A Delta Force Acadêmica, Seu Adamastor e o boi voador de Nassau
Anuncie aqui e financie minha viagem para Marte!
Eis o v(1) n(55) saindo das rotativas! Hoje, com um pequeno conto sobre o processo de publicação de artigos científicos, um microconto sobre um certo Adamastor e o boi voador de Nassau. Há também uns poucos links (comentados ou não).
Talvez você seja novo por estas bandas. Rapidamente: publico duas vezes por semana, geralmente às quartas e sábados. Eventualmente há algumas edições extraordinárias. Assinar (custo = R$ 0.00) me ajuda bastante. A temática? De tudo um pouco. Confira os números anteriores aqui.
Vamos lá?
Delta Force - Era difícil aquela vida de editor-chefe do journal. Autores reclamando da rejeição de seus artigos e avaliadores com aquela má vontade para emitir pareceres.
Eram sempre as mesmas queixas.
‘- Meu artigo não está bom? Quem é você para me dizer isso?
- Avaliar? Não é da minha área.
- Avaliar? É da minha área, mas não posso. Meu tempo é muito valioso.
- Como assim vocês rejeitaram meu artigo? Eu preciso da aprovação porque fiz um concurso…’
Sim, queixas assim eram comuns. A humanidade, claro, é humana. Mas, nos últimos anos, os autores e avaliadores tinham se tornado mais petulantes e vaidosos. Uns diziam que era ‘culpa do ensino que não mais permitia críticas’. Outros que ‘sempre havia sido assim’. Outros, ainda, que ‘a internet é que barateara a entrada de qualquer um’ no jogo acadêmico.
A verdade é que ninguém sabia qual era a causa (ou as causas) deste novo padrão de comportamento e, para quem achava que o mundo acadêmico era aquela maravilhosa fábrica de debates e conhecimentos, a dura realidade da rotina da gestão do periódico científico - já falei que chamamos estas criaturas de journals? - tornava-se mais e mais um peso para nossos dois protagonistas.
Foi numa tarde destas, após muita luta para conseguir um avaliador para um artigo, que ‘seu Pierre’, editor do Arquivos Brasileiros de Ciências, Dinâmica e Controle (ABCDC) teve aquela que seria a mais revolucionária ideia editorial do século.
‘- Delta Force!’ Bradou com entusiasmo ao perceber-se em momento de legítima epifania.
O editor-adjunto, Esaú, que quase dormia na mesa ao lado, quase infartou.
‘- Que é isso, seu Pierre? Tá querendo me matar?’
’- Não, Esaú. É que acabei de ter uma ideia incrível que vai nos tirar deste pântano de reclamações!’
’- Uau! Sério?? O senhor achou a solução para todos os nossos problemas?’
’- Sim, Esaú. Vamos criar uma Delta Force.’
’- Como é, seu Pierre? O senhor anda vendo muito filme na Sessão da Tarde, né?’
’- Duvida, Esaú? Então aguarde. Vai para casa. Relaxe e se prepare porque, a partir de amanhã, tudo será diferente’.
Esaú já estava cansado e não hesitou: pegou o chapéu, o paletó e se despediu de um Pierre que mal lhe deu muita atenção (pois já colocava seu plano em ação).
No dia seguinte Esaú chegou cedo, ligou o computador, entrou no sistema de edição do ABCDC e surpreendeu-se. Dois avaliadores que estavam atrasados há meses não só haviam enviado os pareceres como ainda pediam desculpas pela demora.
Na janela lateral do sistema, mensagens com longos pedidos de desculpas vinham de autores que agiam como se o journal tivesse obrigação de publicar seus artigos e que humilhavam Esaú a cada 5 dias, fustigando-o com mensagens mal educadas. Esaú sorriu.
‘- É, seu Pierre deve ter implantado o tal plano', pensou com um ar de tímida esperança de que não estaria, novamente, em um sonho. Beliscou-se e notou que poderia estar mesmo acordado.
Levantou-se e foi preparar o pó de café para a velha cafeteira do escritório. Quando ainda se espreguiçava ao lado do armário da copa, o editor-chefe chegou, todo feliz.
‘- Bom dia, Esaú! Que belo dia para as publicações científicas, não?’
‘- Bom dia, seu Pierre. Vejo que o senhor está animado e hoje nem é sexta-feira…’
’- Pois claro, Esaú. Delta Force! Delta Force!’
Alguns podem estar se perguntando: que raios de Delta Force é esta que o editor tanto festeja?
