Neste v(2),n(9), minhas impressões sobre um ótimo livro de um tal de Antonio Risério que comprei por vê-lo sofrer apenas ataques ad hominem por parte de um pessoal muito agressivo no Twitter. Além disso, tento responder a uma pergunta de um leitor (ou leitora). Claro, mais alguns comentários sobre outros temas.
Extrema-esquerda no Brasil - O livro do esquerdista Antonio Risério, Sobre o Relativismo Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária (Topbooks, 2a edição, ampliada, 2020) dá um excelente panorama dos principais perigos trazidos pela extrema-esquerda brasileira.
Caso você não tenha lido meu texto sobre o radicalismo da extrema-direita, ele está aqui. Eu falava dos traços psicológicos que a literatura apontava como típicos de radicais, com base em trabalhos de Diego Gambetta. Eu também disse lá que sentia falta de estudos similares mapeando a extrema-esquerda brasileira.
O livro de Risério não preenche esta lacuna, mas ajuda a ter uma visão dos principais perigos que a extrema-esquerda brasileira apresenta à democracia. Fica-se com a impressão de que a esquerda moderada e a direita moderada (ambas, sempre dispostos ao diálogo e à tolerância) serão, cada vez mais forçadas a algum tipo de aliança em prol da manutenção de alguns valores básicos que, achávamos, tinham sido firmemente estabelecidos na sociedade.
Assim como alguns se queixam da volta de algumas doenças erradicadas, o aumento da população de radicais (à direita ou à esquerda) tem mostrado que é bem verdadeira aquela frase que afirma que o preço da liberdade é a eterna vigilância.
Contudo, observo, existe uma assimetria no tratamento dos radicais. A extrema-direita tem sido exaustivamente estudada, mas a extrema-esquerda tem sido sistematicamente ignorada. Isto prejudica nossa compreensão dos perigos dos radicalismos.
Tem legitimidade Antonio Risério para, sendo historicamente de esquerda, criticar a complacência de seus aliados com a extrema-esquerda de corte identitário. Além de cunhar o ótimo termo racifascista neonegro, seus diversos relatos mostram a luta pelo monopólio da virtude esquerdista por identitários (que andam vencendo os moderados, pelo visto…).
Se considerarmos a totalidade dos radicais, podemos pensar que juntamente aos racifascistas neonegros temos os racifascistas neobrancos, embora eu não tenha visto manifestações tão numerosas destes últimos em relação aos primeiros. Claro, o menos estudado destes grupos, no Brasil, são os radicais islâmicos que, se não são tão atuantes no país, não são uma ameaça fantasiosa em termos continentais (um exemplo, aqui).
Voltando ao livro, gostei da sinceridade do autor (e de seu estilo). Também é muito revigorante ler sua defesa irrestrita da liberdade de expressão e sua disposição ao diálogo.
Várias pseudociências que vemos por aí - e que já tinham sido destrinchadas por Alan Sokal e Jean Bricmont (aliás, sempre mencionados por Risério) - são bastante criticadas pelo autor. Honestamente, acho que pouco resta do discurso de areia dos radicais, mas, eu sei, o poder destruidor das milícias digitais muitas vezes dá uma sobrevida aos argumentos mais insanos…
Divertido, no livro, é o frágil ‘conceito’ de apropriação cultural sendo desnudado de forma irônica. Um ótimo momento:
Tomate é asteca. Logo, vamos parar com essa brincadeira de mau gosto de ficar fazendo pizza na Itália. [p.83]
Um outro excelente insight de Risério, sobre a estranha contradição entre universalismo (no discurso) e particularismo (do grupo de interesse identitário):
…sinto-me inclinado a definir o ‘novo espaço público’, de que fala Bosco, não como verdadeiramente público, mas, algo paradoxalmente, como uma espécie de condomínio público de espaços privatizados. [p.132]
Fala-se em “novo espaço público”, mas a exclusão de terceiros dos grupos sob o pseudo-conceito científico de ‘lugar de fala’ (para mim, um ‘lugar de falha’) cria um simpático fascismo que, aparentemente, valoriza o indivíduo (você é o único com lugar de fala de falar de si mesmo) enquanto exclui qualquer outro da conversa. Impossível não pensar na ideia dos benefícios concentrados, custos difusos da literatura de Public Choice.
De certa forma, sua análise me remeteu à teoria dos grupos de interesses de Mancur Olson Jr (conhecido como Mancur Olson por muitos). Embora Risério não seja economista e siga outra matriz ideológica, é minha opinião que ambos convergiriam numa conversa sobre grupos de interesse e a extrema-esquerda brasileira em seu ramo identitário.
Voltando ainda ao meu ensaio (já citado aí acima) sobre radicais de direita e psicologia política, lembro que Helgio Trindade fez um trabalho muito interessante sobre os integralistas e, eu também disse lá no mesmo ensaio, seria muito importante que estudássemos os radicais da esquerda porque, afinal, os que prezam a democracia precisam conhecer bem seus inimigos.
