Doutor Palhinha e o caso do livro de Karl Popper
Desafio posto é desafio cumprido (e mais: liberdade é tudo de bom!)
Bom dia. Aqui estamos nós, novamente. Como um homem nunca se banha duas vezes no mesmo rio, este é o v(1), n(44) desta newsletter, não o n(43) ou o n(45). Hoje, dois temas. Primeiro, a ficção com o inusitado desafio (o maior de sua vida?) de doutor Palhinha em Porto Alegre. Em seguida, reflexões sobre a liberdade. Espero que se divirta.
Talvez você seja novo por estas bandas. Então, rapidamente: publico duas vezes por semana, geralmente às quartas e sábados. Eventualmente há algumas edições extraordinárias. Assinar (custo = R$ 0.00) me ajuda bastante. A temática? De tudo um pouco. Confira os números anteriores aqui.
Doutor Palhinha é um personagem que apareceu em: O Homem Que Lia Os Seus Próprios Pensamentos - Contos de Alexandre Soares Silva. Recentemente, Orlando Tosetto me falou de uma brincadeira, ou um desafio, sobre escrever, você mesmo, uma história do Doutor Palhinha.
O personagem é bem politicamente incorreto (ainda bem) e, a despeito de tudo, resolvi arriscar um pequeno conto com esta ‘versão brasileira’ do detetive Columbo.
Doutor Palhinha não se aguentou. Levantou e foi até o balcão:
- Quando é que sai este troço? Não posso esperar mais.
- O senhor se acalme, já vamos decol…
- Mió mêrmo. Tenho um crime prá resolver em Porto Alegre, mocinho.
O atendente se calou e Doutor Palhinha, contrariado, voltou para a fila. Não era todo dia que recebia casos de crimes vindos de outros estados. De Taubaté para o mundo, diriam seus amigos da praça, sem que ele esboçasse qualquer reação de satisfação com sua súbita fama interestadual.
Mais tarde, no mesmo dia, o cansado investigador chegou a uma obscura faculdade de uma universidade pública localizada em Porto Alegre.
- Senhor Palhinha, bem-vindo! Sou o Dr. Diretor.
- Deus te abençoe, filho. Quer fumo?
- Er…não, obrigado. Sou contra o aquecimento global.
- Eu sô hômi e torço contra o Bragantino. Mas respeito o sinhô assim mesmo.
Antes de prosseguir, alguns esclarecimentos. Segundo César Miranda, o ele “utiliza os preconceitos como método para desvendar crimes e pegar criminosos”. Inusitado? Tenha paciência, leitor, que você verá como o método é eficaz (mesmo quando não parece).
- Senh..Doutor Palhinha, o caso é o seguinte. O senhor vê aquela porta ali? É a entrada da biblioteca aqui da faculdade. Ontem, ela foi arrombada e sumiu o livro A Sociedade Aberta e seus Inimigos, de Karl Popper.
- É livro do quê?
- Como assim?
- O que qui se estuda com esse troço de Popa?
- Ah, filosofia.
- Então o ladrão é viado. Só viado lê filosofia.
- O senhor acha mesmo? Não posso acreditar!!
- Ó, tá baum. Pode num sê também. Vamô pegá este vagabundo.
O diretor não se aguentava de tanta revolta. Que homem tosco era aquele, fazendo pré-julgamentos sobre a sexualidade de um suspeito? Mesmo que fosse um criminoso, ainda assim, nada neste mundo mereceria tamanha violência verbal. Não senhor! Não mesmo!
Enquanto divagava entre os preconceitos no mundo contemporâneo (que ele insistia em chamar de ‘neoliberal’), estranhas imagens de bárbaros mongóis dançando balé invadiram sua mente, sem qualquer motivo aparente.
Lutando contra seus devaneios (no dia anterior foram quinze bodes furta-cor que jogavam xadrez em um bistrô pariense durante a reunião do colegiado), conseguiu se concentrar e notou que doutor Palhinha mexia no lenço de bolso de seu paletó.
- O que é isso, Dr. Palhinha?
- Ah, discurpa. O sinhô usa sempre lenço amarelo no bolso deste jaquetão?
- É paletó! E não, não uso sempre. Às vezes uso um ros…deixa para lá. Podemos voltar ao caso?
- Sim, dotô, o que mais temos?
O diretor relatou que pegadas haviam sido encontradas na escadaria, em direção a um dos lados do corredor do primeiro andar, onde se localizavam as salas de três professores de um dos vários cursos da faculdade.
- Ó, acho que a gente vai achar algo. Os dotô estão lá agorinha?
- Sim, Dr. Palhinha.
- Vamu lá.
Minutos depois, os professores Bardo, Google e Alemão seriam interrogados, individualmente, pelo nosso intrépido investigador, acompanhado de um cada vez mais nervoso diretor. Após anotar tudo em seu surrado bloco de notas espiralado, doutor Palhinha levou todos ao saguão principal.
- Ó, diretor, acho que resolvi.
- Como? Mas já?
- O sinhô vai me deixar seguir?? Doutor Palhinha já estava nervoso. Não fumava há mais de 30 minutos.
- Claro, por favor. Desculpe-me. É que um livro como est..desculpe-me. Prossiga, por obséquio.
O investigador apontou para o professor Alemão.
- Ó, geralmente suspeitaria de um alemão. Alemão pode lê Popa e achar bom porque alemão, a gente sabe, é tudo sistemático, chato mesmo. E este Popa parece ser um porre.
