Fukushima e a pandemia: o que eu aprendi (até agora)?
Visite o decorado. E também o memorizado. Ou o estudado. Azeite à vontade.
Bem-vindo ao v(2) n(8), adiantado em um dia por motivos de força maior (ou menor).
O tema principal é uma reflexão minha sobre a gestão de equipes durante a pandemia. Uma reflexão de quem geriu uma equipe e que encontrou alguns paralelos no filme Fukushima 50. Claro, há outros temas subjacentes.
Sem mais delongas…
Prólogo - uma pesquisa - Duas perguntas, sobre o que você gosta (ou não) na newsletter. Caso queira e possa responder, agradeço. São realmente apenas duas perguntas.
Fukushima 50 - Finalmente assisti ao filme sobre a equipe que lutou para salvar a usina do desastre nuclear. Gostei muito. Inevitável não fazer paralelos com a pandemia e, neste pequeno texto, quero compartilhar com você o que pensei sobre estes dois diferentes eventos.
I.
Primeiramente, sim, há algo em comum entre o desastre de Fukushima e a pandemia. A palavra que me vem à mente é: catástrofe. Ambos são eventos catastróficos. Ambos surgem de forma inesperada (a despeito das previsões. Além disso, a magnitude (no caso de Fukushima) e o alcance (no caso da pandemia) deles foram surpreendentes.
Em 2020, quando a pandemia mostrava sinais preocupantes, decidiu-se que iríamos para o trabalho remoto. Não se sabia ao certo como seria isto e nunca houve um ‘plano de contingência’ específico prévio. Mesmo assim, no escuro, a decisão foi tomada. ‘Ainda bem’, dizemos hoje.
Lembro-me de ficar uns dias a mais na sala cheia de mesas vazias, selecionando o que levaria e o que deixaria. A sensação, imagino, era similar à do almirante que observa seu navio vazio e se prepara para partir ou afundar com ele. O trabalho remoto, nesta metáfora, era como se o almirante tivesse a opção de transferir o comando para outro navio e, portanto, poupasse sua vida temporariamente em meio à guerra.
A partir daí, foi um longo período de adaptação e de aprendizado. A sensação era de que estávamos mesmo diante de um conflito, só que com um mortal inimigo invisível. A ansiedade e a tensão, por muitos momentos, mexeram com a cabeça das pessoas. Eu e minha equipe navegamos por mares desconhecidos. Foi com muito sacrifício e empenho que conseguimos não nos perder.
II.
Mas eu falava do contraste com Fukushima, tal como documentado (com seus toques de ficção, claro) no ótimo filme. ‘Fukushima 50’ nos mostra, como em vários filmes japoneses, uma crítica à lentidão da burocracia do governo e também das empresas japonesas (veja, por exemplo, o último Godzilla produzido pela indústria japonesa).
O filme mostra como a tomada de decisão, naquela situação gravíssima, sofria com decisões influenciadas pela conveniência política ou mesmo pelo desejo de se resolver rapidamente uma crise que ainda era muito grave.
Um episódio - e me lembro das cenas reais, na época - foi o dos helicópteros jogando água no reator. No filme, fica claro que a medida tinha eficácia baixíssima e o esforço deveria se concentrar em outra atividade que era a de se bombear água para o reator.
Contudo, governo e a direção da TEPCO (a empresa que geria a usina) agarraram-se (não sei o motivo) à crença de que bombear água do mar levaria impurezas para dentro do reator. Tempo e esforço desperdiçados? É a mensagem do filme.
A lentidão burocrática da própria TEPCO e o comitê de crise do primeiro-ministro Naoto Kan também não entraram para a história como um exemplo de eficácia. No filme, o comitê se reúne em uma sala cheia de telas de TV e computadores, o que me lembra a confusão dos dashboards que todos acham lindos (mas não se sabe no que ajudam…), mostrando ao espectador que a tecnologia é inócua nas mãos de ineptos (ou de pessoas que não estão realmente pensando nos mesmos problemas…
Na pandemia, passamos por momentos similares. A elevada incerteza quanto ao poder de infecção, transmissibilidade e outros aspectos do vírus foram barreiras às boas decisões. Voltaremos ao trabalho presencial? Não voltaremos? É necessário? Quais os riscos? E a vacina? Quando virá? Tem que ter mesmo lockdown? E as crianças?
Em meio a isto tudo, as equipes que conseguiram desenvolver um fluxo de trabalho remoto eficiente tiveram sucesso. Isto não significa, necessariamente, que a burocracia diminuiu. Digo, algumas regras não podem mesmo ser flexibilizadas. Mas outras, ligadas à tomada de decisão, podem ser adaptadas.
III.
