'Startups' e problemas de governança? Converse com Dom João IV que ele te dá umas dicas...
De como o Leviatã lusitano criou uma companhia que viria a ficar famosa nas provas de história dos colégios brasileiros, ainda que superficialmente...
Somos humanos (logo, erramos) - Na edição extraordinária que foi enviada havia uma imprecisão em um trecho do texto. O sagaz leitor Sabino me corrigiu e o texto que está no link permanente foi imediatamente corrigido. Está aqui. Obrigado, Sabino! Vou abater de seus débitos. Agora tenho evidências de que ao menos um assinante lê a newsletter! ^_^
Neste v(1), n(13), um pouco sobre startups e inovações governamentais!! Talvez até as duas! E ao mesmo tempo!!! Uau! Que moderno! Que chique! Então compartilha logo, respira fundo e vamos lá.
Comecemos com…o início: que diabos é uma startup? A Wikipedia anglo-saxã me diz que (*): “Uma startup ou start-up é uma companhia ou um projeto tocado por um empreendedor para buscar, desenvolver e validar um modelo de negócios escalável”. Já temos uma definição e nela vemos que não há exigência de marcos temporais: uma startup pode aparecer em qualquer momento da história. Ótimo!
Passo seguinte: pense em um exemplo de startup no século 17. Ok, vamos detalhar mais. Estamos na Europa, mais especificamente em Portugal. Há um problema sério para o Leviatã lusitano: Pernambuco foi ocupada pelos neerlandeses e a Coroa considera duas opções: (a) a paz, com a entrega da próspera capitania ou, claro; (b) partir para o confronto e ver no que dá. Não sei vocês, mas já sinto cheiro de startup.
Aí surgiu a ideia de se copiar um modelo que havia dado certo com os ingleses e com as Províncias Unidas (algo quase idêntico ao que hoje são os Países Baixos): usar uma ‘parceria público-privada’ rudimentar. Isso mesmo: um modelo de parceria que une governo e investidores privados na empreitada econômico-militar que eram as conquistas ultramarinas. Estamos a falar da Companhia Geral do Comércio do Brasil (CGCB, para poupar tempo).
Nos meus tempos de adolescente - em algum momento do século passado… - a CGCB aparecia brevemente nos livros-texto de história associada vagamente ao Padre Antônio Vieira. Pois é. A companhia é uma parente portuguesa dos modelos de sucesso que foram a Companhia das Índias Orientais britânica e sua homônima neerlandesa (**).
![](https://substackcdn.com/image/fetch/w_1456,c_limit,f_auto,q_auto:good,fl_progressive:steep/https%3A%2F%2Fbucketeer-e05bbc84-baa3-437e-9518-adb32be77984.s3.amazonaws.com%2Fpublic%2Fimages%2F0da61a98-da42-4342-83e1-b3087567061d_800x1233.png)
O tema das companhias mercantilistas, por si só, mereceria muito mais caracteres do que esta cartinha e eu nem sou um doutor no tema. É um universo para estudiosos. Há, por exemplo, autores que traçam as origens das corporações modernas até estas companhias (alguns as chamam de chartered companies). Outro exemplo? Também não faltam estudos sobre o papel dos diferentes incentivos no desempenho das mesmas (o mais famoso é o estudo do prof. Douglas Irwin: Mercantilism as Strategic Trade Policy: The Anglo-Dutch Rivalry for the East India Trade. Journal of Political Economy, v. 99, n. 6, p. 1296–1314, 1991).
Apesar de estarmos apenas numa humilde newsletter, arrisco afirmar que a CGCB foi uma startup. Uma startup nascida da união de interesses privados de Portugal, Pernambuco e do governo em uma típica “parceria pública-privada” da era dos Impérios. Uma verdadeira inovação governamental! Aliás, vale ressaltar o que o procurador geral da Fazenda, Pedro Fernandes Monteiro, explicitamente sugeriu ao rei.
