A falácia ecológica, o 'path dependence' e mais alguns temas
Falácia ecológica, o fim da liberdade de cátedra, talibãs, divórcios, trabalho remoto, Sofia e Gigi etc.
Bom dia e bem-vindo(a). Neste v(1), n(39) retomo temas mais acadêmicos como a discussão de path dependence (um tema típico de história econômica) e também a lamentavelmente crescente intolerância com a liberdade de expressão nas universidades. Outros pequenos textos e links, claro, ao final.
Você talvez seja novo aqui. Então, rapidamente: publico duas vezes por semana, geralmente às quartas e sábados. Eventualmente há algumas edições extraordinárias. Assinar (custo = R$ 0.00) me ajuda bastante. A temática? De tudo um pouco. Confira os números anteriores aqui.
Path Dependence e nós - Logo no início de seu clássico Politicized Economies: Monarchy, Monopoly, and Mercantilism, os professores Robert Ekelund e Robert Tollison faziam um alerta pouco usual na animada academia dos anos 90: cuidado com o conceito de path dependence. O motivo? Poderíamos ter análises presas a um novo tipo de determinismo histórico.
Para o leitor que nunca se deparou com o conceito, path dependence diz respeito ao fato de que resultados econômicos atuais seriam determinados por resultados econômicos passados, mas de uma forma tal que, digamos, algo ocorrido em 1765 ainda seja determinante hoje.
Ekelund e Tollison têm um ponto: há mesmo uma tensão entre um determinismo (dependente da trajetória) e a ação dos indivíduos diante da mudança dos parâmetros do ambiente. Será mesmo que um Plano Real não suplantaria uma suposta trajetória inflacionista que vem desde o Império? Pouco provável.
No mínimo, a ideia de dependência da trajetória seria uma hipótese testável, não um afago aos amantes da ideia dos determinismos de todo o tipo. Penso que Ekelund e Tollison podem ter razão.
Há um problema sutil, frequentemente ignorado em trabalhos que postulam o falseamento da hipótese de path dependence que é o problema da falácia ecológica. Já novamente me desculpando ao leitor menos familiarizado com termos técnicos, falácia ecológica, diz respeito ao fato de que, em muitas situações, inferências feitas com dados agregados não se aplicam aos dados em níveis menores de agregação.
Pense, por exemplo, no caso de alguém que encontre uma correlação positiva entre dados de votação municipal em certo candidato e nível médio de renda de um município. Isto significa que você mediu algo relativo às preferências dos eleitores daquele município? Não necessariamente, mesmo que, intuitivamente, sua hipótese faça sentido1.
Em trabalhos de economia aplicada, o problema surge com muita frequência (e não apenas com pesquisadores desleixados). Claro, nem o problema é novo como também nem tudo está perdido. Há métodos para se lidar com a falácia ecológica (esta aula aqui, de 2002, dá umas dicas interessantes).
Muito do que já se disse ser path dependence nos trabalhos de História Econômica, penso, talvez não o seja. A falácia ecológica levanta uma grande suspeita sobre regressões estimadas com dados históricos agregados...
Mais ainda: a falácia ecológica está por aí e não necessariamente será resolvida com esta ou aquela técnica econométrica, por mais que gostemos delas. Técnicas econométricas são importantes, devem ser usadas, mas os usuários precisam ‘ler o manual’ e saber de suas limitações.
Mesmo que sejamos cuidadosos com o uso das técnicas, não se pode descartar a possibilidade de que novas técnicas surjam no futuro, podendo ou não invalidar conclusões (‘consensos’) prévias. Sempre vejo isto em pesquisas.
Há também os casos em que pesquisadores revisitam as variáveis das bases de dados dos estudos anteriores com uma nova hipótese sobre como eles se relacionam e chegam a conclusões distintas. Quer um exemplo?
Todo manual de microeconomia mais antigo menciona o caso das batatas, especificamente na Irlanda do século 19, como um exemplo de bem ‘atípico’, já que a quantidade demandada de batatas responderia diretamente a uma mudança em seu preço relativo. Traduzindo: a quantidade demandada de batata cai (sobe) em resposta a uma queda (aumento) em seu preço relativo.