Evitaremos a volta de doenças erradicadas se nos vacinarmos assim como evitaremos a corrosão da democracia se não nos calarmos diante das ameaças de grupos fascistas só porque são os seus favoritos.
Academia e Liberdade - Poucos responderam às minhas duas perguntas sobre a newsletter (mas o formulário seguirá aberto, ok?). Uma observação que foi feita - e já não é a primeira vez que me perguntam isto (o Mano Ferreira me perguntou a mesma coisa, mas não sei se o vídeo ainda está no ar). Assim, vou tentar responder ao leitor (ou leitora).
Reproduzo a pergunta.
Como se efetivar como docente do ensino superior (passar no doutorado, na seleção de professores etc) sem ceder os princípios para uma ideologia que domina os campi e persegue as demais.
As IES públicas (e quase todas as privadas) brasileiras não se guiam pelo liberalismo político, filosófico ou econômico. As privadas, claro, querem lucros (e aí, tudo o que Risério disse em seu livro se aplica). As públicas são instituições contaminadas pela obesidade política, embora se possa encontrar uns centros de excelência em pesquisa aqui e acolá.
O que quero dizer com isso é que a gerência das privadas é eficiente, economicamente. No caso das públicas, a eficiência não é a econômica, mas a política e, como nos ensina a Public Choice, as duas coisas não coincidem sempre (a referência clássica é este texto de Weingast, Shepsle e Johnsen).
Exemplo simples: pode ser eficientemente construir um estádio de futebol na sua cidade com recursos públicos quando os custos são dispersos por todos os cidadãos do país, mas esta eficiência é política, não econômica. A econômica consideraria efetivamente quem usa o estádio na consideração dos custos.
Contudo, o(a) gentil leitor(a) não me parece muito preocupado(a) com a administração das IES. A pergunta é como sobreviver com alguma dignidade em um ambiente ideologicamente adverso (ou mesmo perverso).
Para esta pergunta, só posso oferecer alguns insights relativos aos departamentos de Ciência Econômica, que conheço mais de perto e a minha impressão é a de que minhas recomendações não serão muito inovadoras. Tentei fazer uma lista do que acho mais importante. Espero que ajude.
Aí vai.
a) Autocrítica - Um bom acadêmico é cético e mede os outros com o mesmo rigor com que se mede. É a autocrítica afiada. Para sobreviver na academia, independentemente da questão ideológica, é preciso ser e mostrar competência. Seja sempre o maior crítico de si mesmo.
b) Estudar - É meio óbvio que, por mais que existam favoritismos aqui e ali, os que mais estudam ainda são os que mais se destacam e, quase sempre, são estes os vitoriosos. Muita gente reclama de perseguição na academia, mas poucas vezes ouço alguém narrar longa e detalhadamente sobre o que fez para combater a perseguição.
c) Não misture sua ideologia com a ciência - Não sou filósofo e nem vou entrar neste debate infindável sobre ideologia, fé ou ciência. Meu ponto é: se você estuda Economia, leia os manuais, faça os exercícios e se sobressaia no uso das ferramentas. A Ciência Econômica não é uma Medicina, mas também não é mais uma ciência jovem: já existem até manuais de Economia para concursos públicos. Você não entenderá o sentido da vida e nem saberá das questões misteriosas da humanidade, embora possa apreciar ambas as questões. Especialize-se, sem perder sua curiosidade.
d) Seja estratégico - Ok, você é um filósofo liberal e quer ensinar em um departamento de filosofia. Obviamente, você tentará encontrar um departamento que tenha acadêmicos que sejam competentes e honestos, intelectualmente falando. Como vive na Terra, encontrará uma caricatura disto. Ninguém (mesmo) é perfeito. Informe-se sobre o departamento para o qual pretende fazer parte. Saiba não só das publicações dos pesquisadores, mas também de seus posicionamentos públicos. Não é que seja um erro ser o único liberal em meio a um departamento cheio de socialistas. A tolerância e a convivência pacífica até podem existir, mas as dificuldades podem ser menores se você conseguir um lugar com algumas pessoas com as quais possa conversar sem brigar a cada frase. E relacionamentos - preciso lembrar? - podem mudar com o tempo.
e) Boletos - Lembre-se que você ou qualquer outro membro do departamento de sua IES, pública ou privada, não pode chegar ao fim do mês gastando mais do que recebe. Infelizmente, nem sempre sua produtividade com pesquisa é apreciada. Muitas vezes, o importante é ter 4 turmas e se matar durante a semana. Há muita coisa a ser mudada para melhor nas IES. Enfrente uma briga de cada vez. A escolha das brigas é subjetiva, depende dos custos que cada um enfrenta. Mas no fim do mês, lembre-se, há boletos.
