Quem viu Goa, não precisa de ver Lisboa (pelo menos por um tempo)...
A riqueza institucional da colonização portuguesa
Bom dia. Neste v(1), n(33), voltamos a algumas curiosidades sobre as instituições de colonização portuguesas e mais alguns temas menores.
Ah, a Goa Dourada… Opa, não, nunca fui à Índia. Mas li algo a respeito. É nosso primeiro tema de hoje e tem a ver com os portugueses. A eles!
É típico do brasileiro contar piadas e, uma das categorias mais conhecidas é a das piadas de portugueses. Por algum motivo, possivelmente nosso senso de ex-colônia, as piadas sempre tratam os portugueses como burros.
Vez por outra, nesta newsletter, tento trazer uma ou outra leitura de aspectos da colonização portuguesa. É que, por um bom tempo, no doutorado, resolvi explorar um pouco do desenvolvimento econômico com uma ênfase maior nas instituições usadas na colonização e o tema acabou criando raízes em mim.
Em 2016, Pius Malekandathil (claro que o corretor foi à loucura) publicou um livro de ensaios sobre a presença portuguesa na Índia, The Mughals, the Portuguese and the Indian Ocean: Changing Imageries of Maritime India. Em um dos capítulos, ele fala dos casados1. Casados?
Para quem não está familiarizado, casados eram os soldados portugueses dispensados do serviço militar por Afonso de Albuquerque para que pudessem se dedicar ao setor privado, em Goa (Índia).
“For this, he gave permission to many Portuguese soldiers, the vital apparatus of a state, to forego their profession and to get married to Indian women, particularly widowed Muslim women and made them settle down in the city.
(…)
In the process of their transformation from moving soldiers into permanent city-dwellers was also involved a radical change in their economic activities as well, in which sustenance (of soldiers) by allowance from state was replaced by sustenance of the citizens by their entrepreneurial skills and initiatives. In fact even Afonso Albuquerque was concerned about the means of livelihood for the Portuguese casados (married Portuguese citizens) of the city, who were deprived of state allowances with their marriage and he found small-scale trade to be a feasible alternative.” [Malekandathil (2016), p.61]
Taí uma espécie de plano de demissão voluntária (PDV) em pleno século 16. Segundo o autor, os casados comercializavam especiarias e o governo português realmente achava que sua atividade era uma forma de gerar prosperidade local, por meio do estímulo ao comércio2.
“(…) the crown terminated its monopoly in Malacca and Moluccas in 1533 and 1537 respectively, creating a liberal space for the Goan casado traders enabling them to go to the sources of spices in South-East Asia for procuring cloves, nutmeg and mace for the Lisbon-bound vessels.
(…) the Portuguese state resorted to a wide variety of trade-promoting mechanisms like quintaladas, commercial-voyage, licences and other trade concessions, which were in fact initially developed as a compensatory way of rewarding the underpaid state functionaries. ” [Malekandathil (2016), p.62]
Eu sei, você sabe, todos nós sabemos que o sucesso português em Goa não durou muito. Mas não é errado dizer, conforme Malekandathil, que a cidade experimentou um período de prosperidade econômica durante um tempo3. Pragas e concorrência neerlandesa marcam o fim da influência portuguesa na região4.
A prosperidade das cidades tem a ver com a liberdade econômica? Tem. Isso significa que os portugueses liberaram o comércio e era o paraíso liberal de (uma caricatura de) Adam Smith? Óbvio que não. Mesmo assim, parece-me que a ligação entre empreendedorismo e prosperidade econômica em cidades não deve ser desprezado.
A estratégia dos casados é similar à dos lançados (ou tangomanos) na costa africana: uma deliberada infiltração na sociedade local afim de criar relações sociais e econômicas baseadas na paz, não no conflito. É um tradeoff que colonizadores sempre enfrentaram em diversos momentos da história. Estreitar laços com a comunidade local é uma opção mais barata do que o conflito. Mesmo que o objetivo final seja a maximização da receita da Coroa.
Para quem ainda acha que os portugueses são imbecis como nas (ótimas) piadas que contam(os) sobre eles, é bom rever o preconceito. Portugal pode não ter sido o império colonial de maior sucesso, mas sua criatividade institucional merece ser mais bem estudada.
Pá - O Brasil já foi uma colônia da boa cerveja germânica?
