Engenheiros da Jihad, Integralistas e o radicalismo em geral
Uma breve resenha comparativa de dois livros que tratam do fenômeno do radicalismo.
Bom dia e seja bem-vindo! Neste v(1), n(46) temos um texto em três atos sobre dois estudos quantitativos que pretendem tipificar, psicologicamente, sujeitos mais chegados a um radicalismo ‘de direta’, ou ‘de esquerda’ ou ‘islâmico’. Outros temas, claro, ao fim.
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Ato I - Engenheiros terroristas
Engenheiros radicais - Em 2016, Diego Gambetta e Steffen Hertog publicaram um polêmico livro cuja tese central consiste em explicar a prevalência de engenheiros entre radicais islâmicos.
Quando o li, em 2019, achei interessante. Contudo, neste semestre, lendo com mais duas pessoas, minha impressão do livro piorou. Ok, não me entenda mal, o livro ainda é muito interessante.
Agora, quanto às evidências a favor da tese dos autores, parecem-me menos decisivas do que imaginei. Não ajuda muito o site do livro ser um link morto na página do próprio Gambetta (teste você mesmo). Também não ajuda o fato do modelo estimado pelos autores no último capítulo (antes da conclusão) não ser apresentado no livro.
Digo, os resultados estão lá, mas apenas se fala dos efeitos dos coeficientes estimados. Até aí, nada demais. É um livro comercial, tem que ser editado. Mas a bibliografia do livro sequer menciona o artigo (você, claro, pode encontrá-lo perdendo algum tempo na internet). Acho que estes são os pontos principais de minha queixa quanto ao livro.
Deixando de lado meu mau humor, sim, há muita coisa interessante no trabalho de Gambetta e Hertog. Os autores fazem um levantamento muito interessante de traços psicológicos presentes em alunos de cursos de educação superior que, supostamente, seriam úteis para classificar um indivíduo mais à direita ou à esquerda do espectro ideológico.
Por que tantos engenheiros islâmicos se tornam terroristas? Os autores defendem a tese de que existem dois mecanismos: (a) privação relativa (relative deprivation) e; (b) propensão ideológica.
O primeiro diz respeito a quanto um islâmico espera da vida ao cursar, digamos, engenharia e o quanto ele se decepciona posteriormente. A história dos países do MENA, dizem os autores, mostra uma expectativa muito alta com a profissão que não teria sido realizada.
Já a propensão ideológica diz respeito às características do próprio indivíduo que é o ponto mais interessante dos autores, explorado, com mais rigor, no último capítulo do livro.
Os traços psicológicos usados pelos autores são: (i) need for cognitive closure; (ii) in-group bias; (iii) proneness to disgust; (iv) simplism. Estes traços seriam fortemente encontrados em engenheiros e seriam traços típicos de movimentos de extrema direita e de radicais islâmicos. Simetricamente, a extrema esquerda é caracterizada pela menor presença dos mesmos traços.
Claro, o que todo mundo quer saber: em termos de educação superior, indivíduos das humanidades e ciências sociais são geralmente os que se associam ao extremismo da esquerda. Não que seja algo muito novo, claro. O interessante, como dito acima, é o caso dos engenheiros.
Mas, que traços são estes? O primeiro, o need for cognitive closure, diz respeito à preferência de uma pessoa por ordem. Segundo os autores, abrange, dentre outros aspectos, a repulsa à ambiguidade.
O segundo, in-group bias, é o viés que um indivíduo em, digamos, olhar positivamente para sua bolha e negativamente para fora dela. A cultura do cancelamento que vemos hoje, imagino, é um bom exemplo deste viés.
O proneness to disgust é um traço que, dizem os autores, é fortemente presente na extrema direita. Um islâmico radical não discrimina um imigrante, desde que ele seja islâmico. Um nazista alemão não discrimina um irlandês se ele não for judeu. O traço diz respeito a alguma percepção de ‘pureza’.
