Batistas e Contrabandistas no Rio de Janeiro dos anos 20
Racismo de batistas e contrabandistas? Os trade-offs das políticas públicas que ninguém vê e mais Sofia e Gigi, não necessariamente nesta ordem.
É bom (re)ver você por aqui. Espero que esteja tudo bem. Pois bem, o v(1), n(34) tem como tema principal a ideia de coalizões políticas que surgem de grupos, aparentemente, muito distintos. Está pronto? Então, vamos lá!
Batistas e Contrabandistas - Bruce Yandle, em clássico artigo na Regulation, mostrou como coalizões políticas podem ser criadas a partir de interesses aparentemente tão distintos quanto os dos religiosos batistas e os fora-da-lei contrabandistas de bebidas alcóolicas. O insight ficou conhecido como batistas e contrabandistas (baptists and bootleggers)1.
Como batistas e contrabandistas se unem? Por meio do combate às bebidas alcóolicas. Um não deseja o seu consumo e outro deseja bater a concorrência. Um outro exemplo? O Wal-Mart.
I recall reading about firms that engage in “black ops” aimed at creating anti-Walmart Baptist coalitions, and I think there is a rich vein of research to be done on how bootleggers covertly engage and mobilize the Baptists. The bootlegger-and-Baptist world is one in which there is none righteous, no, not one: Smith and Yandle discuss Walmart’s entry into the rent-seeking society and its participation in the debate over the Affordable Care Act (ACA), a piece of legislation that might raise their rivals’ costs (p. 19). Among its ACA-related activities, Walmart gave a large donation to the Center for American Progress and signed a letter with both the center and the Service Employees International Union. [Carden, 2014]
Interessante, não? Mas voltemos à bebida alcóolica. Em um dos capítulos de seu A Cerveja e a Cidade do Rio de Janeiro, Teresa Cristina de Novaes Marques menciona os interesses políticos que se colocavam contra o consumo de bebidas alcóolicas na cidade, nos anos de 1930.
Juristas pensavam na bebida como uma variável correlacionada ao crime e médicos a correlacionavam com a degeneração da raça. Aliás, sobre isto, dou a palavra ao nosso conhecido, Oliveira Vianna.
[Para ele], (…) com a nacionalidade ameaçada pela degeneração psíquica da raça, para a qual o consumo de álcool tinha sua parcela de contribuição, cabia às elites promover políticas de intervenção na realidade mestiça do povo. [Novaes (2014) p.229]2
A despeito do tom marxista3 da autora, as evidências documentais que ela levanta também dão suporte à hipótese batistas-contrabandistas. Por exemplo, para alguns médicos, grandes cervejarias eram elogiadas por, supostamente, produzirem cervejas sob melhores condições de higiene4.
Como, na época, a concorrência das cervejarias artesanais (chamadas pela autora como de alta fermentação) no Rio de Janeiro não era de todo irrelevante, estes médicos se assemelham aos contrabandistas.
Já em termos dos batistas temos os juristas, as feministas (segundo a autora, “de esquerda” e “de direita”), com seus argumentos usuais contra a bebida (ou por conta do crime, ou por conta dos problemas que causavam às famílias).
O que há, então, de peculiar, na versão brasileira dos batistas e contrabandistas? Provavelmente a ênfase na questão racial por parte de médicos e juristas.
A propósito, não deixa de ser interessante notar como o discurso racista da elite intelectual não tenha conseguido impedir o consumo democrático da cerveja no país (sequer botecos com restrições explicitamente raciais existiram no país). Uma pequena vitória sobre o racismo, lembre-se, ainda é uma vitória.
Outro detalhe, na comparação com os EUA, é que o livro mostra que havia um grande destaque à concorrência de cervejas artesanais (alta fermentação) e industriais (baixa fermentação), em contraste com a discussão sobre o tema que se vê no caso norte-americano, mais centrada em destilados como o uísque.
Oliveira Vianna ressuscitou? - Em um número anterior brinquei com a ideia de um Oliveira Vianna ressuscitado em pleno século 21. Já que falamos do mesmo e sobre suas opiniões sobre o papel da raça, eis um trecho de seu Raça e Assimilação, na deliciosa grafia dos anos 30.
