Do papel higiênico como bem estratégico para o país (cadê a política industrial?) e outros temas.
Tá rindo? Mas viver sem papel higiênico você não vive, né?
Bom dia. Espero que esteja tudo bem com você. No v(1), n(35), falamos de um importante recurso estratégico para o país: o papel higiênico.
Papel higiênico: o(s) debate(s) - Pois bem, começando com a clássica polêmica sobre de como você coloca o rolo de papel higiênico no suporte do banheiro. É, penso que deveríamos fazer uma coleta de dados com vários cortes (homem/mulher, rural/urbano, público/privado, etc) e pedir verbas para pesquisas sobre o tema. Já até imagino um cientista político falando sobre capacidades estatais higiênicas ou um economista usando as diferentes orientações como um controle na estimação de uma função de oferta de trabalho1…
Agora, veja, o papel higiênico pode gerar muitos debates importantes. Geopolítica, por exemplo, é um tema em tela. Sabemos que o maior exportador mundial do produto é a China comunista (R.P.C.) e o maior importador é os EUA. Sempre que alguém fala dos EUA tenta insinuar que o governo do país entrará em guerra por causa de algum recurso natural. Seria diferente com o papel higiênico? Ou será que só você não vê os óbvios motivos para a terceira guerra mundial?
Imagino também que não faltem bons argumentos para que os fanáticos defensores da substituição de importações peçam pela produção doméstica de papel higiênico. Por que não os vemos na imprensa pedindo veementemente por isto?2 Fácil. É como naquele dito popular de que a prova do pudim é comê-lo (no caso, de expeli-lo…) pois, no fundo, eles sabem que o argumento não faz sentido e que o melhor é contar com as vantagens comparativas (conceito que geralmente desprezam).
Vantagens comparativas? Sim, isso mesmo. Afinal, se for mais barato importar um papel higiênico que não arranhe as importantes partes íntimas do defensor da substituição de importações, melhor. O argumento, neste caso, não é só retórico ou lógico. Pode ser sentido na própria pele e é por isto que os corajosos polemistas se calam quando o simples produto é mencionado em algum debate sério.
Parece piada - e, de certo modo, tudo tem seu lado engraçado - mas a questão do papel higiênico rendeu muita notícia no início da pandemia. Não tanto no Brasil, mas nos EUA, onde o pânico gerou uma corrida aos mercados. Este recente e interessante texto para discussão fala do problema que é o bem público gerado por um aplicativo que informava onde encontrar lojas com estoques positivos do produto no início da pandemia, em meio a todo aquele caos3.
Pensando em meus compatriotas (e demonstrando meu patriotismo neste que pode ser um dos aspectos mais íntimos da vida do brasileiro), fui lá dar uma olhadinha nas tabelas do IPCA, o índice oficial de inflação brasileiro e comparei as variações mensais do índice com a de um de seus componentes: o subíndice referente ao nosso querido papel higiênico. O gráfico está aí.
Seus hipotéticos tios e o papel higiênico - Como não é incomum (adoro duplas negativas), o subíndice relativo ao papel higiênico (doravante, IPCA-PH) oscila mais do que a média e vemos que aquela sua tia dona de casa hipotética deve ter tido percepções bem variadas sobre o papel higiênico.
Aliás, o também hipotético marido dela, o tio aposentado, deve ter ouvido, por exemplo, de fevereiro para março de 2020, quando o IPCA variou em 0.01% e o IPCA-PH, 0.58%, que provavelmente existia uma conspiração dos vendedores mancomunados com os diabólicos produtores de papel higiênico para arrancar o suado dinheiro do nobre trabalho de ingênuos consumidores hipossuficientes.
Já de maio para junho do mesmo ano, quando o IPCA variou em 0.31% e o IPCA-PH em -0.43%, o hipotético casal de tios deve ter discutido muito sobre como todos, menos o produtor de papel higiênico, devem ter conspirado para tornar a vida do casal muito mais difícil. O mundo é, afinal, cheio de conspirações. Quantas delas dão certo, aí, meu amigo, é outra história.
Você já ouviu sua tia fazer afirmações assim? Não me diga…
O mais incrível é que quase ninguém considera que as oscilações sejam apenas resultado de oferta, demanda e outras características bem menos conspiratórias do que se imagina4. Especulo até que as pessoas tendam a ver mais conspirações com bens e serviços para os quais atribuem maior importância5.
