A irracionalidade racional e seus vieses. Alex, o metempsicótico. Outros.
Vou levar dois panegíricos. Corta para bife, por favor.
Neste v(3), n(9) dou continuidade ao tema da irracionalidade racional (talvez eu continue nesta discussão por alguns números). Os leitores acostumados com a parte ficcional da newsletter encontrarão o curioso caso (não de Benjamin Button) de Alex, metempsicótico. Divirta-se!
A irracionalidade racional e seus vieses - Falei da irracionalidade racional em número anterior. Creio que foi no v(3), n(8) da news. O conceito foi desenvolvido por Bryan Caplan em uma série de artigos que, posteriormente, foram compilados em seu ótimo The Myth of the Rational Voter, um livro que todo estudante de Economia (pelo menos) deveria ler.
Quando se fala em irracionalidade racional, muitos se perguntam sobre o que seria a irracionalidade. Caplan fala de desvios em relação ao que se espera no caso de expectativas racionais. Para o leitor não-familiarizado com o termo, diz-se que o indivíduo tem expectativas racionais quando ele não comete erros sistemáticos. Ainda abstrato demais?
Pense em um indivíduo que tem dinheiro aplicado em fundos de investimentos. É do interesse dele errar o menos possível na previsão da inflação. Ele pode errar ocasionalmente, mas o ponto é que não errará sempre. Seus erros, em média, são iguais a zero. Por que? Porque, tendo seu dinheiro aplicado, é importante, para ele mesmo, calcular com o menor erro possível, seu ganho real no mês. Por que?
Porque conforme seus ganhos reais, pode realocar sua riqueza na mesma carteira de investimentos em diferentes configurações. Poderá até decidir transferir seu dinheiro para outras opções de investimento.
A irracionalidade racional surge quando o indivíduo sistematicamente se desvia das expectativas racionais. Isto acontece - e há uma boa literatura vinda de outras áreas (notadamente, da psicologia) - quando ele tem preferências por crenças. Em outras palavras, há pessoas que estão dispostas a abrir mão de riqueza para sustentar sua visão de mundo.
Eleitores, por exemplo, em geral, não gostam de candidatos que lhes digam que estão errados. O leitor já deve ter conversado com um motorista de táxi ou de aplicativo. A conversa, seja sobre futebol, política ou qualquer outro tema, geralmente tem um tom taxativo. O motorista sustenta que votou no candidato mais coerente com sua própria visão de mundo, não naquele que lhe mostrou que estava errado.
Não, não são apenas motoristas. Você já deve ter tido esta experiência em jantares com amigos e amigos de amigos. Ou pode, você mesmo, já ter notado o quanto você defendia um ponto de vista político absurdo em relação aos indícios que os especialistas de sua área de atuação apontavam como sendo o razoável.
Mesmo os especialistas, é bom ressaltar, não estão livres destes vieses. Todos estamos. O que não é simples de se perceber é a situação real, do dia a dia. Afinal, podemos ‘pagar para ver’ em algumas dimensões, mas não em outras. Alguns médicos, por exemplo, acham que não existe custo de oportunidade em escolhas, por exemplo, embora sejam a pessoa certa para uma consulta médica.
‘Ok’, você dirá, ‘mas me dê aí uns exemplos mais concretos destes desvios/vieses’. Muito bem, no capítulo segundo do livro mencionado, Caplan resume os principais vieses que caracterizam a irracionalidade racional em Ciência Econômica1. Eis um resumo de cada um deles (em tradução livre).
Viés anti-mercado - a tendência de subestimar os benefícios econômicos do mecanismo de mercado;
Viés anti-estrangeiro - a tendência de subestimar os benefícios econômicos das interações com os estrangeiros;
Viés pró-(uso excessivo do) trabalho (make-work bias) - a tendência de subestimar os benefícios de se poupar o uso do trabalho;
Viés pessimista - a tendência de superestimar a severidade dos problemas econômicos e de subestimar o desempenho da economia no passado (recente), no presente e no futuro.
