Uma manhã. ChatGPT, a fama e o descuido. Livros. Amar é... Como explicar o avanço de crenças estapafúrdias sobre o funcionamento da economia? Etc.
"Não faças processo contra qualquer homem sem motivo, quando ele te não fez mal algum" (Salomão, provérbios)
Chegou o v(3), n(8) da newsletter. O meu tempo anda um pouco mais escasso que o habitual nestes últimos dias, mas, cá estamos. O subtítulo? Aparece no início do capítulo V de Roupa Suja, de Moacyr Piza, reeditado em 2022 pela Chão Editora.
Uma manhã - Sentei-me para escrever algo. Ao meu lado, na janela, Sofia e Gigi, as duas gatas ouviam o gorjear dos pássaros, sempre ocultos nas árvores do bairro. ‘As aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá’, diria Gonçalves Dias, hoje, lembrado apenas como o nome de uma rua ou como uma leitura obrigatória para a prova de língua portuguesa.
Não saberia dizer se as gatas concordam com o consagrado poeta. Parece-me que todos os gorjeios são como um gatilho para o instinto primal dos felinos, caçadores por natureza. Talvez não sejam só os homens que são todos iguais (e as mulheres não prestam). Os gatos, neste aspecto, são todos muito parecidos.
Verdade, devo reconhecer, é que os simpáticos felinos também têm suas personalidades, diferentes (quem já conviveu com um sabe bem como é), tais como homens (que não prestam) e mulheres (que são todas iguais). Enquanto meus pensamentos matinais se perdem em gatos, gatas, homens e mulheres, observo que o céu continua nublado. Certamente vem chuva hoje.
Li um capítulo pequeno de um livro que já teria encerrado não fossem os afazeres do cotidiano. Nas últimas semanas, minha atenção foi desviada para outros assuntos, mais urgentes e importantes para a minha (sobre)vivência. Afinal, mesmo com ChatGPT, ainda nós, seres mais ou menos humanizados, mas certamente humanos, ainda precisamos de alimentação. Não se vive só de moedinhas de um mundo virtual.
O café, ao meu lado, já está no fim. Outra xícara é preemente.
Eis um exemplo de manhã ordinária que tenho, ultimamente.
ChatGPT, a fama e o descuido - Ainda sobre o divertido aplicativo, nestes dias, uma brasileira ganhou seus 2 segundos de fama ao anunciar que produziu um livro para crianças totalmente gerado por esta ferramenta.
Só que a consistência da história não resistiu à leitura mais atenta de um amigo escritor, o que nos diz um pouco sobre o descuido das pessoas no uso de tecnologias como esta. Como apontou um ótimo ex-aluno meu (que tem explorado a inteligência artificial), faltou aquele trabalho básico de pensar antes de pedir algo para a ferramenta, revisar cuidadosamente o que é produzido, etc.
Afinal, se até nossas redações passam por correções de nossos professores, porque é que a versão artificial de minha inteligência não teria que passar por procedimento similar?
Livros - Fazendo jus ao título desta newsletter, comecei a ler o Liberdade, para quê?, de George Bernanos. Até o momento (muito pouco material lido, devo dizer), nada de muito impressionante. Como vários amigos (de boas famílias) falam muito bem do livro, vou lhe dar uma chance.
Encerrei o Monsenhor Quixote, de Graham Greene, este sim, muito divertido (e já há outro do autor na fila…).
Amar é… - Quem não se lembra das figurinhas com aquele casalzinho? Alguém colocou várias delas em um blog, lá pelos idos de 2011.
Como explicar o avanço de crenças estapafúrdias sobre o funcionamento da economia? - A figura a seguir, retirada de CAPLAN, B. Rational irrationality and the microfoundations of political failure. Public Choice, v. 107, n. 3–4, p. 311–331, 2001, ajuda a entender porque muito do negacionismo econômico (mas não somente ele) é defendido por muita gente, a despeito dos indícios (evidences) trazidos pelos artigos científicos de boa qualidade.
Quando o indivíduo percebe que sua crença sobre algo, por mais contrária ao que dizem os especialistas que ela seja, é mais aceita por seus semelhantes, então, pode-se dizer que menor é o custo, para o mesmo indivíduo, de expressá-la em público.
Por exemplo: caso todos acreditem que a falência de uma grande varejista seja causada por fatores sobrenaturais, você, que acredita que um dos fatores sejam os unicórnios, fica mais à vontade de expressar sua crença nos belos cavalinhos chifrudos afetando a situação econômica da varejista.
Basicamente, o insight do modelo avançado por Caplan é que a irracionalidade segue a lei de demanda (na figura, para fins didáticos, a curva de demanda é a reta, em cor preta, negativamente inclinada).
A figura nos mostra também que, se o preço de expressar suas crenças irracionais (no sentido de que são totalmente descoladas da visão dos experts) for zero, você vai ‘se soltar’ e não perderá tempo em contar para todo mundo sobre os, digamos, unicórnios. É a reta vermelha, localizada sobre o eixo horizontal, que é desenhada supondo que o custo seja constante.
Ainda na figura, a curva azul paralela ao eixo horizontal encontra a curva de demanda em que o preço de se expressar crenças irracionais custa caro ao indivíduo. Este custo pode ser pensado, por exemplo, como um potencial de estigma social (‘como assim, este maluco acredita que a loja faliu por causa de unicórnios?’). Note que, assim, a quantidade de irracionalidade expressa em público pelo indivíduo é baixa (veja onde a linha pontilhada em azul toca o eixo horizontal).
