Os determinantes geográficos da insurreição pernambucana e os gestores que fugiam dos livros (de econometria)
Mais uma eletrizante aventura chega até sua caixa de mensagens trazida por_______________(anuncie aqui)!
Bom dia. Neste v(1), n(36) volto ao tema da história econômica. Desta vez, algo que seria um esboço de uma aula sobre instituições e desenvolvimento econômico usando como inspiração uma interessante hipótese sobre os determinantes da insurreição pernambucana. Além disso, uma evidência científica de que gestores públicos expostos a bons cursos podem gerar bons resultados para a sociedade (ou não).
Dotação de fatores e a história econômica - Pernambuco1 é, conforme Evaldo Cabral de Mello, um exemplo da importância das dotações naturais no desenvolvimento econômico. Ele não diz isso explicitamente, mas é o que se infere ao final do capítulo primeiro de seu pequeno A outra independência - o federalismo pernambucano de 1817 a 1824.
Em resumo, o autor divide a cultura do açúcar em duas grandes zonas: “mata norte” (menos favorável ao açúcar) e “mata sul” (mais favorável ao açúcar). Após uma breve descrição das condições de plantio do açúcar nas duas regiões (p.57), ele afirma que o apoio à insurreição pernambucana veio da mata norte (a reação vindo dos que ocupavam a mata sul).
Em sua narrativa, o choque exógeno do algodão (ou os choques: Revolução Industrial e Guerra de Secessão) fez com que os plantadores da mata norte produzissem mais algodão (inclusive adotando o trabalho livre junto ao escravo). Para Evaldo Cabral de Mello, o algodão teria, inclusive, sido o responsável pelo surgimento de propriedades menores na região. Politicamente? O trecho a seguir esclarece.
Enquanto para o algodão o objetivo maior era a preservação da liberdade de comércio, o açúcar, embora também desejasse mantê-la, tinha de levar em conta que a antiga metrópole continuava a ser seu principal entreposto e que os capitais lusitanos (…) ainda financiavam e comercializavam e garantiam o suprimento de mão de obra africana. [Mello, E. C. de (2014). A Outra Independência - o federalismo pernambucano de 1817 a 1824, 2a edição, Editora 34, p.60]
Assim, as dotações naturais (no caso, o terreno mais ou menos favorável ao cultivo do açúcar) determinam, inicialmente, a desigualdade inicial de riqueza entre os plantadores “do norte” e “do sul”.
A seguir, um choque exógeno (gerado externamente às ações dos pernambucanos) favorece o cultivo do algodão nos terrenos da mata norte e surge, então, esta bipolaridade entre posições políticas de apoio/oposição à insurreição pernambucana a ser desenvolvida no restante do livro.
Interessante, não?
O tema das dotações naturais, nos estudos relacionados ao desenvolvimento econômico é antigo, mas ganhou muito impulso no final dos anos 90, quando a tecnologia computacional (incluindo a internet) facilitou bastante o teste empírico de algumas hipóteses anteriormente formuladas, bem como outras que surgiram no boom da literatura da área.
Autores como Jeffrey Sachs falavam, por exemplo, do paradoxo tropical2, que é uma robusta evidência de que países próximos ao Equador também não são os de melhor desempenho em termos econômicos, gerando uma releitura da antiga tese de Montesquieu.
Historiadores econômicos como Kenneth Sokoloff e Stanley Engerman também destacaram a importância das dotações no diferenciado desenvolvimento econômico das colônias no continente americano. O trecho a seguir ilustra um exemplo de como funciona o modelo teórico neste tipo de estudo.
At both the levels of national governments and private agents, adaptation or innovation of institutional forms was stimulated by formidable problems of organization raised by the radically novel environments, as well as by the difficulties of effecting the massive and historically unprecedented intercontinental flows of labor and capital. Common to all of the colonies was a high marginal product of labor, as evidenced by the historically unprecedented numbers of migrants who traversed the Atlantic from Europe and Africa despite high costs of transportation.[SOKOLOFF, K. L.; ENGERMAN, S. L. History Lessons: Institutions, Factor Endowments, and Paths of Development in the New World. Journal of Economic Perspectives, v. 14, n. 3, p. 217–232, 2000 (p.220)].
