O golpe - O homem e seu contexto - Falhas de governo - Cinema - Constituição para quem? - Rodapé 6 - Transparência.
Um democrata que também não é um liberal é um cavalheiro?
O v(4) n(49) é este mesmo. Não há engano algum. Para começar, fiquem com o Chesterton liberalzão não deixa nada a dever a Hayek neste trecho, criticando a defesa que Bertrand Russell faz da suposta superioridade das creches sobre a família.
“Você colocou na cabeça aquela velha e curiosa falácia fabiana de que há um número absolutamente ilimitado de funcionários inspirados e uma absolutamente ilimitada quantidade de dinheiro para pagá-los (…). Os pais são imperfeitos: pais são imperfeitos; mães são imperfeitas. Pedem-nos que acreditemos que os médicos são perfeitos, que os diretores de escolas são perfeitos, que os inspetores das creches são perfeitos?” [Contra o Estado, Editora Senso Comum, 2024, p.26]
É, conservadores e socialistas xiitas, recebam. Lenços de papel disponíveis na mesa ao lado pois o choro é livre. É incrível como a tentação de rotular pessoas mostra-se um erro infalivelmente em todas as ocasiões…
O golpe - Luís gostava de ser chamado de Lula pois era fã do presidente. Auxiliar em um tribunal em Brasília, adorava o cheiro do poder e a fumaça da corrupção que pairam sobre a capital. Naquele tempo, eu diria, ambos estavam em abundância. Caso os supostamente preocupados com nossa saúde agissem conforme seu discurso, já teriam criado um rótulo a ser obrigatoriamente divulgado em todo anúncio oficial: alto em abuso de poder e corrupção.
Além de passar o dia tentando não trabalhar, Luís se encontrava todo final de sexta-feira com seus amigos em um bar para falarem de política. Uns trabalhavam e ministérios, outros em tribunais e, mais alguns, faziam serviços administrativos nas forças armadas (em minúsculas porque decepcionaram na tragédia do RS). Discutia-se de futebol a viagens nas férias e, claro, política era um dos assuntos mais presentes em suas conversas.
Foi num final de tarde em pleno verão que a discussão levou os amigos a um plano golpista. A idéia era a de perpetuar o presidente Lula no poder por mais 16 anos. A inspiração do plano era, claro, a Venezuela, embora Renan e Saulo, dois radicais que militavam no sindicalismo profissional defendessem a implantação de uma monarquia comunista no estilo norte-coreano. Como eram minoria - e como Terezinha Nushiken (a única mulher do grupo) tinha sérias restrições aos norte-coreanos por ter uma prima sequestrada pela ditadura do país asiático nos anos 70 - o plano seguiu em uma linha meio venezuelana, meio boliviana de fingir-se uma democracia enquanto as instituições são totalmente tomadas.
Luís, Renan, Saulo, Terezinha e mais Dirceu Lopes (homônimo do grande jogador de futebol para quem é ‘fedelho de vida’1 e não conheceu nada dos anos 70) e mais Zeca, Simone e seu marido, Simonal, todos, como eles gostavam de se autodenominar, ‘forjados nas lutas populares’. Este era o grupo.
Animados com a idéia de ajudar a ‘perpetuar’ as ‘conquistas populares’ (melhor dizendo, ‘as conquistas da esquerda, populares ou não, pois danem-se os evangélicos’ como eles mesmos diziam) e despreocupados com a própria segurança, trocavam mensagens animadas no grupo.
“- Vamos jogar bola com a cabeça do Temer.
- É isso aí, pau no ** dos evangélicos. Melhor, cruz no ** deles. kkkkk.
- Teremos apoio dos juízes, Dirceu?
- Sem dúvida, Terezinha.
- Luís e Simonal podem sondar os amigos dos sindicatos e dos ministérios no sábado, após a feijoada!”