Interlúdio musical -No pain no gain, da dupla Chage & Aska.
O Afeganistão e o conhecimento acadêmico - Um texto maravilhoso (como não lia há tempos) é este, do Hanania. O colapso do Afeganistão é apenas o pano de fundo para uma discussão muito rica sobre a forma como fazemos pesquisa científica. Tem muita coisa para se discutir no texto dele. Muita. Eis um ótimo ponto que ele faz sobre a especialização na ciência.
The theory that specialization is important is not on its face absurd, and probably strikes most people as natural. In the hard sciences and other places where social desirability bias and partisanship have less of a role to play, it’s probably a safe assumption. In fact, academia is in many ways premised on the idea, as we have experts in “labor economics,” “state capacity,” “epidemiology,” etc. instead of just having a world where we select the smartest people and tell them to work on the most important questions.
O viés da desejabilidade social é um conceito que merecia mais atenção da academia brasileira (muito mais preocupada sobre se o Lattes está fora o ar ou se o edital terá o prazo prorrogado)6. Merecia mais atenção, discussão e testes empíricos.
Mas, vamos lá, eis outro ótimo trecho, no qual ele discute as características que seriam desejáveis a um bom analista (ou pesquisador).
Those opposed to cancel culture have taken up the mantle of “intellectual diversity” as a heuristic, but there’s nothing valuable about the concept itself. When I look at the people I’ve come to trust, they are diverse on some measures, but extremely homogenous on others. IQ and sensitivity to cost-benefit considerations seem to me to be unambiguous goods in figuring out what is true or what should be done in a policy area. You don’t add much to your understanding of the world by finding those with low IQs who can’t do cost-benefit analysis and adding them to the conversation.
Não sei o meu QI (meu insucesso na vida me dá uma pista aterradora), mas eu vejo como o argumento da análise de custo-benefício tem sido polêmico nos debates da pandemia. A polêmica, em si, é parte da discussão, claro. Mas, com o viés de desejabilidade social em ação (que bem pode ser maior quando a chance de ganhar um dinheiro com uma boa coluna em um jornal, ou popularidade que, no final, é dinheiro), boas polêmicas terminam em agressões verbais7.
Relacionado a este texto é o também ótimo de Noah Smith, que versa sobre um dos aspectos da “interdisciplinaridade”, especificamente, sobre o que ele chama de epistemic trespassing. Em outras palavras, o fenômeno em que, por exemplo, um infectologista fala de supostas derivações econômicas de uma pandemia (ou, com as devidas alterações, o oposto). Durante a pandemia, por exemplo, não faltaram opiniões de jornalistas sobre biologia, de infectologistas sobre economia e assim por diante.
McCloskey, em The Secret Sins of Economics8, um livrinho (que também merece tradução), disse que a divisão do trabalho (especialização) para aumentar nosso conhecimento específico não é um fim em si, mas um meio de adicionar valor ao que fazemos de forma a potencializarmos nossas trocas. Isso vale para o conhecimento também, claro.
Nem sempre a invasão epistêmica do feudo alheio resulta em uma piora na qualidade da informação ou do debate público de temas importantes. Noah menciona um exemplo.
A modern example — with potentially significant health consequences — was the journalist Zeynep Tufecki’s successful effort to counter CDC and WHO guidance on the usefulness of masks in early days of the COVID-19 pandemic. To make a long story short, Tufekci was right and the epidemiological experts were wrong, as they later (to their great credit) admitted. Many people’s lives were probably saved by the efforts of Tufekci and other epistemic trespassers who strayed outside of their lanes on this issue.
This must be weighed, of course, against the panoply of cranks who downplayed the virus and spread antivax messages. No one disputes the harm those trespassers have done. But inveighing against epistemic trespassing in a blanket manner would seem to throw out the good along with the bad.
Nestes ótimos textos do Hanania e do Smith estão temas que nunca saíram de moda nas discussões que eu e uns amigos (e uns inimigos) tínhamos no café, entre a aula de Microeconomia (baseada no inigualável livro do Hal Varian, por exemplo) e a de Macroeconomia (com base no ótimo manual do Ben Heijdra), quais sejam: o real poder dos especialistas, o problema da interdisciplinaridade, a burocracia do governo na pesquisa etc.
É verdade que hoje temos as redes sociais e a relevância da discussão de temas nestes murais públicos de opiniões não é função apenas da boa retórica, da consistência lógica dos argumentos, do interesse político dos envolvidos, do viés da desejabilidade social, ou da sua sincera vontade de desabafar. É um pouco de cada.