Em 2003, William Easterly e Ross Levine publicaram um artigo3 que, ao meu ver, organizava as ideias sobre o que diziam os trabalhos que tentavam medir o impacto das dotações sobre o desenvolvimento econômico. Eu mesmo, na época, fiz um diagrama, para entender melhor o problema. Ei-lo.
Em essência, o impacto das dotações naturais pode se dar diretamente (seta tracejada em vermelho, à esquerda) ou indiretamente (seta sólida em azul, à direita), por meio de seu impacto sobre as instituições da região. O que seriam as instituições?
O conceito de instituições vem de Douglass North, qual seja, trata-se das regras do jogo que, formal ou informalmente, os indivíduos seguem no seu dia a dia. O conceito, como se vê, é genérico o suficiente para incluir diferentes métodos de governança, códigos legais (e seu transplante para as colônias é um capítulo à parte…), normas informais de convivência etc.
A ideia desta literatura unindo história e desenvolvimento econômico traz de empréstimo dos estudos iniciais das aplicações econômicas do caos determinista (um termo da matemática)4 o conceito de path dependency (“dependência da trajetória”) que seria uma possível explicação para a dificuldade de mudança institucional que eventualmente encontramos em alguns episódios históricos.
Claro, a pergunta seguinte diz respeito a como esta rigidez teria surgido e aí é que entra esta discussão sobre dotações de fatores (ou dotações naturais, geográficas etc). A hipótese é, certamente, polêmica, já que pode ser interpretada como uma espécie de determinismo histórico (cuja importância não é tão incontestável assim, como nos mostram vários exemplos ao longo da história).
A influência das dotações sobre o desenvolvimento econômico pode ser encontrada em diversos tipos de estudos, desde os que apenas postulam hipóteses (comum em alguns estudos de história) até os que, fazendo uso de bases de dados, testam algumas destas mesmas hipóteses.
Exemplos de trabalhos deste último tipo para a economia brasileira? Sem qualquer pretensão de fazer uma resenha, eis dois muito interessantes.
Primeiro, o artigo de Naritomi, Soares e Assunção que buscou encontrar impacto de longo prazo nas instituições em regiões outrora ligadas ao ciclo da cana-de-açúcar e ao da mineração. O outro é o de Fritscher e Musacchio que encontrou evidências da importância de longo prazo da dotação de borracha e café para o desempenho de alguns estados brasileiros no fornecimento de bens públicos5.
O insight de Evaldo Cabral de Mello certamente pode ser pesquisado com mais cuidado e testes empíricos podem ser realizados se você tiver bases de dados e um pouco de conhecimento de Econometria, claro.
Mas é legal perceber que existem muitos problemas similares, de nosso cotidiano, que também podem ser sistematizados sob o mesmo arcabouço geral (dotações, instituições, prosperidade). Quem sabe algum leitor não me sai daqui com um projeto de pesquisa? Talvez alguém já tenha até feito um trabalho econométrico sobre o tema. Vai saber, né?
Gestores públicos não têm mais para onde fugir ou “o nudge que se voltou contra seu fã” - Vários gestores públicos querem fazer grandes planos e, claro, dizem achar importante que se avalie qualquer política pública. Entretanto, nem sempre querem entender como foram medidos os impactos, preferindo apenas uma discussão sobre a governança, ou a discussão sobre os objetivos da política, ou ainda a discussão sobre qualquer coisa que não envolva estimações.
Quando pergunto a algum deles sobre como poderão ler criticamente a mensuração de impactos de uma política para que possam qualificar sua análise, eis a resposta genérica que recebo:
Medir impactos? Ah, deixa para os peões da econometria. Nós queremos é falar sobre nudges! Ou do livro do Hariri…
Bem, seus problemas acabaram (ou começaram): evidências mostram que o treino dos gestores (que agora dirão que não posso traduzir policymakers como gestores porque, veja bem, não é bem assim…) aumenta seu desejo de usar econometria (os famigerados métodos quantitativos) em suas análises.
De posse de uma lanterna, após esta revelação, saí caminhando em busca de algum gestor para me ajudar a divulgar a boa nova, quem sabe, usando nudges. Após muito tempo andando (a lanterna quase se apagou), não pude encontrar nenhum gestor que quisesse criar um nudge para estimular seus colegas (e a si mesmo) a se sentirem mais confortáveis com três disciplinas de econometria obrigatórias em seus cursos.