À sugestão do monopólio, Pedro Fernandes Monteiro acrescentava o convite ao monarca para participar na Companhia, ‘não como Rei, se não como particullar, entrando pelo Livro da Companhia com quantia de duzentos mil cruzados, o que se pode fazer dando os navios que vierão de Amburgo, ho que valem’. [Costa, L.F. O Transporte no Atlântico e a Companhia Geral do Comércio do Brasil (1580-1663). Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portuguese, 2002 , vol.I, p. 511]
A constituição da CGCB é um prato cheio para quem gosta de estudar a atuação de grupos de interesse e o desenho de incentivos.
Um episódio interessantes, neste sentido, é o da dificuldade inicial na integralização dos capitais da companhia, a despeito de isenções fiscais. Diante desta situação, o governo tentou usar da coerção (que novidade!), afirmando que aqueles que iriam se valer das isenções do fisco - e que ainda não haviam contribuído - deveriam fazê-lo.
Você pode se perguntar sobre o porquê de alguém se sentir inseguro em ser um contribuinte de uma companhia na época da monarquia, a despeito de uma promessa de isenção. É uma pergunta pertinente (embora pareça exótica para quem é brasileiro e conhece os detalhes do desempenho do Brasil no Doing Business).
Uma pista: a dificuldade de se juntar os recursos parece ter a ver com a insegurança jurídica que se percebia falta de uma regular distribuição de dividendos (Costa, op.cit, p.520). Mais detalhes? Bem, fica para que for o livro.
Outro ponto interessante: os investidores privados não eram nada irracionais. Em meio às discussões de financiamento da armada, o governo propôs o pagamento em pimenta e pau-brasil. Os investidores, já cientes do que seria o produto mais economicamente interessante da segunda metade do século 17, preferiram:
…um novo direito sobre a arroba de açúcar e sobre cada caixa, tributo este a descontar nas avarias que se pagavam aos mestres dos navios, ‘porque tambem eles devem contribuir neste emprestimo’. [Costa, op.cit, p.507]
Temas modernos, não? Proteção aos investidores, arbitrariedades governamentais, confusão entre o público e o privado (quando interessa ao Estado) e a busca de recursos privados por conta da impossibilidade fiscal do Leviatã em, sozinho, criar a companhia estatal necessária para a retomada de Pernambuco. Como diz a internet: quem nunca?
A história da CGCB é caleidoscópica: não apenas economistas podem beber desta fonte para entender melhor a realidade. A descrição dos bastidores de sua constituição (ver o já mencionado livro da profa. Costa) me convence de que, se houvesse internet naqueles tempos, a polêmica nas redes sociais seria imensa.
Para mim, a CGCB é uma startup, um aperfeiçoamento das relações contratuais entre um estado monárquico e o setor privado. Seria justo e correto dizer que foi o resultado de uma inovação governamental. O modelo das companhias privilegiadas seria replicado várias vezes pelo Leviatã português, o que completa as características descritas na definição de uma startup.
Vale destacar a observação de outro importante estudioso das companhias mercantilistas da época de Pombal, António Carrera, de que as primeiras ‘companhias’ portuguesas surgiram visando a captura de escravos, ainda no século 15. Leitores interessados podem consultar seu As Companhias Pombalinas de Grão-Pará e Maranhão e Pernambuco e Paraíba, Editorial Presença, Lisboa, 1983. Uma inovação governamental, uma startup? Sim. Mas agora, não só para capturar escravos. O Leviatã português realmente era um estado empreendedor!
Adendo - Obviamente, existem muitos outros bons autores que tratam deste tema e que poderiam ser comentados aqui. Bom, isto fica para outras eventuais newsletters.
(*) A startup or start-up is a company or project undertaken by an entrepreneur to seek, develop, and validate a scalable business model.
(**) A companhia holandesa que invadiu Pernambuco era a Companhia das Índias Ocidentais. Inevitável não pensar naquela pegadinha da questão de múltipla escolha da prova final de história da 5a série. Espero que você tenha acertado.
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