Finalmente, simplism, é a noção de que problemas multifacetados, complexos, teriam soluções simples. Por exemplo, o aumento do preço do feijão, para alguém com este traço, não se deve ao funcionamento das leis de oferta e demanda, mas a conspiração de produtores de capitalistas. Ou de judeus.
No artigo mencionado acima, os autores notam que, mais recentemente, a Al-Qaida já teria uma clara noção do que precisariam observar em seu processo seletivo.
There is some evidence of recruitment being based precisely on individual traits coherent with such dispositions. The ‘‘constitution’’ of al-Qaeda from the late 1980s says that members should ideally have a college degree (Wright 2006, p. 42), and a training manual for jihadists mentions a series of specific traits that recruiters seek: ‘‘discipline and obedience, patience, intelligence’’ (p. 18), ‘‘caution and prudence’’ (p. 19), and ability ‘‘to observe and analyze’’ (p. 20). [artigo citado acima, p.221]
Dito isto, ao final dos encontros em que discutimos, eu e dois ótimos alunos (Ari e Maurício) o livro, pensei no que li, muito tempo atrás, sobre o integralismo de Plínio Salgado. Tenho guardado na estante alguns livros sobre o assunto (em algum momento eu pensei em fazer uma pesquisa sobre…) e, bom, nada como revirar o passado.
<interregno, pausa para ir ao banheiro, tomar um café e pegar um pedaço de pizza na geladeira>
Ato II - Integralismo
Em Integralismo, DIFEL, 1974, Hélgio Trindade fez uma extensa pesquisa sobre o movimento integralista brasileiro. Um feito marcante do livro - para a época - é a coleta e o uso de dados coletados pelo autor. Não só aplicou questionários, mas também calculou alguns indicadores1.
Vale mencionar que, a despeito de não ter sido um grupo dedicado a ações terroristas, a pesquisa do autor aponta para vários pontos no entendimento de traços psicológicos dos integralistas que ‘conversam’ com o estudo anterior.
Sobre a amostra, não encontrei exatamente uma linha no livro dizendo algo como ‘o n amostral é…’, a despeito da riqueza de tabelas e dados, mas posso ter lido descuidadamente. Entretanto, o autor afirma que a amostra não foi aleatória e que consistiu em entrevistas com antigos integralistas oriundos, principalmente, de RS, SC, PR, SP, ES, RJ, MG, BA e CE (além do antigo distrito federal da Guanabara).
Neste sentido, o antigo livro de Trindade enfrenta o mesmo problema do livro de Gambetta e Hertog: a amostra que, aliás, é o que limita bastante as conclusões de ambos. De todo modo, vejamos um pouco do que Trindade encontrou sobre o perfil amostral de antigos integralistas.
A análise da Câmara dos Quatrocentos dos integralistas (Quadro 3, p.141) mostra que: (a) 218 são da burguesia, (b) 63 são da média burguesia intelectual, (c) 26 pertencem à média burguesia militar, (d) 23 são da pequena burguesia de pequenos proprietários, (d) 44 são da pequena burguesia dos burocratas, (e) 14 são oriundos das camadas populares e, (f) os 12 restantes não foram classificados em nenhuma das categorias anteriores.
Vale ressaltar que a terminologia do autor é bem particular (como a pequena burguesia de pequenos proprietários demonstra). Fico imaginando se um corte distinto não seria mais útil. De todo modo, o autor nos dá algum detalhamento sobre as profissões.
Sem especificar em quais categorias (se média burguesia etc.) estão, ele menciona 69 médicos e 67 advogados. Isto significa que, pelo menos, 136 dos 400 tinham alguma formação superior. Não é algo a ser desconsiderado e, não, em comparação com o livro de Gambetta e Hertog, não há engenheiros na amostra.