O grupo conseguiu se organizar em núcleos, embora fosse um grupo tão pequeno que, às vezes, parecia ter mais caciques que índios se é que você me entende (e se não me entende, também). As conversas, em geral, descambavam para o uso de um ‘dispositivo militar’ (só que sem fracassar como o do gaúcho Brizola em 1964), a imposição de censura nas redes sociais (com um plano de ‘regulamentação progressista’ removendo o ‘retrógrado marco civil da internet da traidora Dilma’), a obrigatoriedade do ensino de matérias alusivas à sua ideologia nas escolas e o fim das redes sociais.
Havia época que Luís se cansava de tantos planos mirabolantes. Moderado, achava que não se deveria partir, logo, para a violência. Seu maquiavelismo era um pouco mais prudente que os colegas.
“- Vocês deixam jacobinos e maoístas no chinelo!
- Hummm…viadinho (como todo respeito ao movimento LGBTQPLUSKLOPÇÇ!)…tá elogiando a gente?
- Vocês já pararam para pensar? Até os aliados do movimento LG vocês sacaneiam!
- Eles não vieram para o grupo, azar o deles! A gente só precisa alinhar o discurso. O que a gente pensa ninguém precisa saber, Luís. Deixa de frescura! É a luta que importa!”
Luís lecionava numa pós-graduação e tinha um filho que não se definia como homem ou mulher, nos padrões usuais, o que lhe custava muita discussão em casa e, vendo seus amigos esquerdistas radicalizando, começou a se preocupar se realmente não estaria passando dos seus próprios limites. Ponderou muito e resolveu vazar as conversas para um jornalista de um conhecido portal que sempre denunciava tentativas de golpe da extrema-direita, Salim.
“- Oi, Salim. Bom dia. Meu nome é Luis e queria te vazar umas conversas de golpistas. Estou preocupado com o radicalismo…
- Opa, bom dia e prazer, companheiro. Pode enviar.”
Animado, Luís enviou as conversas e pediu anonimato. O colunista garantiu-lhe total anonimato, mas o contato terminou duas ou três conversas depois sem que Luís visse nada na coluna de Salim. Nem mesmo as suas mensagens eram mais visualizadas.
Luís, então, resolveu enviar para um amigo que tinha conexões no poder judiciário e o mesmo aconteceu: o início da conversa, animador, foi seguido de um silêncio ensurdecedor. Desanimado, e cada vez mais silencioso no grupo, Luís deu de ombros e continuou tocando sua vida.
Passados alguns meses, a conspiração a todo vapor, e Luís já ganhara dos amigos a alcunha de ‘o lacônico do zapzap’. Foi quando viu a mensagem de um número desconhecido:
“- Pare com isso. Ninguém vai levar suas acusações à sério. O STF não vai julgar nada. Não insista. Não invente golpe onde nada existe”.
Luís pensou em responder, mas foi quando começou a perceber que nunca esteve mesmo do lado da tal democracia. Era apenas um golpista de um golpe que nenhuma autoridade queria reconhecer como tal. Um golpe ‘in-julgável’, ‘in-investigável’. Sim, foi uma vitória inesperada. Luís finalmente percebeu que o golpe já havia sido executado…com sucesso.
O homem e seu contexto - Não sou especialista em filosofia, mas, como todo ser humano chato, filosofo sobre a vida. Não sendo especialista (de novo, mas a redundância tem valor didático-pedagógico, ok?), não me leve tão a sério. Vai ver Hegel já falou disso. Ou Russell Kirk. Ou Russel Crowe. Ou mesmo Kirk Douglas. Bom, mas estes dois últimos sabem tanto de filosofia quanto eu…
Veja, todos nascemos em um mundo que forma nosso ‘contexto’. Isto inclui valores familiares, condições tecnológicas, cultura etc. Óbvio, não? Claro que é. À medida em que saímos do berço, engatinhamos, andamos, passamos a conhecer novas pessoas, brincadeiras e parte do que é a vida fora do núcleo familiar passa a ser de nosso conhecimento.