A batata inaugurou uma nova categoria de bens: os bens de Giffen, em homenagem a Robert Giffen, que publicou seu estudo em 1890 sobre a chamada Grande Fome que assolou a Irlanda no século 19 (mas que, segundo alguns autores, nunca disse que a demanda de batatas se comportasse deste modo…).
Em 1999 (note, quase 110 anos depois…), o falecido Sherwin Rosen propôs que as batatas não apresentariam este comportamento atípico e mostrou isto com um modelo teórico diferente. Não satisfeito, apresentou uma estimativa elegantemente simples corroborando sua hipótese com os mesmos dados de Giffen.
Voltando à relação entre a falácia ecológica e o conceito de dependência de trajetória (é, ninguém fala assim, melhor usar path dependence), minha intenção foi unicamente chamar a atenção para o fato de que o que parece ser uma rigidez derivada de uma dependência pode ser uma ilusão derivada de uma medida pouco acurada dos eventos.
Como consequência, é possível que o papel do determinismo histórico - que geraria certa rigidez institucional em alguns eventos - seja menos poderoso do que imaginamos. Tudo depende do evento histórico estudado, da qualidade das bases de dados utilizadas e, obviamente, da capacidade do pesquisador.
O fascismo que é seu apego ao cancelamento alheio - A moda, nos EUA, de praticar a intolerância em nome da tolerância, chegou no Brasil? Nenhum pesquisador tem coragem de falar sobre o tema por aqui, ainda.
Esta carta, de um professor de filosofia norte-americano, explicando como a institucionalização do cancelamento na sua universidade levou-o a tomar a extrema decisão de se demitir é um testemunho vivo dos danos que a importação destas práticas trará (ou já trouxe?) às universidades brasileiras.
É curioso que a comunidade científica brasileira, tão apegada ao seu Lattes, não esteja muito interessada em discutir esta ameaça à sua própria prática diária do livre pensar ao mesmo tempo em que se diga árdua defensora da liberdade de cátedra. Será mesmo?
Algumas pessoas, em condição de anonimato, já me falaram de regras adotadas recentemente em IES privadas que vão na direção do cerceamento do discurso ou da crítica a qualquer pensamento que venha do aluno (esteja ele correto ou não, do ponto de vista do conteúdo ministrado).
Não consigo imaginar o progresso científico (o mesmo que, alegam, produz vacinas…) sem a liberdade de expressão, o método socrático, enfim, o tal contraponto de ideias que meus professores declaradamente marxistas (em plenos anos 80, ainda antes do fim do governo militar) defendiam com tanto afinco.
Engana-se quem imagina que, no Brasil (ou em qualquer lugar), a correção desta aberração virá de cima, por meio de um decreto de um ministro. Só há duas saídas para esta situação: (a) o aeroporto (mas cada vez mais há menos destinos decentes…); (b) os interessados no assunto mudarem o rumo das coisas.
Uma pergunta que me ocorre é: será que o brasileiro é um sujeito que realmente se preocupa com a sua liberdade de expressão para todos? Ou ele a vê como algo acessório, que só merece a atenção de quem quiser, deixando sua defesa apenas para as tribos que se sintam mais incomodadas com a temática? Mais ainda: será que sua resposta se limita apenas ao brasileiro ou se estende ao resto da humanidade?
Sofia e Gigi - Sofia e Gigi estão totalmente adaptadas à família. Continua sendo muito interessante observar a diferença de temperamento de cada uma delas. Gigi anda com a mania de se esconder sob qualquer pano (tapete, colcha, etc.), o que tem exigido maiores cuidados dos humanos em seus deslocamentos pela casa.
Graças a um antigo hábito (ou por não ser exatamente alguém muito extrovertido), não pulo em camas ou sofás, o que, neste momento da vida, é algo muito positivo, pelo menos para Gigi.
O trabalho virtual - Diogo falou de um aspecto do lado negativo do trabalho remoto recentemente. Eu tenho algo a acrescentar (e talvez haja uma relação entre o que ele diz e o que eu digo).
O trabalho virtual funciona quando você pactua com o funcionário a entrega dos resultados e (atenção, não é “ou”, é “e”) entende que devem existir graus de liberdade porque, claro, se você tentar controlar tudo, a ideia de pacto, por si só, nem faria sentido.
