Farinha pouca, meu pirão primeiro: sai da fila que a vacina é minha!
A escassez de um bem nos diz mais sobre o comportamento humano do que alguns nos dizem...ou não?
Eis uma edição extraordinária desta newsletter. Mais extensa que o usual. Um resumo que bem poderia ser o início de uma aula de Microeconomia. Ou de uma briga no grupo de amigos. Tanto faz. O importante é que a gente aprenda algo.
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Após muitos meses trancado em casa, acompanhando os discursos amorosos, nervosos, raivosos, edificantes ou desconexos nas redes sociais, um momento de epifania me veio enquanto eu preparava um café.
Do nada, Odin apareceu à minha frente, na forma de um arbusto falante, com chamas azuis, e me entregou não duas tábuas com mandamentos, nem mesmo uma Constituição nova enxuta. Nada disto. Ele me entregou a figura a seguir.
A figura - que Odin me trouxe, insisto - ilustra a evolução dos discursos nas redes sociais. O eixo vertical é óbvio e o leitor sentir-se-ia ofendido se eu repetisse, aqui, a sua descrição. Já no que diz respeito ao eixo horizontal, temos, da esquerda para a direita, os discursos mais comuns (poderia este eixo se chamar "eixo da manifestação das virtudes”).
Como auxiliar da figura, há um segundo eixo horizontal ilustrando a evolução dos discursos acerca dos estudos científicos divulgados nas redes sociais ao longo de 2020-2021.
O gráfico pretende mostrar um resumo da racionalidade do discurso que percebemos nas redes sociais. Racionalidade no sentido de que o discurso maximiza a diferença de benefícios e custos do indivíduo em cada momento do tempo. Ou melhor: ninguém publica algo que não seja para causar algum impacto, expressar sua opinião (e ainda ganhar seguidores e likes).
Começando… - Em meados de 2020, quando a probabilidade de termos vacinas para todos era baixa, o papo era cheio de boas intenções (e bem pouco efetivo, já que não se vislumbravam vacinas). Era algo como: salvem meus avós! Nem eu, nem o entregador do Ifood importamos tanto assim. Foi um período em que, inclusive, todos eram técnicos de futebol, economista e cientistas da Pfizer de mão cheia.
Depois, quando se vislumbrou a possibilidade de que alguns tivessem acesso às vacinas (uma queda nos valores da nossa variável representada no eixo vertical), o discurso mudou um pouco. Vovôs e vovós foram esquecidos ou reclassificados como ah, já estão sendo vacinados, ou pelo menos eu quero acreditar nisto. Surgiu, então, o discurso das comorbidades. O tema era tão quente que a imprensa mostrou uma ou outra matéria sobre atestados falsos, rapidamente arquivadas porque, afinal, quem não quer se vacinar? A disputa era para saber se sua sinusite era tão grave quanto a alergia a gatos do colega.
Como o tema é um pouco desagradável, o papo era, em geral, educado e discreto, com as pessoas limitando-se a conferir se poderiam obter logo uma vacina para si, sem muito questionamento sobre os fundamentos científicos (que eram muito fortes nas discussões da etapa anterior…). Aliás, ninguém se preocupava muito seriamente em saber se a diabetes seria uma comorbidade mais mortal que a asma. O importante era estar na lista da vacinação.
Finalmente, com a percepção crescente de que a disponibilidade de vacinas aumentava, a discussão passou para uma franja do terreno dos critérios para entrar na fila. Alfaiates passaram a querer ser trabalhadores do ensino porque, agora, é possível que estes se vacinem, sei lá, semana que vem (ainda que alguns sindicatos de trabalhadores do ensino insistam que não se poder ter aulas, o que nos diz algo sobre o quanto eles acreditam na eficácia das vacinas…).
Como consequência de discussões que, cada vez mais, tratam do lugar de alguém na fila, as discussões ficaram mais tensas. Rompe-se uma amizade aqui e acolá. Amigos viraram fascistas (ou neoliberais), etc. A humanidade não me decepciona nunca.
Obviamente, ninguém deseja não ser vacinado. A escassez da vacina é só um incentivo para que ele se mostre mais sincero no quanto pensa sobre outros poderem se vacinar. As mudanças no discurso são perfeitamente compatíveis com a lógica da ação humana auto-interessada, do bom e velho homo economicus que tenta ajustar seu discurso em seu grupo de amigos à medida em que a escassez relativa da vacina diminui e ele se vê disputando um lugar na fila (quem poderia condená-lo, né?).
Não é exatamente um sujeito como o retratado pela turma do as-pessoas-não-são-racionais-elas-têm-racionalidade-limitada-o-mundo-não-é-tão-frio-e-cruel-assim-você-precisa-aceitar-o-novo-normal. Nada disto. É o bom e velho ser humano de sempre.
A mudança do discurso me parece bem de acordo com a visão de que as pessoas têm interesses e agem dentro das restrições existentes. Não condeno ninguém por agir como um ser humano racional (afinal, somos todos assim), só observo que as pessoas continuam agindo como tal. O rei, leitor, está nu e não há nada demais com isto (exceto se você se incomodar com a régia nudez).