O principal trunfo de Friederizi era representar no Brasil a conhecida cerveja Spatenbraurei, da família bávara Sedlmayr. Entre os frequentadores do restaurante, a cerveja alemã perdera o nome de difícil pronúncia e recebeu o apelido de cerveja Pá. [Marques, T.C. de Novaes. A cerveja e a cidade do Rio de Janeiro - de 1888 ao início dos anos 1930. Editora UnB, 2014, p.66]
Ciência e Liberdade de Expressão - É tão difícil assim entender que a Ciência se baseia na análise de hipóteses concorrentes na explicação de um fenômeno? Acho que não. Seria, então, complicado dizer que as pessoas têm as hipóteses mais variadas sobre um fenômeno que tiram sabe-se-lá-de-onde? Acho que também não. Como saímos da crença de que o sol girava em torno da Terra para o oposto? Teria sido porque colocamos nas prisões quem não concordava com esta hipótese? Ou teria sido porque aceitamos a conversa, o debate, por mais absurda que a posição oposta nos parecia? Não é preciso ser doutor em filosofia para perceber isto.
Sim, não é mesmo preciso. Nada contra doutores em filosofia. Mas eu olho para minha vida cotidiana e vejo exatamente este mecanismo funcionar. Tento achar o ponto ótimo da carne na panela pesquisando em vídeos, lendo e testando eu mesmo no fogão. Mas há quem pense que só exista um jeito de fazer carne na panela e que pensar diferente pode ser um crime5.
Imigração - Sigo em minha campanha para que alguma editora se sensibilize com o tema da imigração (em um país de imigrantes) e traduza este livro. Meus novos aliados são o Cisco Costa e o Magno Karl. Ideias?
Pense no quanto a gastronomia brasileira mudaria em 5 anos com imigrantes afegãos e de Hong Kong por aqui. O efeito dos haitianos e venezuelanos será notado em breve. Seríamos uma potência no mundo dos restaurantes se fôssemos mais abertos aos imigrantes. Este é um tema para se desenvolver melhor em algum outro dia…
Pessoais (ainda a imigração) - Ontem percebi o quanto acabei me aproximando do tema dos imigrantes e do que chamo de zonas humanitárias especiais. Um exemplo seria algum tipo de sandbox regulatório que facilitasse a vida dos imigrantes. A leitura do capítulo 3 do Radical Markets de Eric Posner e Glen Weyl (traduzido por aqui e solenemente ignorado pelos nossos influencers) é uma incrível fonte de inspiração neste sentido. Mais um tema para outro dia (mas você deveria ler este livro).
Urnas auditáveis? Não, não temos - O Diogo fez um ótimo resumo sobre o tema das urnas eletrônicas auditáveis. O assunto é sério. Há quem o ignore por fins eleitorais e há quem diga se preocupar com ele, também por fins eleitorais. Afinal, a quem interessa não discutir a imperfeição das urnas eletrônicas? Não se engane: a resposta não envolve apenas a turma A ou B. Há muita gente interessada em transformar um problema sério em suposto consenso pacificado. Se você realmente acredita na ciência, deveria ser, pelo menos, mais cético. Principalmente quando as certezas são enunciadas por gente poderosa e também por influencers6.
Termino por aqui. A gente se vê em breve. Assinantes recebem sempre às quartas e sábados. Até lá, fique bem.
Veja também esta entrevista dele.
Não custa lembrar aos mais jovens que um PDV como este, no século 16, embora envolvesse casamento, não apresentava o benefício da licença-maternidade, muito menos da licença-paternidade. Uma sociedade do século 16 não tinha tanta riqueza assim para gastar com estas coisas.
Os portugueses tentaram homogeneizar práticas religiosas com ênfase nos costumes cristãos. Malekandathil vê a influência religiosa como bem importante na presença portuguesa na Índia.
Dotações naturais importam para explicar a decadência de Goa? Boxer explica que “(…) a natureza porosa do solo, que permitia às águas dos esgotos se infiltrarem nos poços onde os habitantes iam buscar a água que bebiam, contribuindo para a transmissão de doenças de origem fecal, e o aumento da incidência da malária, devido às águas estagnadas, propícias para a reprodução dos mosquitos em poços, tanques e piscinas para banho das casas e dos jardins abandonados”. [Boxer, Charles R. O império marítimo português. Companhia das Letras, 2002 (original de 1969), p.144]
Sei que a ciência (feita por seres humanos) não é perfeita. Há quem acredite em “medicinas alternativas” que claramente não passam em qualquer teste científico mínimo. Há cientistas que falsificam dados. Assim como na sociedade, não há perfeição. Ou seja, a ciência, se fotografada a cada minuto, mostraria uma imagem distinta. Mesmo que se filtre a ciência do charlatanismo e o oportunismo político, ainda assim, a imagem seria distinta a cada minuto. Imaginar que não deva haver liberdade de expressão porque o que você acha que seja o consenso científico não pode ser criticado é uma atitude anti-científica, para dizer o mínimo.
Com menos de 200 assinantes, certamente eu é que não sou influencer. Claro, qualquer ajuda na divulgação desta newsletter é bem-vinda. ^_^