É que durante a noite, seu Pierre fez algumas ligações para alguns antigos colegas acadêmicos. Gente da pesada mesmo. Da época do cuspe e giz. Gente que usava jaleco branco em sala de aula. Gente que falava de mitocôndrias em escolas que não tinham laboratório. Gente que ensinava tabuada com memorização e arguições diárias. Gente que não aliviava na cobrança (e nem permitia trabalho em grupo para melhorar a nota).
Sim, seu Pierre havia criado sua própria Delta Force, a Delta Force Acadêmica, um grupo de professores/pesquisadores (todos com Ph.D.) dedicados a corrigir as ineficiências do processo editorial do ABCDC.
Ciente da remuneração insatisfatória dos pesquisadores e professores aposentados, seu Pierre arrumou uns recursos extras, e concedeu-lhes bolsas (portanto, não tributáveis) e lhes deu carta branca para agirem.
Assim, naquela mesma noite, reuniram-se num bar copo sujo da periferia (que, não por acaso, chamava-se Copo Sujo) os seguintes integrantes daquela que ficaria conhecida como a Delta Force Acadêmica.
Liderau Hard Math de Athayde - O professor Liderau, com doutorado em Matemática pelo IMPA, fora um grande acadêmico dos anos 80. Referência em campos vetoriais, ficou famoso, no Rio de Janeiro, por jogar um doutorando na parede quando o mesmo lhe perguntou se podia inverter uma matriz singular. Seus Teoremas sempre vinham em seus livros com notas de rodapé que diziam: o leitor pode facilmente ver que… Claro que ninguém via nada, muito menos facilmente…
Lízia Hand of Death Santhos - Pesquisadora em literatura grega, a doutora Lízia não tolerava erros. Sua tese de doutorado era referência não só nacional, mas internacional. Jamais aprovou um artigo sem antes pedir menos de 50 correções. Cobrava palíndromos em grego em bancas de concurso e se divertia com as lágrimas dos candidatos, dizem as lendas sobre esta cruel professora.
Sabino Gun Smoking Moura - Fanático pelo Ensino e Pesquisa, o doutor Sabino só lecionava nos últimos horários das sextas-feiras. Reza a lenda que, em uma aula, após provar um teorema, teria cortado a palma da mão canhota com um machete que, dizia, fora presente de seu pai, um sisudo professor de Teologia de um convento mantido secretamente pela Companhia de Jesus (agora disfarçada como uma prestadora de serviços, Funk Ping Pong Shows e Eventos) no Piauí.
Leo Shao Lin Crazy Monk de Mattos - Um famoso professor de Economia e autoproclamado Geômetra, Shao Lin Crazy Monk tinha este apelido não apenas por sua careca similar à dos monges budistas. Ele também se portava de maneira dogmática e violenta quando alguém fazia um gráfico em suas provas que julgava inadequado para a visualização. Nos anos 90 reprovou de uma só canetada, 60 artigos de um journal, levando o editor à demência eterna.
Para este grupo, seu Pierre havia feito uma pequena lista com alguns dos autores e pareceristas mais problemáticos de seu journal. O leitor percebe o terror que a união destas quatro forças iria causar?
Pois entre uma cerveja e outra, estas mentes malignamente brilhantes traçaram um plano infalível. Visitariam cada um dos autores e pareceristas da lista de seu Pierre naquela noite para cumprirem a nobre missão de melhorar o nível da produção científica nacional. Seria o batismo de fogo daquela temível tropa de acadêmicos.
E assim foi feito. Naquela mesma noite, portas foram arrombadas, autores e pareceristas foram surpreendidos e alguns currículos Lattes impressos foram enfiados nas bocas de alguns - outrora falantes e vaidosos - pesquisadores.
Como resultado, o processo editorial do ABCDC avançou. Não mais havia risco de atraso das próximas 6 edições trimestrais. Com sua Delta Force Acadêmica, seu Pierre e Esaú conseguiram até aumentar o Qualis Capes da revista em menos de 2 meses (há boatos de que a equipe teria feito uma visita à Capes, mas nada nunca foi confirmado).
Editores de outros journals notaram a inesperada melhoria no nível de polidez das mensagens que recebiam dos autores que lhes submetiam artigos e também nos pareceres dos avaliadores que, aliás, passaram a enviá-los dentro dos prazos.
‘Às vezes’, diz seu Pierre, hoje aposentado, ‘é preciso alinhar os incentivos’.
p.s. A Delta Force? Diz-se que ainda atua, mas estão mais na clandestinidade. Alguns dizem que ajudam também em bancas de mestrado e doutorado. Outros, que causaram pane nos sistemas do currículo Lattes do CNPq há alguns meses.