A vida segue e entramos na adolescência. Observamos que parte de nosso contexto é maleável: a cultura mudou um pouco, a tecnologia avançou e tudo isso nos influencia de um jeito misterioso. Fica claro que há um núcleo e uma borda no tal ‘contexto’, sendo esta última mais maleável. A religião, para alguns, fica na fronteira entre o núcleo e o resto do contexto. Para uns, está no núcleo. Para outros, está entre o núcleo e a borda.
Assim é que alguns de nós mudam de religião ao longo da vida (uma mudança certamente mais difícil do que a mudança de práticas do trabalho por conta de mudanças tecnológicas). Mais ainda, como cada um tem seu contexto, se há algo de uniforme, constante (ao menos por um tempo), é o que há de comum no núcleo de uma comunidade. Sendo o ‘contexto’ maleável - e até mutável, na borda - não é difícil entender o motivo de termos alguma tensão com algumas mudanças. Também é fácil entender que, em uma família, as tensões são menores porque o contexto de todos tem grande parte compartilhada. Mesmo assim, sabemos, ainda que a família seja composta por um pai, uma mãe e um filho, pode acontecer do contexto comum não sobreviver ao envelhecimento de cada um.
Quando um grupo resolve, por algum motivo, que deve mudar até o núcleo de seu contexto, não é um problema, exceto se o mesmo grupo resolve que outros tenham que aceitar isso também. Despreza-se, neste caso, a tolerância e a diversidade em prol de uma coerção gerada pelo grupo proponente. As consequências? Gera-se uma tensão social - agora sim, social! - pois outros grupos que sempre respeitaram as regras de convivência na borda (borda contextual talvez seja um bom nome) se sentem atacados e com razão.
A coerção é, como a história humana mostra, a raiz das reações que, às vezes, resultam em revoluções sangrentas pois o ser humano, em geral, preza sua liberdade. Tendo-a experimentado, não deseja renunciar a ela.
Como falei no início, é tudo isso muito óbvio, mas eu queria deixar registrado meu raciocínio sobre o tema.
Falhas de governo - O Rafael reclamou da regulação - quem poderá culpá-lo por isto? - aqui.
Cinema - Não vejo a hora de assistir ao filme do Chico Bento. Expectativas elevadas.
Constituição para quem? - Ótimo e breve comentário do Narloch. Acredito que, se alguém fizesse uma pesquisa de opinião sobre o que achamos da Constituição, a mesma não se sairia muito bem na avaliação. Isto até que os juízes decidam indiciar quem pesquisa sobre a Constituição achando resultados ruins por conspiração contra a democracia. Parece-lhe uma piada? Talvez seja, talvez não seja.
Rodapé 6 - Em Contra o Estado (debates de G.K. Chesterton contra Bertrand Russell e George Bernard Shaw, da editora Senso Comum, publicado neste mesmíssimo 2024, à página 41, em pleno debate Entre Chesterton e Shaw, temos uma nota de rodapé 6 que está absolutamente em branco (sem racismos, hein?). Nada, nadinha de nada. Fica aí a dica para a editora.
Transparência - No Brasil, nem o Portal da Transparência é transparente. Claro, zero pessoas surpresas, exceto o Felipe. Ou a Telma. (p.s. do mesmo autor: a quem interessa derrubar o Marco Civil da Internet?)
(*) “até mais ler” foi plagiado do Orlando Tosetto, cuja newsletter, aliás, você deveria assinar.
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Talvez você seja novo por estas bandas. Rapidamente: publico geralmente às quartas. Eventualmente há algumas edições extraordinárias. Assinar (custo = R$ 0.00 + valor do seu tempo para apertar o botão subscribe com seu endereço de e-mail lá…) me ajuda bastante. A temática? De tudo um pouco. Confira os números anteriores aqui.
‘Fedelho de vida’ é uma expressão republicofederativense que eu inventei e de significado óbvio. Só não é óbvio para você, que não estuda. Sim, estou ofensivo hoje. Não gostou? Azar o seu. O que você espera de alguém que fala de uma tentativa de golpe? É muita tristeza e ódio!
Chesterton é meio estatista em alguns pontos econômicos mas nessa aí ele acertou demais