Creio que vários leitores já estiveram em alguma conversa em que um ou mais destes vieses foram ferreamente defendidos como verdades universais e perenes. Eu mesmo já vi um professor (com doutorado e tudo) de Relações Internacionais defender que o comércio entre países é um jogo de soma zero. Nem o mais ferrenho economista intervencionista é capaz (não é? Hum…) de falar tamanho absurdo.
A defesa de que não devemos permitir a entrada de engenheiros italianos no estado de Minas Gerais, no que diz respeito ao segundo viés, é algo que vi até em matéria jornalística de uma famosa rede de televisão nacional. O repórter (ou a pauta que lhe deram) sequer mencionava os benefícios, para o estado, de se ter mais engenheiros qualificados (e nem vou falar dos benefícios secundários de se conviver com imigrantes).
O terceiro viés? Bem, todos sabemos que, hoje em dia, você pode entrar em um ônibus usando um cartão de vale-transporte. Isto significa que o transporte poderia ser feito apenas com o motorista, se a máquina de checagem eletrônica estivesse próxima a este. Não é, contudo, assim que os ônibus operam no Brasil. Há um sujeito adicional - cuja função original era conferir o pagamento em papel e em moedas e manejar o caixa do ônibus - que apenas observa se o cartão está carregado ou não com o passageiro já dentro do ônibus. Parece uma solução bem ineficiente, mas é, eleitoralmente, popular.
Sobre o último viés, o do pessimismo, basta olhar algumas discussões que surgem, com frequência, na imprensa, sobre o futuro da economia. Ou ela estará estagnada, ou destruída pela poluição, ou com desemprego maciço (por conta da inteligência artificial). O leitor que acompanha os noticiários já ouve isto tudo há mais de dez anos e, no entanto, a economia não estagnou e nem um cenário apocalíptico se tornou realidade. Ainda assim, há quem olhe para catástrofes de curto prazo e pensem no futuro olhando apenas para elas, ignorando todos os avanços que vemos diariamente.
Talvez o leitor queira me contar alguns casos envolvendo estes vieses. O espaço de comentários é para isto.
Alex, o metempsicótico - Alexandre Eulálio de Ponte Preta (Alex, para os íntimos e leitores) era um rapaz normal, exceto pelo fato de que sua alma trocava de corpo com outras pessoas sempre que discutia política brasileira. Às vezes ia para o corpo do interlocutor (e vice-versa), às vezes para alguém aleatoriamente escolhido pelo destino.
Nasceu com isto - seria um dom? Uma doença? Um super poder? - mas, como não discutia política quando criança (os pais não eram tão criminosos assim…) - o problema só se manifestou mesmo na adolescência. E da forma mais incômoda: foi em seu primeiro beijo.
Alex investiu meses no encontro com Débora. Ambos tinham seus poucos doze anos. Apaixonado e ansioso, sentou-se com ela em uma lanchonete e, enquanto esperavam a pizza, começaram a discutir política. Tinham alguma discordância (ela votava mais ao centro do que ele). Estavam animados e próximos de um beijo quando, subitamente, viu-se no corpo do jovem que trabalhava no caixa. Foi assim que perdeu seu primeiro beijo.
A metempsicose durou uns vinte minutos e, quando Débora já xingava o safado rapaz do caixa por suas tentativas mais ousadas de explorar os limites do amor (e da paciência dela), a transmigração reversa ocorreu a tempo do pobre Alex levar um belo de um sopapo no rosto.
Chegou em casa chorando e contou tudo aos pais que, claro, acharam que Alex estava mentindo. Depois, que estaria louco. Finalmente, levaram-no a um médico que o mandou para uns exames que não encontrariam nada de errado em seu cérebro ou no restante de seu corpo. Contudo, Alex insistia que tinha um problema.
Foi quando dona Zenóbia, sua tia, foi chamada. Famosa por seus poderes paranormais, a tia era a candidata perfeita para tirar a limpo a história de Alex. Ou não, já que os pais eram bastante céticos quanto a temas envolvendo almas, trocas de corpos ou julgamentos do STF envolvendo políticos ricos.
Dona Zenóbia também era cética quanto a este último tópico (difícil achar quem não o seja, né?), mas ouviu com sincera atenção a história do atormentado Alex. Em seguida, pediu para que ele discutisse um pouco de política com ela. Não deu outra: em minutos, sua alma trocou de corpo com a alma da tia. E tudo isto em frente aos embasbacados pais.