Outro aspecto interessante (ver o Quadro 11) é que:
(…) um quarto dos integralistas locais e três quartos dos dirigentes nacionais e regionais possuem curso superior; três quartos dos pais do primeiro grupo têm somente instrução primária e a mesma proporção de pais do segundo grupo, níveis de instrução primária ou secundária. [Idem, p.150]
Novamente comparando com o trabalho de Gambetta e Hertog, por exemplo, não se encontra evidências a favor da tese da privação relativa como explicação para a adesão ao movimento. Afinal, na amostra de 25 dirigentes nacionais e regionais, observando-se o grau de instrução, todos ou encontravam-se em mobilidade ascendente (14) ou estagnados (ausência de mobilidade) (11), sendo que última categoria do autor, mobilidade decrescente, não era ocupada por nenhum dirigente. Dirigentes e militantes de base apresentam padrão similar. Dos 100 analisados, 51 ascendiam e 49 estavam estagnados.
Usando uma escala Lickert com as categorias: (a) concorda muito; (b) concorda pouco, discorda pouco e discorda muito e (c) sem opinião, o autor analisa diversos aspectos da opinião dos integralistas. Olhando apenas para o concorda muito, o antiliberalismo é fortíssimo (93% contra o estado liberal), o neoliberalismo da época (o anticapitalismo internacional) é uma péssima ideia (82%).
Curiosamente, 58% ‘concordam muito com a socialização das indústrias de base, 81% com a planificação e 66% com a reforma agrária. Pensando no conceito de ‘intervencionismo’ (não tanto em socialismo ou fascismo), não há tanto paradoxo assim. Afinal, 93% rejeitavam um estado liberal.
Pontos que podem ajudar a fazer uma análise similar à de Gambetta são as perguntas sobre valores. Os integralistas da amostra não fogem ao esperado pelo senso comum: 99% concordam muito com a importância de se obedecer a autoridade, 95% com a hierarquia e 85% com a primazia do papel do chefe (líder). Além disso, preservar os ‘grupos naturais’ (família) é unanimidade. Resultado similar - 99% - para a preservação da tradição.
Algumas correlações adicionais entre as ‘crenças’ autodeclaradas encontram-se a seguir.
Os coeficientes de correlação são muito elevados sobretudo em certas dimensões essenciais ao fascismo ideológico: autoritarismo/anti-socialismo (0,84); antiliberalismo/fatalismo-pessimismo (0,77). Há também coeficientes elevados nas correlações clássicas como: religião-moral/anti-socialismo (0,80); tradicionalismo/religião-moral (0,84); nacionalismo/tradicionalismo (0,69). [p.285]
Estes resultados, creio, remetem aos traços estudados por Gambetta e Hertog (need for cognitive closure, in-group bias, proneness to disgust e simplism) lá no Ato i deste nosso pequeno texto. É verdade que radicais conservadores e islâmicos (sejam eles engenheiros ou não) apresentem forte afinidade com estes traços e, aparentemente, integralistas também.
Mas pense no caso do funcionamento dos mercados em uma sociedade descentralizada. Não consigo imaginar algo mais liberal e, portanto, oposto às crenças (ou traços?) que Trindade, Gambetta e Hertog dizem ser característicos de seus respectivos grupos de radicais.
O mercado, como fruto da ação espontânea, friso, descentralizada, de indivíduos diversos (o que é, sim, algo ‘complexo’), pode ser pensado como uma solução ‘simples’ (ou a mais simples) quando se a compara em relação ao planejamento central. O leitor familiarizado com o debate do cálculo na economia socialista (Hayek, Mises, Lange, Lerner, etc) sabe bem disto.
Mas, ao mesmo tempo, no contexto do arcabouço teórico dos autores, simplismo tem um significado oposto na tipologia usada. Para os integralistas, a solução ‘simples’ para a alocação de recursos é resultado da ação ‘iluminada’ de um líder.
Ao mesmo tempo, a insistência de radicais de esquerda em um mundo explicado por uma teoria do valor trabalho também me parece compatível com a visão simplista de mundo. Seria esta uma inconsistência da tese de Gambetta e Hertog? Não sei. Mas, no mínimo, fico um pouco confuso com o alcance analítico destes ‘traços’ psicológicos.