O trabalho remoto não funcionou tão bem em todos ambientes produtivos. Os meus colegas das universidades (públicas e privadas) reclamam - com razão - da queda na qualidade do ensino e da ineficácia das avaliações. A função de produção de capital humano teve uma queda e só vamos ter uma ideia do quanto isso foi ruim daqui a algum tempo.
Mesmo entre governos (municipais, estaduais e federal), ainda não há consenso sobre a eficácia de sua atuação durante a pandemia. É verdade que ainda teremos muitas discussões sobre isto. A quantidade de artigos científicos publicados sobre a gestão pública e a pandemia ainda é pequena.
Bem, há um ponto em que a pandemia se distingue de Fukushima: por ser mais disseminada, há mais setores envolvidos do que apenas governo e uma empresa produtora de energia. A necessidade de se adaptar ao trabalho remoto - ainda que temporariamente - enfrenta diferentes obstáculos (ou os mesmos, mas com diferente intensidade) conforme o setor da economia.
O episódio dos helicópteros despejando água serve como metáfora para o problema das informações na pandemia. Não porque sejam propositalmente falsas e disseminadas com objetivos políticos. A despeito destas (e aqui eu remeto o leitor a um dos temas que me parecem importantes: a irracionalidade racional), houve mesmo muita informação incorreta porque, simplesmente, conhecimento sobre o vírus era muito menor do que o que sabemos sobre tsunamis.
Durante o início da pandemia, onde a morte parecia próxima de cada um de nós, a tomada de decisões individual parecia sofrer mais com informações falsas e/ou incorretas. Aliás, há até um aspecto que poucos comentam, no caso da pandemia. Trata-se do fato de que muitas informações inicialmente tidas como corretas, depois se revelaram incorretas.
O conjunto de informações disponível para um gestor, em tempos ordinários, é geralmente composto de informações dadas (parâmetros) que ele utiliza para tomar a melhor decisão possível.
No caso da pandemia, parte das informações dadas não o é. Há um não-desprezível montante de aleatoriedade poluindo este conjunto. Ou, se preferir, pense assim: o conjunto de informações era muito menor do que o normal e, pior, o gestor tinha que se atualizar com muito mais frequência.
Mas existe o problema das meta-preferências. Ao decidir pela volta ao trabalho presencial, deve o gestor observar que conjunto de informações? Apenas parâmetros de saúde? Ou só variáveis econômicas? E os condicionantes políticos? São importantes? Uma pista é pensar um pouco nesta ótima reflexão do prof. Peter Boettke.
Logo no início, ele aponta as limitações importantes do problema da pandemia. Tomei a liberdade de reproduzir o slide. Ei-lo.
Note, por exemplo, o problema da ciência em tempo real. É o que tentei explicar quando falei do problema do conjunto de informações. O destaque das restrições políticas tanto às decisões de saúde quanto para as de economia é algo importante e que, no Brasil, foi marcante.
Digo, nem economistas, nem profissionais de saúde queriam reconhecer que suas decisões se dão sob uma restrição política. Bem, há exceções, claro. Infelizmente, o debate público supervalorizou estes que se diziam científicas ao mesmo tempo que acusavam os outros de não-científicas.
Muitas vezes o discurso ficava violento o que é sempre um sinal de que há motivações políticas subjacentes (você conhece algum exemplo de pessoas que, após ganharem exposição na pandemia, agora dizem querer concorrer a algum cargo público?). É legítimo ter aspirações políticas, mas, bem, você sabe…
IV.
Uma lição que fica? Bem, como disse o Diogo Costa: A partir deste ano, precisamos estar mais aptos para o imprevisível. Como fazer isto? Ninguém sabe (nem o Diogo, mas não falei isto para ele…). Depende de cada contexto. Cada equipe é uma equipe, já que cada tecnologia de produção é diferente, conforme o setor.
E ainda há que se considerar as diferentes restrições entre, por exemplo, setores público e privado. Ainda assim, acho imperativo que estejamos mesmo mais aptos para o imprevisível. A propósito, em outro texto, o mesmo Diogo (propaganda gratuita hoje…) falou da hesitocracia, o que inspirou meu texto sobre governança radical).
Aliás, eis minha digressão superficial: quem, ao menos uma vez na vida, já esteve em um treino de algum esporte (futebol, vôlei, aikidô, etc.) provavelmente aprendeu duas coisas básicas: (a) o treino intenso desenvolve a espontaneidade e, (b) parceiros diferentes envolvem movimentos sutilmente diferentes, o que ajuda a tornar alguns momentos inicialmente imprevisíveis em algo parcialmente previsível.
Volto a Fukushima.