Dois exemplos hipotéticos. O primeiro: chefe A contrata, do funcionário B (com sua equipe), a entrega de produtos X e Y. O contrato: faça como quiser, mas vou agendar uma reunião semanal e, no final do período contratual, você me entrega.
O segundo: chefe C contrata, do funcionário D (com sua equipe), a entrega de produtos X e Y. O contrato: faça como quiser, mas vou agendar uma reunião semanal e você terá, também, que preencher vários formulários, diariamente, sobre o seu desempenho, o desempenho de sua equipe e, no final do período contratual, você me entrega.
Fácil ver que o chefe C dificilmente atingirá seu objetivo com a qualidade e a rapidez que imaginou.
Minha apostila…- Uma apostila minha, sobre Escolha Pública (ou sobre Economia em geral, com ênfase em Escolha Pública) foi alvo da leitura de uma turma da professora Amanda Flávio (UnB) no dia 10 de setembro (ontem).
Um ponto que pensei para melhorar a apostila é sobre as possibilidades que a tecnologia nos traz. Gico, do canal Gico HQ, produziu duas revistas sensacionais, na premissa de como seria se Jack Kirby criasse os Vingadores no Brasil dos anos 70. Surgiu daí o Esquadrão Vitória (propaganda gratuita para ele aqui) e, em algum momento, vou incluir esta iniciativa numa versão ampliada da apostila.
Claro, meu desejo é que ela se torne um livrinho que possa ajudar leitores não tão familiarizados com a Ciência Econômica que apreciem o universo dos gibis e afins. Ah, antes que eu me esqueça, obrigado, professora Amanda e turma pela oportunidade!
Verdades fáceis de engolir (humor onde você acha que não haveria como…) - O governo talibã cumpriu, acredito, alguma meta da ONU (como é mesmo? ODS? OSD? DSO? DDT?) sobre redução de gender gap. Agora, não tem mais gap. Caso em tela: o gender gap na educação.
![Twitter avatar for @ACLWDiannRH](https://substackcdn.com/image/twitter_name/w_96/ACLWDiannRH.jpg)
![Image](https://substackcdn.com/image/fetch/w_600,c_limit,f_auto,q_auto:good,fl_progressive:steep/https%3A%2F%2Fpbs.substack.com%2Fmedia%2FE-wRsWBVIAEBXdW.jpg)
Ninguém pode dizer que não houve mudança na governança do país. Claramente uma mudança no uso das capacidades estatais (inclusive, com a incorporação de armamento ocidental).
Estudantes de Economia no PhD - Para os EUA, as evidências de que tem aluno com problemas não são desprezíveis.
Divórcios e o Coeficiente de Gini: uma proposta de política pública que não deve ser levada a sério (ou não) - Suponha dois casais, cada qual com riqueza unitária. O coeficiente de Gini é igual a 0.
Agora, suponha que um dos casais se divorcie e o juiz mande dividir a riqueza igualmente (suponha que ele sempre decida desta forma) de modo que, agora, temos 1, 0.5 e 0.5. A desigualdade aumenta? Aumenta.
Pensando na desigualdade social, e como o judiciário é inflexível no meu exemplo, um ditador benevolente poderia resolver isso facilmente: basta obrigar o outro casal a se divorciar também. A brincadeira toda pode ser replicada e visualizada aqui.
Por hoje é só. A gente se encontra no meio da semana. Até lá, muito trabalho, saúde e alegria para você e os seus.
Outro exemplo? Um ótimo, citando, inclusive, o artigo original a partir do qual o termo se disseminou: “Whereas Robinson focused on the danger of using aggregate data to draw conclusions about the behavior of individual people, the ecological fallacy problem in fact applies to inferences across levels of aggregation in general. Individuals need not be people. The terms individual level and aggregate level as used here refer to relative levels of aggregation. To illustrate, the term ‘individual’ could refer to a single church congregation within a population of congregations. The ecological fallacy problem would arise if a researcher tried to use data on racial diversity and attendance growth rates across church denominations (collections of congregations) to draw conclusions about the effect of racial diversity on local church growth. Because parishioners attend a local congregation, it is racial diversity at the local level, not at the denomination level, that is the natural focus here. One could of course survey local congregations in this instance, but the survey would ask questions about a collective (a congregation) rather than about a person”. [originalmente aqui]