O livro de Trindade é antigo, eu sei. Mas surpreende pela qualidade do trabalho de coleta de dados. Quando se compara seu estudo com o de Gambetta e Hertog, com o devido respeito ao tempo e à facilidade com que, hoje, estima-se uma regressão, Trindade tem o mérito de estimar correlações em uma época em que computação não era algo trivial.
Ato Final - À guisa de conclusão
Sobre ambos, pode-se ver que há pontos comuns nos traços psicológicos estudados para perfis como os engenheiros de Gambetta e Hertog ou para a amostra de antigos integralistas.
Não sei bem se esta psicologia política tem limitações em sua microfundamentação da ideologia individual. Não sou psicólogo, nem sociólogo e, portanto, não sei muito sobre esta conexão teórica, exceto pelo que li no livro de Gambetta e Hertog (outro recente artigo sobre o tema é este)2.
Curioso, mesmo, é que a academia brasileira não tenha gerado um estudo similar ao de Trindade para movimentos radicais de esquerda (e eles não são escassos, como sabemos). Conforme Isenhardt et al (2021), o radicalismo de esquerda caracteriza-se por:
Não é algo tão estranho ao que vemos por aqui, não? A falta de estudos quantitativos sobre estes movimentos prejudica uma compreensão - tão necessária, socialmente falando - do radicalismo como um fenômeno supra ideológico.
Entender o pensamento radical é um primeiro passo para se agir na proteção de uma sociedade aberta que se pretende tolerante, que respeita (e não cerceia ou cancela) a liberdade de expressão.
A literatura sobre o radicalismo e atos terroristas ainda necessita avançar muito e seria bom ver mais cientistas sociais analisando o fenômeno. Há, por exemplo, a ANL de Prestes ou os Black Blocs. Não faltam radicais a serem estudados.
Bens públicos - Eu sempre falei aos ex-alunos: a tecnologia muda os bens. Isto quando eles mesmos não me perguntavam. Este insight, nem sempre ensinado em sala de aula (ou nos livros-textos), está magistralmente explicado aqui.
Chow Yun Fat - Um ótimo (e longo) vídeo sobre a carreira do inimitável Chow Yun Fat.
Mitos e fatos sobre prisões e discriminação - É importante conhecer os fatos e não se deixar seduzir por mitos e preconceitos. Seja nos EUA ou aqui.
Deveriam os não-esquerdistas fazer como seus adversários… - …e cancelar esquerdistas? Ou não seria a melhor estratégia para se combater o radicalismo?
Doutor Palhinha - O Alexandre fez um levantamento dos novos casos do doutor Palhinha que surgiram até sexta passada (tá no final da newsletter dele).
Anedotas - As anedotas brasileiras, sob o politicamente correto, vaticino, serão proibidas em breve. Vivi para ver jovens defenderem a queima de livros (ou estátuas) sob o olhar complacente (cúmplice?) dos seus pais. Quem diria que um filme sobre nazistas sairia da antiga sessão da tarde da minha infância para as ruas da minha vida adulta. Acho triste? Acho, claro.
Minha campanha: compre todo livro de anedota e piada que você puder e guarde, esconda, proteja nossa herança cultural dos radicais…e assista a este ótimo programa sobre literatura: Fitas, Bolachas, Catataus.
A gente se vê.
Ricardo Benzaquen de Araújo diria, em seu Totalitarismo e Revolução, de 1987 (publicado pela Jorge Zahar Editor), que AIB (Ação Integralista Brasileira) teria sido “(…) o primeiro partido nacional, de massa, dispondo em 1935 de 1.123 grupos organizados em 538 municípios e abrigando cerca de 400 mil adeptos, distribuídos de norte a sul do país (…)”. [Araújo, R.B. (1987), p.25]
Veja também este outro artigo, de 2005.