O desastre de Fukushima foi evitado ou foi minimizado? A vida real não é como o mundo ideal. Não sempre. A equipe de Fukushima, os assim chamados ‘50 heróis’, foram, de fato, heróis. Infelizmente, a radiação contaminou parte do país e desalojou muitas famílias. Mas eles evitaram a hecatombe. A realidade nos impõe algum dano. Minimizamos danos de catástrofes e raramente o mínimo atingido é igual a zero.
Mortes ocorreram? Danos? Claro. O herói só é herói porque evita não só as mortes potenciais, mas minimiza mortes atuais. Gestores como os de Fukushima se sacrificaram e reconhecemos seu empenho.
A pandemia também tem seus heróis. Muito já se disse sobre os profissionais de saúde da linha de frente, tomando decisões difíceis sem muita noção do que poderia ser feito. Ou dos profissionais dos aplicativos de entrega, transportes, etc. que, expondo-se, ajudaram na reclusão (ou isolamento) de tantos outros.
Também tivemos gestores que, percebendo o perigo da pandemia, optaram por enviar seus funcionários para o trabalho remoto e buscaram construir as condições para o trabalho remoto a despeito das incertezas e das restrições políticas.
Fukushima passou, ainda que seus efeitos ainda perdurem. A pandemia passará, de forma similar. Mas uma coisa é certa: precisamos mesmo lidar melhor com o imprevisível.
Wonder - Vi, meio que sem querer, o filme Wonder (‘Extraordinário’, 2017), sobre o menino com o rosto desfigurado que enfrenta a crueldade das outras crianças e, aos poucos, aprende a viver. Divertido e sensível. Nunca achei que iria ver Owen Wilson e Julia Roberts em um mesmo filme (ainda mais como um casal).
É interessante ver meninos aprendendo a lidar com o que é estranho e desconhecido. A sinceridade brutal das crueldades iniciais, aos poucos, é substituída pela amizade. Como isso ocorre? Com a persistência. É necessário insistir em se mostrar vivo e presente. O garoto, com seu rosto assustador, deve vencer seus medos e os medos alheios, eis a lição.
Somos todos meio estranhos, de algum modo. Uns mais que os outros. Uns nos trejeitos, outros fisicamente. Mas é a convivência que pode aparar as arestas. O ambiente escolar tem esta potencialidade que, claro, necessita da inteligência e sensibilidade dos professores e administradores e, claro, dos pais.
É um bom filme.
Sociologia - O leitor já deve ter notado que tenho desenvolvido o hábito estranho de ler livros sobre humor. O último, de Terry Eagleton, Humor - o papel fundamental do riso na cultura (publicado em 2019 no original, em 2020 por aqui), tem um trecho que resolvi reproduzir por aqui.
Um sociólogo que conheço certa vez entrou em seu escritório na universidade e encontrou a secretária chorando. Depois de tentar consolá-la, ele caminhou pelo corredor e olhou para outro escritório, onde viu outra secretária chorando. “Uma secretária chorando é uma tragédia”, disse-me ele, “duas é sociologia”. [Eagleton, op.cit., p.49]
Não sei o resto dos sociólogos, mas este aí tem humor. É também engraçado lembrar que muita gente critica os economistas por seu apego à análise das decisões individuais, acusando-os, muito estupidamente, de individualistas (como se um carpinteiro se tornasse um madeirista por meio do exercício de seu ofício…) e que, estes críticos, frequentemente, são das ciências sociais…que não podem vir duas secretárias chorando que…
Em meio ao texto acadêmico, que é a tona do livro, encontram-se algumas boas piadas. Por exemplo:
Goldberg está perdido em uma montanha suíça no meio da tempestade e uma equipe da Cruz Vermelha, com cães, paramédicos e técnicos de resgate, procura ansiosamente por ele. “Goldberg”, gritam eles através da névoa, “onde está você? É a Cruz Vermelha!”. Uma voz débil responde: “Eu já doei este ano”. [Eagleton, op.cit., p.55]
Outro fato relatado no livro é o fato de que Mikhail Bakthin teria sido perseguido pelo regime soviético (a era dourada do stalinismo…) por ter escrito o livro A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Segundo Eagleton, a intenção dissimulada do livro teria sido criticar o regime soviético. O verbete da Wikipedia não menciona o fato (embora diga que ele foi perseguido pelo governo), mas nosso autor afirma que foi o livro que teria levado seu autor ao exílio.
Isto nos leva a uma piada da época em que a URSS fazia o que queria no Leste Europeu enquanto a esquerda brasileira fazia de conta que só existia ditadura no Brasil.
Na União Soviética, os oficiais do Partido dirigem carros enquanto as pessoas caminham, ao passo que, na Iugoslávia, as próprias pessoas dirigem carros e atropelam seus representantes eleitos.” [Eagleton, op.cit., p.66]
Eu sei, é um livro que tem seus bons momentos.
Por hoje é só, pessoal!
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