Leitores - Um leitor me contactou por email (acho que não quis (ou não soube como) deixar o comentário por aqui) e me trouxe uma ótima sugestão de leitura. Não é sempre que isto acontece, mas é legal quando um leitor da newsletter aparece com sugestões. A imagem mental é de que estou sentado no banco da praça, lendo, quando o leitor surge correndo, com um livro na mão, gritando: - Olha este aqui! Assim que puder, vou dar uma olhadinha na sugestão dele. Obrigado, João! (spoiler: o livro chegou ontem)
Mais dados de papel higiênico? -Temos sim.
Papel higiênico na Wikipedia? - Também temos…e com link para o The Whole World Toilet Paper Museum.
Como um economista ajudou, efetivamente, no combate ao vírus - Não, não foi lacrando no Twitter (o que é irresponsável, mas atende ao viés de desejabilidade social e divulga sua empresa, claro). Sequer dizendo que previsões estapafúrdias eram realidade (idem).
Não, não. Foi criando e implementando um fundo para pesquisas sobre o vírus com uma aprovação muito rápida dos projetos submetidos9. De vários projetos aprovados há um que parece promissor.
Meus decretos ditatoriais - Todo evento chamado roda de conversa será proibido. O uso do termo roda de conversa por cidadãos brasileiros (naturalizados ou não) estará cancelado a partir da data da publicação deste decreto ditatorial. A pena é a de morte por esquartejamento com requintes de crueldade.
(Old, but gold) Planeta Estranho - Divertido o humor do Alexandre (ou “o humor divertido do Alexandre”).
Por hoje é só. A gente se vê, espero, em breve. Até lá, o pedido de sempre: compartilhe com seus amigos. Incentive-os a assinar a newsletter. Não vicia. Já há relatos de que pessoas que assinaram tiveram sorte na vida. Alguns até ganharam aumento de salário. Uns hereges dizem que é correlação, mas é causalidade. Juro.
E nenhum deles citará este texto como fonte de inspiração, claro.
É, inclusive, um produto com baixa complexidade como se vê aqui.
É, meus amigos e minhas amigas, o papel higiênico é um bem privado, mas a informação de onde encontrá-lo é um bem público.
Claro que sempre há alguém conspirando. Outra história é se a conspiração tem sucesso…
Já reparou que sempre há um exportador falando de conspirações contra uma taxa de câmbio de R$ 120,00 por U$ 1,00? Muita gente ganha a vida estimulando esta crença e, sim, isto tem a ver com a irracionalidade racional da qual já falamos em outros números desta newsletter.
Nada contra. Mas ninguém nunca pensou que um sistema centralizado de currículos não seria uma boa ideia? Há um argumento que é: ah, mas é mais fácil checar fraudes, que não é bem verdade. A ex-presidente Dilma ficou famosa por incorreções em seu currículo Lattes e ela não foi a única (e não há qualquer evidência de que o sistema seja mais imune a fraudes que um currículo comum). Há até um ar meio desconfiado em algumas defesas do Lattes. Coisas como: o brasileiro é inerentemente um mentiroso, logo, é preciso que o Estado o obrigue a ter um Lattes. Será mesmo? Não creio. E quem está neste mesmo Estado também não é brasileiro?
De qualquer modo, o Lattes pode ajudar você a se organizar, mas a turma da fronteira da pesquisa, digamos, os países da OCDE, não têm um monstrengo como ele. As pessoas usam seus próprios modelos de currículos e tudo bem. Claro, os coletadores de dados da burocracia envolvida na educação e na pesquisa se aproveitam do sistema para criarem indicadores e tal. Entretanto, desde a criação do Lattes até hoje, não me parece que a pesquisa, no Brasil, melhorou por conta do modelo de currículo que, dizem, é tão bom que devo ser obrigado a usá-lo. Quando a demanda não é espontânea, a gente desconfia.
Um exemplo é o tal ad hominem somado ao uso diabólico da tecnologia. Marca-se a vítima no grupo (ou na rede social) com o seu empregador e com alguma ironia, desqualifica-se a pessoa.
Posso ter me enganado na citação. Ainda assim, é um ótimo livro.
Claro que isto não funciona com as humanas ou sociais aplicadas porque nenhuma destas gera vacina ou remédio. Duro dizer isto, mas é a verdade.