Em momentos como este, os potenciais alunos de Econometria (não só os nossos amigos gestores públicos) passam a querer discutir os fundamentos metodológicos da Economia e garantem que é importante que tenhamos mais conteúdo discutindo Karl Popper, David Hume, a Escola de Frankfurt ou mesmo Noam Chomsky porque, sabe como é, não podemos apenas medir os impactos sem pensarmos nos fundamentos humanos das políticas.
Os nudges, claro, vão para debaixo do tapete porque “só podem ser aplicados aos pagadores de impostos, estes hipossuficientes”, dizem os gestores (embora ninguém queira medir seus impactos para saber se a implementação do mesmo gerou benefícios maiores que os custos pagos pela população)6.
Mais história? - Outros números desta newsletter que trataram de história? Temos. Você encontra os números anteriores aqui.
Livros - Ganhei de um amigo o Três Episódios Marcantes das Bolsas do Brasil, de Ney Carvalho. Antes que o fã-clube do currículo Lattes pergunte se é sobre como ganhar dinheiro com bolsas fornecidas pelo governo eu devo dizer que não (embora, pensando em rent-seeking…).
O livro é a junção de três pequenos livros do autor em uma bela edição encadernada. Material muito bom para futuros textos aqui e para eventuais cursos de história econômica brasileira (ou mesmo de finanças). Valeu, Philipe!
HBOMin - Pois me diz a propaganda do HBO Max: tem DC e Warner! Pensei em dar uma chance para as séries da DC: Supergirl, Flash, até mesmo o cansativo Legends of Tomorrow. Pois adivinhe se achei alguma delas lá: não.
Pelo menos pude rever um episódio de Lois & Clark e matar as saudades do início da TV paga. Estes serviços de streaming raramente têm o que eu quero. Onde está o ofertante que vai me trazer os filmes chineses de John Woo (anos 80)? Ou os episódios legendados do Mystery Science Theater 3000? Ou, quem sabe, os antigos Mary Tyler Moore, Cheers, Mork & Mindy, Fantastic Journey etc? Provavelmente (provavelmente?) minha demanda é que não se adequa à do consumidor mediano...
Por hoje é só, pessoal. Espero que tenha gostado e que me ajude a divulgar a(s) palavra(s). A gente se encontra no final de semana. Até lá, cuide-se.
“Segundo o historiador Varnhagen, a palavra ‘paranámbuko’ significa ‘furo do mar’, rochedo ou recife, tendo Cristovam Jacques, em 1526, fundado uma feitoria onde é hoje o porto do Recife“ [Escobar, Ildefonso. Formação dos Estados Brasileiros. Editora A Noite, Rio de Janeiro, s.d., p.105]
Philip Parker, com seu Physioeconomics, talvez tenha sido o autor mais entusiasta e que levou mais longe o tema das dotações naturais, no início dos anos 2000. Algumas curiosidades sobre a trajetória acadêmica dele aqui.
EASTERLY, W.; LEVINE, R. Tropics, germs, and crops: How endowments influence economic development. Journal of Monetary Economics, v. 50, n. 1, p. 3–39, 2003.
No início dos anos 90, esta agenda de pesquisa era bem popular. Um grupo de pesquisadores criou o grupo de estudos sobre complexidade na University of Santa Fe que é ativo até hoje.
MARTINEZ FRITSCHER, A. C.; MUSACCHIO, A. Endowments, Fiscal Federalism and the Cost of Capital for States: Evidence from Brazil, 1891-1930. Financial History Review, p. 1–38, 2010. Há também um estudo envolvendo as capitanias hereditárias: MATTOS, E.; INNOCENTINNI, T.; BENELLI, Y. Capitanias hereditárias e desenvolvimento econômico: herança colonial sobre desigualdade e instituições. Pesquisa e Planejamento Econômico, v. 42, n. 3, p. 433–471, 2012.
Nenhum gestor público foi ferido ou morto na construção deste texto. Exceções podem existir. Leia a bula antes de usar. Caso persistam os sintomas, procure seu médico.