Caso você precise publicar um número do seu periódico sem atraso, obter pareceres nos prazos, ou mesmo mostrar para algum autor que seu umbigo não é o centro do universo científico, você deve procurar a…Delta Force Acadêmica!
<inserir música tema do Esquadrão Classe A ^_^>
p.s.2. Talvez eu desenvolva mais esta história no futuro.
Mini-conto - Seu Adamastor, o bibliotecário e sua linguagem peculiar
‘-Talcott Parsons!
- Saúde!
-Talcott Parsons! Talcott Parsons! Talcott Parsons!
- Ai, seu Adamastor, tome, pegue meu lenço. Pode ficar. O senhor está mesmo gripado, hein?
- Stendhal, Stendhal. Bastiat, Bastiat, Bastiat!
- Sério, seu Adamastor? Mas e aquela história da sua cunhada louca?
- Dostoevsky! Dostoevsky! FYODOR DOSTOEVSKY!
- Sei, sei. Olha, não se exalte. Isso vai passar. Mudemos de assunto.
- Austen?
- Não, não, datilografia mesmo. Ou política.
- Carl Menger, Carl Menger, Carl Menger. Leo Strauss, Leo Strauss…
- Não sei. Acho que seria mais importante um subsídio…
- Karl Marx! Karl Marx! Karl Marx, Karl Marx, Karl Marx.
- Lá vem isso de novo, né, seu Adamastor? Nem vem.
- Albert Camus?
- Tá, ok, vamos tomar o café lá na esquina da 7 de setembro com a 15 de novembro.
- Molière, Molière, Molière.
- Certo, seu Adamastor. Certo. Tudo bem.’
Boi Voador ou ‘Bumba meu Boi, Nassau!’ - O Arrancados da Terra de Lira Neto foi a primeira compra que fiz por recomendação de um assinante que não conheço (nem pessoalmente, nem virtualmente). Devo dizer: não poderia ter feito compra melhor.
Minha resenha sobre o livro está aqui. Há muita coisa interessante no livro, mas prefiro destacar, agora, a história do dia em que Maurício de Nassau fez voar um boi sobre os céus de Recife.
O feito ocorreu em 28/02/1644 e o espertalhão do Nassau me mostra um boi a todos que é levado para uma plataforma na qual, em um compartimento oculto, é trocado por um boi empalhado. Diz o autor:
Preso a uma gambiarra de cordas e roldanas, o ‘boi voador’ recheado de palha flutuou pelos ares. ‘A gente rude ficou admirada’, zombou o frei Manuel Calado, testemunha do episódio. [Lira Neto, Arrancados da Terra, p.225]
Antes que me esqueça, sim, recomendo o livro. Agora, como a data não virou feriado em Recife e como o evento não inspirou brinquedos para a criançada com bois voadores, varas de pescar com bois sendo usados como isca, bois super-heróis e afins é algo que me escapa.
A incrível arte de ‘Samurai Jack’ - Ótimo texto sobre um dos desenhos mais icônicos do começo deste século: Samurai Jack. Trecho.
The origin of the backgrounds’ style was a mishmash. Wills, for his part, tried to blend Hanna-Barbera with “Japanese prints and posters.” Tartakovsky oversaw their work and was looking at things like 1950s Disney artwork, UPA and The Little Prince and the Eight-Headed Dragon. But Wills noted one influence as supreme — the painter Charley Harper. In his words:
We’ve a lot of influences, I have to say, but when I feel like I’ve done a painting that’s very Samurai Jack, the way I want it, it’s mostly Harper’s kind of feeling.
Like Krall, the painters worked in physical media. Wills considered it softer, more textured and more alive than digital at that time.
Esperança no meio acadêmico dos EUA - Uma excelente notícia a criação de uma nova universidade nos EUA que, de fato, promove a liberdade de expressão. A livre iniciativa tem destas coisas: ajuda na renovação do oxigênio em ambientes inóspitos. Claro, se há esperança lá, pode haver em outros países. Quem sabe?
Wokismo radical - o identitarismo intolerante tem sido uma das facetas menos investigadas pelos nossos cientistas sociais (por que?). A reflexão do Tambosi, assim, é uma voz de tolerância em meio a isto tudo.
Journals e bandas - Falando em journals, alguns têm nomes de bandas. Sério? Sim, sim.
Listas de final de ano - Para quem ainda não leu, minha lista de livros de 2021 está aqui. Aproveito para atualizar: terminei o Arrancados da Terra, como o assinante desta constatou no número de hoje.
Sua assinatura é um prazer (e não custa muito).
Seus pensamentos também, claro.
Ajuda se puder compartilhar com os amigos e colegas. Já agradeço por qualquer um dos cliques. ^_^