f) Personas destrutivas - Todo grupo de pesquisadores é um grupo de seres humanos que são racionais. Ainda que possam ter vieses comportamentais, são racionais na maior parte das decisões. Há que se aprender a lidar com os colegas evitando ser usado e também evitando conflitos. Inevitavelmente, existirão situações em que você acabará brigando de vez em quando. Faz parte.
g) Seja um bom professor/pesquisador, não um bom populista - A tentação de ser populista e afagar alunos e diretores é parte do aspecto humano dos acadêmicos. Há mesmo situações em que os gestores estimulam estes comportamentos porque pensam que estão maximizando lucros. Mas os alunos reconhecem um tratamento justo, ainda que não gostem, inicialmente. Sua reputação é construída com boas aulas e com boas pesquisas (um pouco de esforço na divulgação da mesma não fará mal, claro).
h) Algo que aprendi é que sempre existem 5 (cinco, não quatro, nem seis, ok?) alunos interessados em avançar seus estudos. Procure sempre ensiná-los a pescar. O peixe não deve ser entregue de bandeja (sequer frito). Seja criativo em sala de aula. Lembre-se que, sempre que possível, você deve ganhar o respeito da turma (sim, sempre há uma exceção, um aluno psiquiátrico, mas estou falando do geral). Os melhores alunos nem sempre são os de melhores notas, mas sim os mais interessados em aprender (sim, tem que saber se esquivar dos mentirosos, mas isso faz parte da vida).
i) Finalmente, sabe, leitor ou leitora que me perguntou isto, a vida acadêmica é desgastante. Aconselho um hobby como um futebol no final de semana, ler ficção (contos, poesias etc.) ou mesmo escrever uma newsletter. O hobby deve ser algo que ajude a descansar. As externalidades disto são positivas. Confie em mim, eu sei o que estou dizendo (ref. ‘Na mira do tira’, um divertido seriado dos anos 80 ou 90).
Para terminar, lembre-se de que você vive no mundo real, não numa abstração. Assim, a mudança de comportamento dos que estão à sua volta (e o seu também) nem sempre é rápida. Você pode começar hoje a ser um bom professor, mas seus alunos só mudarão ao longo dos anos. Seus colegas? Poderão até mudar, mas sabemos que mudar é mais difícil quando se é adulto.
Talvez as minhas dicas não sejam muito boas. Certamente não são originais. Espero, ao menos, ter provocado a reflexão do leitor amigo que me enviou a sugestão.
Ainda a Academia - Aliás, sobre professores e alunos, por força do dever (mas eu confesso que tenho gostado de ler sobre o tema), acabei me deparando com um artigo em Economia da Educação que me chamou a atenção.
Anna e Wallace, os autores, tratam de um tema que nem sempre é destacado nos estudos sobre políticas públicas voltadas à educação: a ineficiência do gasto público no setor.
O argumento deles é que nem sempre este gasto gera maior mobilidade social ou ganhos para o trabalhador. Por que? Porque existem evidências de que há um contingente não desprezível de pessoas muito mais qualificadas para um trabalho. Consequentemente, ele recebe menos do que deveria, dado o seu nível de capital humano (o nome técnico que os economistas dão à ‘educação’).
Um trecho da conclusão do artigo, para adoçar…
Em suma, os resultados mostraram que egressos ‘overeducated’ têm uma redução salarial quando comparados com seus pares cuja ocupação corresponde à sua escolaridade. Tal redução se mostrou mais forte para indivíduos formados nas áreas de ciências exatas e saúde, e do sexo feminino.
Interessante, não? O artigo pode ser obtido sem custos (exceto o seu custo de oportunidade de clicar aqui).
Gatos pretos no Japão - A moçada curtia um felino lá no Japão do século 9.
Olavo de Carvalho - Nunca foi tão sincero quanto nesta primeira página da sexta edição de O imbecil coletivo. Imagino que, nas edições anteriores, também deveria estar lá (foto a seguir).
Relendo o livro, noto que esta sarcástica ficha se revela, hoje, bastante profética. Lembro-me de ter pensado em fazer algo similar, na época, para uma apostila de exercícios. Claro, desisti e troquei por um “manual de instruções” em linguagem de bula de remédio que era bem popular com os alunos. Mais popular do que os exercícios em si.
Sobre o falecido Olavo: nunca fui seu aluno e li dois ou três livros dele. Gostava dele no final dos anos 90. O estilo sarcástico que apresentou neste livro lembrava Paulo Francis e, portanto, era muito divertido. Dizer que não concordava com tudo o que ele escrevia seria como dizer o óbvio e o leitor desta newsletter é mais inteligente que a média.
Rapidamente - Por motivos de força maior, é bem possível que eu não consiga escrever dois números semanais da newsletter. Tentarei manter a frequência (lembra do hobby que mencionei lá em cima?), mas se notar que estou tropeçando…bem, mas é só uma ideia. A conferir.
Por hoje é só, pessoal!
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