que tédio!’, pensou Geraldina. E, com mais tédio ainda: ‘- O comércio, coisa suja, nojenta. Gente ávida para agradar a fregueses incultos. Não, eu não sou assim. Sou servidora do Império. Cuido de grandes eventos e de autoridades de gosto cultural refinado. Humpf!’
Ao chegar, encontrou seu Adamastor que, a despeito da pontualidade, tinha um aspecto preocupantemente diferente do normal.
‘- Bom dia senhor Adamastor. Vejo que chegou na hora.
- Émile Zola! Émile Zola!
- Como??
- Guy de Maupassant! Guy de Maupassant! Guy de Maupassant!
- Mas como assim é na Escola Central? Eu preparei tudo! Planejei tudo! Com um ano de antecedência!!!
- Victor Hugo! Victor Hugo!
- Mas, mas…’,
Não podendo mais falar, desatou a chorar. Seu Adamastor não sabia como a consolar e apenas entregou-lhe a cópia manuscrita das instruções de um ano antes para a qual a arrogante Geraldina não havia dedicado qualquer atenção mais demorada.
Novos funcionários que chegariam alguns minutos depois somados aos de Geraldina, retirariam, apressadamente, todo aquele imbróglio num esforço calculado para não atrasar mais a abertura da Exposição.
É que ao dar-se conta de que faltava um documento a ser carimbado, seu Adamastor, de posse das chaves, havia aberto o gabinete de Geraldina no final do dia anterior e, sem querer, encontrara o citado manuscrito. Zeloso que era, tentou salvar-se e à chefe da humilhação total, articulando com seus superiores a vinda de novos - e mais eficientes - funcionários.
Quanto à Geraldina Maupassaint, ainda em choque, sentiu o discurso que havia preparado desprender-se de suas mãos e, suavemente, encontrar a poeira que cobria a calçada em frente à Escola São João.
FIM
Anedotas do Pasquim - Aqui vai uma do Anedotas do Pasquim n. 06. (3a edição, Editora Codecri, 1982)
O cara estava visitando uma cidadezinha portuguesa, quando foi convidado para assistir à festa do Soldado Desconhecido. Foi lá pra a (sic) praça, tava lá toda a população da cidade, mil discursos, aquela coisa toda. E ele reparou que em todos os discursos as pessoas falavam o nome do soldado desconhecido. Terminada a cerimônia, ele se aproximou lá do mausoléu pra ver a placa e estava escrito: “Aqui jaz Manoel das Couves, alfaiate.”
Aí ele se virou pro amigo da cidade e perguntou:
‘- Que negócio é esse de Soldado Desconhecido, se todo mundo sabe que ele se chamava Manoel das Couves e era alfaiate?’
Ao que o portuga respondeu, fazendo as devidas caras:
‘- Baim…é que como alfaiate ele era conhecidíssimo. Agora, como soldado, pfrrrttt!!
É, piadas de português são sempre um must.
Exposição de 1861 - Veja o grande livro da Exposição de 1861, digitalizado, aqui. Há uma belíssima edição encadernada que ganhei há algum tempo.
Doutor Palhinha - Doutor Palhinha pede desculpas ao leitor. Ele não pôde participar do conto de hoje porque estava no boteco da esquina tomando umas, dizem, com Juó Bananére. Ou com o Sabino, um amigo meu. Ninguém sabe ao certo.
Aynitta - Em breve, o retorno da cantora e filósofa Aynitta.
Talvez você seja novo por estas bandas. Rapidamente: publico duas vezes por semana, geralmente às quartas e sábados. Eventualmente há algumas edições extraordinárias. Assinar (custo = R$ 0.00) me ajuda bastante. A temática? De tudo um pouco. Confira os números anteriores aqui.