- Sim… O diretor estava ansioso.
- Mas alemão não deixa pegadas. É bicho meticuloso. Frio mesmo. Não é ele.
O professor Alemão suspirou aliviado e foi para casa jogar xadrez em seu computador como fazia pontualmente às 22:37 de todos os dias úteis da semana (exceto na Semana Santa).
Doutor Palhinha voltou-se para o professor Google e prosseguiu:
- Mas, ó, tem o Dotô Google.
- O senhor já leu este working paper que saiu no NBE… O professor Google insistia, desde o interrogatório individual, em indicar ao investigador artigos acadêmicos relacionados à investigação policial.
- Dotô, parô. Chega. Ocê é neto de italiano e italiano fala prus cotovelo. Eu sei. Orlando, meu cumpadi, é qui nem maritaca. E fala gritando. Italiano é tudo assim. Num guenta ficá de boca fechada. Num pode ser ele.
O diretor, o professor Google e o doutor Palhinha, então, viraram-se para o professor Bardo.
- O Seu Bardo é piauiense. Eu matutei aqui um cadin. Quê qui piauiense faz? Ninguém sabe. Num tem nada prá dizer do Piauí. Só pode ser ele.
O professor Bardo, cabisbaixo e sorumbático, levantou lentamente a mão direita, como se seu braço pesasse mil quilos.
- Desculpem-me, mas posso falar?
- O senhor diretor vai deixar o hômi falar?
- Claro, doutor Palhinha.
- Fala, seu Bardô.
- É Bardo.
- Bardo, Bardô. Isso tudo é nome esquisito. Desembucha.
- Eu, eu…eu confesso. Eu queria muito reler o livro do Karl Popper…
- Popa.
- Isso, Popa. É assim que fala? Ó céus…desculpe-me, doutor Palhinha.
- Continua, seu Bardo.
- Bem, o horário da biblioteca fechar já tinha passado e minha esposa queria que eu fosse ao supermercado com ela. Eu estava cansado. E tenho asma. E a vida no Piauí…bem, nada tenho a falar do Piauí…mas…eu só queria ler mais um pouco…não tenho culpa se ninguém entende que desejo ler um livro, é minha sina, minha vida é muito sofrida…
Antes que o professor Bardo prosseguisse lamuriando sobre a vida, Palhinha lhe interrompeu.
- Quer um pedaço de fumo?
- Ah, obrigado. O senhor é muito bondoso…
Confissão feita, o professor Bardo seria sentenciado, meses depois, a lecionar quatro turmas no outro campus, do outro lado da cidade. O diretor nunca mais usou lenços no bolso do paletó. Os professores Alemão e Google seguiram suas vidas acadêmicas e o Dr. Palhinha se recusa a aparecer em outros números desta newsletter. Alegou que não lhe ofereceram sorvete de milho em Porto Alegre.
p.s. Agradecimentos ao Alexandre por me deixar usar seu personagem neste conto.
Liberdade Acadêmica e Prosperidade - Os jovens de hoje têm tido comportamentos algo ‘maoístas’. Sei que há várias causas para isto, mas o problema são seus efeitos: os ‘cancelamentos’ de pessoas em nome da, sei lá, justiça, igualdade ou, (sic) fraternidade.
Você pode achar que isto não é importante, mas é. Professores, nas IES públicas e privadas não falam abertamente (e, por isto, você não deve acreditar em mim, claro, mas deve conversar com as pessoas do ramo), mas sempre reclamam discretamente sobre o cerceamento do que podem ou não dizer em sala nos anos recentes.
Talvez isso nem se limite às IES (eu falei que são instituições de ensino superior?), eu sei. O politicamente correto veio como uma discreta pandemia e o vírus se instalou por toda a sociedade que, infelizmente, não produziu anticorpos suficientes para se defender. Autoridades se omitiram de incentivar a produção de ‘vacinas’ por anos, piorando a situação.
Certamente isto é tudo que não se espera de uma tal ‘autonomia universitária’ (que nunca é autônoma na hora de gerar receitas…).
Agora temos evidências preliminares de que o cerceamento da liberdade acadêmica prejudica a prosperidade de uma sociedade. Quer combater a desigualdade cancelando seus desafetos? Bem, isto pode piorar a situação dos pobres, mané.
O estudo está aqui e, veja, a relação entre liberdade acadêmica e prosperidade passa por um sistema judiciário que opere para garantir que a mesma não sucumba ao wokismo retrógrado. Alguns trechos da conclusão valem menção:
Mais ainda:
Lendo de outro modo, com um Judiciário corrupto, não espere muita defesa da liberdade acadêmica de facto. Muito palavrório e pouca prática constarão dos discursos de juízes e o professor (e o seu alter-ego, o pesquisador) serão, efetivamente, cerceados…concorda?
Mais Dr. Palhinha - O Orlando Tosetto foi o motivador do conto de hoje. Assina que lá também é zero reais.
Uma aula de econometria aplicada - Scott Cunningham consegue ser didático com temas não tão simples. A newsletter dele é ótima para quem curte econometria.
O leitor pode querer recordar o que eu disse em número anterior desta newsletter, sobre educação e totalitarismo. Tem alguma ideia sobre o tema? Acha a liberdade acadêmica desnecessária? Comente aí.
Por hoje é só. Espero que tenha gostado. A gente se vê no sábado (ou a qualquer momento, em edição extraordinária). Querendo assinar (já que não custa um tostão), seria uma honra.