Os mestiços aryanizados, já favorecidos por dosagens altas de sangue caucasico, evitam passar por taes - e inscrevem-se bravamente na classe dos brancos, dissimulando-se na roupagem euphemistica dos “morenos”. Na classe dos mestiços só ficam realmente os pardos e caboclos caracteristicos; ainda assim quando fazem parte da plebe repullulante dos Jecas innumeraveis que puxam enxada ou fazem trabalhos servis; porque se acontece serem “coroneis” ou “doutores” - o que não é raro - para estas não ha como cogitar de “mulatismo” e “caboclismo”: elles não são senão “morenos”… [Vianna (1938), p.231]
É, leitor, Vianna não perdoava5. Mas o melhor mesmo é o Jeca para se referir ao trabalho na zona rural ou melhor, na roça. Jeca Tatu, Jeca Tatu… Ah, Jeca Tatu…
Sofia e Gigi - Após o início da era de pax felina entre Sofia e a rebatizada Gigi, confesso, passei a observar mais as diferenças das personalidades delas. Fica mais fácil quando não estão brigando, não é?
Pois Sofia segue sendo mais elegante, educada e extremamente mineira (desconfiada). Eu diria que é mais cautelosa (aversa ao risco). Já Gigi é mais impetuosa (amante do risco), descuidada e atrevida.
A diferença de idade entre elas, estimo, está entre 2 ou 3 anos. Ambas são jovens e, portanto, ainda brincam bastante. Sofia prefere água da torneira, algo que Gigi (ainda) não aprecia. Sofia sempre me busca para denunciar que alguém trocou alguma coisa de lugar e aprecia quando a acompanho em suas refeições. Gigi, bem, Gigi segue parecendo que não há comida em casa, embora menos afoita nos tempos recentes.
p.s. Leitores mais novos podem estar perdidos, mas venho falando das duas gatas aqui de casa em diversos números desta newsletter.
Canudos, máscaras e tartarugas - Esta veio do Orlando Tosetto. Imagina isto no grupo do zap da família? Aliás, o Orlando também está no Substack. É a Silly Talks. Eu havia programado este pequeno para bloco para o próximo número, mas depois da gentil menção dele, ontem, achei por bem trazê-lo para cá.
Fica melhor? Fica. Nos comentários deste seu tuíte encontramos o link para um artigo científico, discutindo o problema do descarte das máscaras. Bom, se canudos e máscaras podem sufocar tartarugas e se políticos respondem a incentivos…Ok, não serei (mais) irônico.
Ainda assim, uma questão simples emerge: caso tenha havido (houve?) algum estudo sobre o impacto de se obrigar o uso de máscaras, ele teria considerado a externalidade do seu descarte sobre o meio-ambiente?6
É o que temos para hoje. Espero que tenha gostado. A gente se vê em breve. Até que isto aconte….ah sim, antes de você ir, toma aqui uns links.
Mais máscaras - Bryan Caplan tem observações (que poderão soar) polêmicas sobre o uso de máscaras.
Jeca Tatu - Este canal tem o filme completo de 1960 com o impagável Mazzaropi.
Covid-19 e nós - É hora de ser um pouco mais realista quanto ao futuro da pandemia.
Liberdade Acadêmica na Suécia - Interessante entrevista com Olle Häggström.
Uma Escola de Governo que realmente teve resultados… - …mas talvez não da forma como se esperava.
Perdeu o doutorado porque criticou o governo. Fascis…ops, é de esquerda. - Não, não é piada e explica o motivo de muita gente que faz pós na República Popular da China evitar criticar o governo… de lá, o governo de lá porque aqui é outro país, né?
A autora fala que Oliveira Vianna teria dito algo sobre a relação do álcool com raças em seu Raça e Assimilação. Curiosamente, lendo-o novamente, na versão de 1938 (Coleção Brasiliana), não encontrei menção ao tema. Claro, posso ter lido de forma descuidada. Por outro lado, esta é a segunda edição do livro e, portanto, mudanças podem ter sido feitas.
No caso, um tom marxista moderno, em que não se dá tanta ênfase à posse dos meios de produção, mas sim a uma ênfase em cultura, elites e “povão”. Como já disse em outra oportunidade, um ponto alto do livro é a pesquisa documental da autora.
Em outro momento do livro vê-se um deputado federal (RN), Juvenal Lamartine, tentando reprimir o consumo de cervejas de alta (mas não as de baixa) fermentação, vinhos e aguardentes em um projeto que seria combatido pelos grupos de interesse ligados à produção de açúcar (ahá!).
Às vezes, sinto que algumas pessoas ressuscitaram este tipo de discussão nos dias de hoje.
Uma coisa é dizer que uma política pública se baseia na Ciência. Outra é que ela, de fato, tenha alguma Ciência em sua base. Ter ciência que a Ciência responde a incentivos, inclusive aos políticos e que isto ocorre sob qualquer lado do espectro ideológico é um bom início de uma trajetória seriamente…científica.