Ei, e o segundo eixo horizontal do gráfico? - Ah sim, o segundo eixo horizontal. No início da pandemia, as discussões sobre a exigência científica nos argumentos do debate beirava ao absurdo. Nem uma vírgula poderia ser usada se não passasse o texto pelos melhores testes científicos. Falavam, com suposta propriedade, sobre erros tipo I e II e outras tecnicalidades estatísticas. Houve ali, confesso, uma esperança minha de que as pessoas estivessem, de fato, preocupando-se mais com a metodologia científica.
Ledo engano.
Com o passar do tempo, o rigor demonstrado no discurso se adequou ao cansaço e à realidade do isolamento. Vacinas não precisariam ser mais tão eficazes assim porque, ora, elas nunca o foram. Passou-se a aceitar uma vacina assim, digamos, mais ou menos eficazes. Ou pelo menos uma diversidade de vacinas. Houve até um momento em que as pessoas oscilavam de opinião entre querer que o órgão regulador lhes garantisse vacinas com padrões mínimos de manhã e, à tarde, defendessem um libera-geral.
Na última etapa - mais recentemente - as pessoas, provavelmente vencidas pelo cansaço, passaram a aceitar critérios mais relaxados na ciência. Quer falar que o lockdown (não) funciona? Basta uma correlação e o resto é retórica que fica para os soldados dos exércitos de engajados nas redes sociais (com ou sem conhecimento de correlação ou causalidade…ou ambos). De defensores da sofisticação científica ao bom e velho uso da retórica com um gráfico de correlação.
Em resumo, o que temos aí é um fenômeno que qualquer bom estudante de Economia (com o básico de Microeconomia) identifica facilmente: indivíduos revelam suas preferências por meio de ações, não intenções. À medida em que percebem (ou pensam perceber) que uma vacina se torna menos escassa, seu discurso se torna mais e mais voltado para uma defesa de si próprio. Até ferozes inimigos do uso de máscaras se transforam em discretos entusiastas da vacina.
Mesmo a nobre - e correta, cientificamente falando - justificativa da externalidade positiva da vacina - vacine-se porque aí você evita contaminar seus familiares - transformou-se em deixa eu vacinar primeiro que aí eu não contamino os seus familiares. Espere seu lugar na fila, seu corrupto! Respeita os mano/mina (no caso, eu). Farinha pouca, meu pirão…(*)
Ações e intenções - Embora não garanta a vida eterna e nem mesmo uma proteção 100% eficaz, qualquer proteção é melhor que nenhuma. Por isto, claro, você não poder perder a oportunidade de se vacinar. Óbvio, não?
Curiosamente, algumas pessoas que abraçam este argumento (de que alguma proteção é melhor que nenhuma) com alegria também são aquelas que se recusam a aceitar quer um motorista de aplicativo ganhe algum dinheiro ao invés de nenhum pois isto seria uma precarização do trabalho. Alguma imunidade para mim, nenhum emprego para você. Talvez, agora, possam aprender algo. A esperança, como digo, morre, mas é a última.
Ei, mas e os políticos! - Mas não nos esqueçamos dos políticos. Eles também são racionais. No que diz respeito à vacina, numa situação em que esta não está disponível de imediato como, por exemplo, uma BCG, nossos representantes eleitos parecem atuar dentro de lógica similar ao que estudiosos da Escolha Pública (Public Choice) conhecem como Batistas e Contrabandistas.
Batistas e o quê? - O termo, cunhado por Bruce Yandle, diz respeito ao fenômeno em que grupos de interesse muito distintos se unem para atingir um certo objetivo. O exemplo em questão é o da união dos batistas e contrabandistas (de bebidas alcóolicas) que se unem a favor de restrições à venda de bebidas alcóolicas. Um, com opiniões morais sobre o consumo de álcool e outro, claramente interessado em ganhar mercado às custas da expulsão dos concorrentes.
No contexto da vacina escassa, um produto eleitoralmente interessante consiste em agradar alguns grupos adiantando-lhes lugares privilegiados na fila. Como poucos grupos não geram tantos votos, agrupa-se alguns deles e cria-se uma categoria especial de cidadãos que, por algum critério, deveriam estar na frente na fila da vacina. É o que parece ocorrer.
Resumindo, a escassez da vacina, tão necessária e, não à toa, tão desejada, gera estes fenômenos no mundo real. As ações, mais do que tudo, revelam suas preferências melhor do que suas intenções e políticos habilidosos estão sempre atentos às vozes de seus eleitores. O resultado? Meia-entrada progressivamente para mais e mais grupos.
Eu só queria mesmo ver uma votação para ver quem tem que pagar a conta. Teríamos uma apaixonada defesa de cotas para que apenas, digamos, trabalhadores do ensino, motoristas de táxi e oftalmologistas pagassem a conta? Acho que sabemos a resposta.
(*) como bem me lembrou o Sabino, nem este argumento se sustenta porque o vacinado ainda pode contaminar os outros (use máscara!)