A tia mandou que a mãe trouxesse um Schweppes (receita original). Segundo ela, a bebida ajudava a acelerar a transmigração reversa que devolveria as respectivas almas para os, claro, respectivos corpos. Dito e feito. Após um gole do Schweppes (que não patrocina esta newsletter), tudo voltou ao normal.
‘- Olha, gente’, disse tia Zenóbia com ar professoral, ‘o meu fofo aqui, meu sobrinho lindo, Alex, é um metempsicótico’.
’- Como é?’, exclamou o pai, já se preparando para enfiar uma surra de cinto no filho que tentava reclamar com a tia que não era fofo, que já era grande, estas coisas.
’- Meu filhinho, isto tem cura, Zenóbia"?
- Não, Mirtes, querida. Não. Agora, olha, não é doença, né? É tipo um dom que o Alexizinho tem. Uns são bons de futebol, outros de retórica, o Alexizinho é bom de metempsicose e, não, Jorge, não é para bater no menino. Metempsicose é esta transmigração de almas. Só que ao invés de morrer e reencarnar, o Alex consegue fazer isso aqui mesmo, enquanto está vivo!
- Ai, meu Deus, Zenóbia…o plano de saúde não cobre isto não? Vai dar um problema…
- Calma, Mirtes. E você também, Jorge, calma…
- Eu só queria que meu filho fosse um bom artilheiro…’, disse o pai, ainda em choque.
No canto da sala, o pobre Alex se perguntava se havia sido vítima de alguma falha no poder divino. Bem, mas se Deus é infalível, então seria tudo uma piada divina? Ou haveria algum sentido naquilo, mas que ele só descobriria após alguma destas ‘jornadas do herói’ que se vendem por aí, em cursos online?
Tia Zenóbia se despediu, apertando o sobrinho como se ele ainda tivesse dois anos de idade e os pais resolveram descansar um pouco, pedindo que Alex não saísse de casa sem avisá-los. Nem precisavam dizer isto ao metempsicótico da família. Ele já arquitetava planos para ocupar o corpo de Natália Fleury Frejat, a cheerleader mais badalada da escola…
(pode ser que continue)
Diário da Corte…- O Alexandre Soares Silva deu um tempo na newsletter, mas continua, esporadicamente, publicando neste endereço.
O Relógio do Juízo Final e o Horário de Verão - A melhor piada do Babylon Bee nestes dias…
Diário do Extremo Oriente - É a nova coluna do Adalberto de Queiroz no Recorte Lírico.
Zardoz - O filme (que ainda não vi) tem o trailer mais alucinado de todos os tempos? Julgue por si mesmo.
Por hoje é só, pessoal e…até mais ler! (*)
(*) “até mais ler” foi plagiado do Orlando Tosetto, cuja newsletter, aliás, você deveria assinar.
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Talvez você seja novo por estas bandas. Rapidamente: publico duas vezes por semana, geralmente às quartas e sábados. Eventualmente há algumas edições extraordinárias. Assinar (custo = R$ 0.00 + valor do seu tempo para apertar o botão subscribe com seu endereço de e-mail lá…) me ajuda bastante. A temática? De tudo um pouco. Confira os números anteriores aqui.
Por que ‘Ciência Econômica’ no singular, Claudio? Porque sou tão esperto quanto o pessoal da ‘Ciência Política’ (que adora pedir ‘pluralismo de visão em outras áreas, mas adota o nome da própria área no singular…são ótimos marqueteiros…). Ou seja, acredito que ‘Ciências Econômicas’ abre espaço para muito charlatanismo. Em respeito aos profissionais de Economia, quer eles gostem ou não, chamo de ‘Ciência Econômica’ e não vou entrar em discussões abstratas sobre epistemologia aqui. Parece-me que é menos prejudicial ao bom estudante e profissional de Economia que o nome da área seja no singular. Visões distintas? Claro que há. Existem vários manuais de ‘História do Pensamento Econômico’ para mostrar que há muito espaço para a diversidade de modelos/visões. Você nunca verá, exceto por lapso, nesta newsletter, o termo ‘Ciências Econômicas’.