Um exemplo, sempre citado em livros-texto de Economia Internacional, é o mito de que o comércio seria um jogo em que um indivíduo só ganha se outro perde (em linguagem da Teoria dos Jogos: o comércio seria um jogo de soma zero). Todo aluno de Ciência Econômica sabe que este mito não se sustenta. Comércio são trocas voluntárias e ninguém voluntariamente troca nada se não ganhar. Trocas voluntárias são boas para cada um dos envolvidos na mesma.
Políticos e grupos de interesse contribuem para aumentar distorções (ou esta irracionalidade) ao insistirem em discursos que negam ou camuflam os indícios em prol de vagas afirmações sobre 'vontade política' ou ‘pseudo-determinantes’ de resultados econômicos.
Pense, por exemplo, nos políticos que, primeiro aumentam o custo dos negócios em um setor criando regulações em excesso e, depois, culpam o mercado (ou seja, as trocas voluntárias) pelos preços elevados no mesmo setor. O excesso de regulações, diz-nos a Ciência Econômica, neste caso, é o culpado pelos altos preços, mas o discurso destes políticos, por mais irracional que seja, é atraente para alguns.
Supondo que o discurso destes políticos tenha algum sucesso (o que é bem comum, não?), em termos da figura, a curva azul deixa de existir, sendo substituída pela sua similar, a curva em cor verde (outra forma de dizer isto é que a curva azul se desloca, paralelamente, para baixo). Esta mostra que o preço de expressar crenças irracionais, agora, é mais baixo do que anteriormente e que a quantidade expressa destas crenças será maior do que antes.
Em português: quando discursos que negam os princípios básicos da Ciência Econômica têm alguma aceitação social, os políticos deslocam para baixo o custo do indivíduo expressar suas crenças irracionais. Ele poderá até comprar produtos chineses, mas defenderá que o comércio com a China é ruim para o país.
Quando alguém, por exemplo, diz que a independência da autoridade monetária deve ser ‘desprezada’, a despeito dos fartos indícios trazidos por anos e anos de pesquisas, favorece-se o negacionismo econômico. Resultado? Pressiona-se para baixo o custo da irracionalidade expressa e mais gente com ideias estapafúrdias (do ponto de vista do que dizem os especialistas em Ciência Econômica) se sente à vontade para se expressar nas redes sociais.
Ironicamente, pode-se até aumentar a estigmatização de quem defenda crenças mais aderentes ao pensamento científico (e, se você quiser, pense nos radicais identitários, que, como neomaoístas, exigem que pessoas se desculpem em público, ainda que, muitas vezes, estas mesmas pessoas tenham o amparo da Ciência ao seu lado). A tal tolerância, pressuposto do tal pluralismo (ou da tal diversidade)? Evapora ao calor do ódio alimentado pelos mais aguerridos defensores de crenças irracionais…
Observe que isto não é diferente de se negar o poder de uma vacina no combate a uma doença: é exatamente a mesma coisa. O modelo não se limita ao caso da Ciência Econômica, de jeito nenhum. Toda e qualquer crença científica está sujeita à rejeição por parte das pessoas. A irracionalidade está por aí, só esperando a hora de colocar suas garrinhas de fora...
Isto nos leva a um segundo ponto: diferentes políticos têm diferentes agendas e, assim, podem escolher estimular diferentes crenças irracionais dos eleitores. Ou seja, um político sério, digamos, em assuntos de política fiscal, pode ser um negacionista em termos de políticas de saúde (e vice-versa).
Sim, é possível alguém defender o uso da vacina no combate à poliomielite e, ao mesmo tempo, defender uma moeda única entre dois países que não cumprem os requisitos básicos para sua criação, conforme a Ciência Econômica. Se este alguém for um político influente, o estrago pode ser considerável, em termos de bem-estar de todos os cidadãos do país.
Generalizando, um político pode expressar crenças mais ou menos irracionais em diferentes dimensões, o que dificulta, ao eleitor mais educado (o que não deve ser confundido com ‘mais inteligente’, embora haja uma relação entre ‘educação’ e ‘inteligência’) identificar se o político é ou não sério em termos do que ele diz defender como agenda social.
Estudar a irracionalidade racional é uma agenda de pesquisa que mereceria maior atenção? Sim. Eu gostaria de ver mais estudos sobre o tema, com dados do Brasil.
p.s. Sim, eu havia tratado brevemente do tema aqui.
p.s.2. Veja também: KURAN, T. Chameleon voters and public choice. Public Choice, v. 53, n. 1, p. 53–78, 1987.
p.s.3. Não só políticos adoram propagar crenças irracionais. Empresários improdutivos (na terminologia de Baumol), que se dedicam ao rent-seeking ao invés de buscarem lucros satisfazendo consumidores, também. Afinal, o rent-seeking só existe se o governo cria rendas artificiais para estes empresários. Aliás, é por isto que nem os chamo de empreendedores. Prefiro o termo empresários improdutivos (ou mesmo destrutivos). Nem vou mencionar os influencers ou youtubers/tuiteiros amadores que, famosos, falam asneiras mil. Sim, a irracionalidade também ajuda a sedimentar sua fama e prestígio entre membros de uma tribo…
Sindicato? Não, obrigado. - E nem estou falando dos milhares de Jimmy Hoffa existentes neste continente.
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Onigiris - Para encerrar…
Por hoje é só, pessoal e…até mais ler! (*)
(*) “até mais ler” foi plagiado do Orlando Tosetto, cuja newsletter, aliás, você deveria assinar.
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Não fica bravo, mas o que eu mais gostei desta edição foi a dica do “Amar é” kkkk