Eis o v(2), n(103) da newsletter chegando até você em 24/12/2022. Sim, isso mesmo.
Três Papais Noéis - Andava pelas ruas da cidade naquela véspera de Natal. Ruas, aliás, já com movimento moderado de pessoas e automóveis. O início da noite acentuou a ausência de vida fora dos lares.
Apertou o passo e, olhando para o chão, não pôde evitar o choque com um Papai Noel que vinha em sentido contrário.
‘- Ai, opa, desculpe-me!
- Amigo, seria bom que olhasse para frente…
- Oh, sim, sim. Eu sei…’
Por sorte, nenhum dos dois se machucou. Despediu-se do Papai Noel e seguiu pelo seu caminho. Pensava no ano terrível que tivera. Os reveses no trabalho, as brigas com a namorada, culminando com sua total solidão naquela que deveria ser uma celebração compartilhada da vida: a véspera do Natal.
Sem que percebesse, caminhava olhando para o chão novamente. Foi quando, por um capricho cósmico, chocou-se com outro Papai Noel.
‘- Ops, nossa...desculpe-me!
- Amigo, seria bom que olhasse para frente…
- Ah, sim…espera…’
Uma estranha sensação lhe percorreu o corpo, fazendo com que se arrepiasse. Não ouvira a mesma frase antes? Olhou bem para o Papai Noel, mas não pôde encontrar traços familiares no mesmo. Por outro lado, por quanto tempo havia tido contato com o primeiro Papai Noel? Segundos? Talvez um minuto?
‘- O senhor me perdoe, eu não estava prestando atenção…
- Tudo bem, meu jovem. Só tome mais cuidado.
- A propósito, eu não o conheço de algum lugar?
- Acho que não. O senhor tem traços marcantes. Eu me lembraria. Ho, ho, ho.’
Sorrindo, despediu-se do segundo Papai Noel e seguiu caminho. O céu ainda estava nublado. Há dias que estava assim. Afinal, as palavras Brasil, chuva e Natal geralmente andam juntas por estas bandas.
Absorto em pensamentos sobre coincidências natalinas, quase foi atropelado ao atravessar a calçada. Como é que podia, dois velhinhos diferentes dizerem…pumba! Novamente chocou-se com…um Papai Noel.
‘- Meu Deus, não acredito. Eu estava olhando para o chão…
- Amigo, seria bom que olhasse para frente…
- Sim, sim, espere…eu já o encontrei, não? Como é que…
- Hein? Eu nunca o vi, meu jovem.
- O senhor…bem, é que o senhor…
- Acho que está na hora de você descansar, meu jovem.
- É, o senhor deve ter razão…’
Despedindo-se, e bem ressabiado, ficou parado, vendo o terceiro bom velhinho se afastar. Queria ter certeza de que não o encontraria novamente. Quando não mais o viu, relaxou um pouco e passou a caminhar olhando para frente, para os lados e, eventualmente, para trás.
Aos poucos, passou a olhar para a frente mais do que para o chão. Não queria trombar em mais um bom velhinho. Começou a reparar nas vitrines. Eram poucas. A decadência da segurança pública no país há anos fizera com que pesados portões de aço escondessem as vitrines. As ruas? Sujas porque, sabe como é, não é fácil jogar lixo na lixeira. O céu? Nublado, claro.
Já não andava tão rápido. Sentia-se um pouco mais calmo. Reparou nas árvores e nas tímidas decorações de Natal de algumas casas (algumas, claro, com o famoso boneco de Papai Noel subindo a escada, em suas janelas). A alegria transmitida pelos bonecos contrastava com seu coração pesado. A tristeza do ano não iria abandoná-lo facilmente. Teria que trabalhar isto. Procurou ver o lado bom dos acontecimentos.
Viu um mendigo andando de forma confusa e, ao segurá-lo pelo braço, evitou seu atropelamento. Levou-o até um bar e lhe comprou um pão com mortadela. O mendigo deu uma mordida e jogou o sanduíche na calçada, estendendo-lhe a mão esquerda. Apenas lhe deu um sorriso e seguiu caminhando.
Chegou ao estacionamento onde deixara seu carro. Pagou no cartão e deixou umas notas na caixinha do menino que ora se fazia de engraxate, ora de ajudante do manobrista. Tirou do bolso um pacote de balas que havia ganho no escritório e deu ao menino que lhe disse:
‘- Obrigado, Papai Noel.
- De nada, filho. Papai…?
- Sim, o senhor mesmo.
- Ha, ha, ha. Ok…’
Sorriso sincero? Sim, ali estava uma faísca de alegria com algum potencial. Seguiu a caminho do carro estacionado pensando em como a figura do Papai Noel estava presente na última meia hora de sua vida. Entrou no carro e já saía lentamente, quando o menino quase lhe causa um acidente, atravessando o pátio.
‘- Menino! Não faz isso não!
- Desculpa, Papai Noel. Não faço não.
- Amigo, seria bom que olhasse para frente…’
Deu-se conta do que acabara de dizer e, como num passe de mágica, agora suas roupas eram as do Papai Noel e seu carro era um trenó, guiado por várias renas. Notou que havia muitos presentes a serem entregues. Sentia-se incrivelmente calmo para quem havia acabado de passar por uma transformação como esta.
‘- Olhar para frente…’, pensou, cheio de esperança, e riu sozinho.
As renas começaram a caminhar e logo o trenó alçava voo. Pôde ver os três Noéis acenando-lhe, juntos, em uma esquina. Retribuiu o gesto. Olhou para frente e viu nuvens e a lua. Percebeu que que teria uma longa noite de trabalho. Seus problemas, pelo menos naquela noite, pareciam-lhe menos importantes.
Natal (adendo) - Dê uma olhada na crônica ótima do Adalberto.
Admirável Coutinho - Um divertido conto do Alexandre Soares Silva. Ri muito lendo-o.
Amigos - Nunca são muitos, eu sei. Tenho alguns antigos e outros que, surpreendentemente, apareceram em minha vida nos últimos anos. Este Natal tem este aspecto único, mais carregado do sentimento de gratidão por amizades que se forjaram nos mais diferentes contextos.
Nesta semana fui surpreendido com algumas manifestações de amizade. Ser positivamente surpreendido é muito difícil. Surpresas negativas são mais comuns na vida. Daí que surpresas positivas tenham este sabor especial.
Um presente de Natal - Guilherme Stein me dá um presente incrível ao analisar a economia em It’s a Wonderful Life, filme que descobri recentemente (é dos anos 40!). A mensagem final de seu texto, contudo, transcende o aspecto econômico e didático do ótimo texto. Leia e assine (acho que farei um apanhado de newsletters nacionais internacionais gratuitas que li, na última news deste ano).
Outro bom filme que não revejo há tempos…- Stein poderia analisar este também (quem sabe qual é o filme?). ^_^
Falando em economia… - Samuel Pessoa faz uma análise da herança econômica da administração atual. Ao contrário do wishful thinking, foi uma boa gestão. Uma boa gestão, aliás, não é uma gestão perfeita. É apenas uma gestão que gera um benefício maior do que o custo para a sociedade. Concordo com Samuel. O saldo foi positivo.
Você pode criticar a gestão econômica, mas fazê-lo desonestamente não o qualifica como um bom crítico. Agora, se as instituições são mesmo sólidas e democráticas, é uma questão cuja resposta teremos em breve.
Afinal, se, de fato, quem chega carrega em seu coração o genuíno desejo de manter boas políticas, sem viés ideológico, então eu esperaria, por exemplo (é só um exemplo, há muitos outros) que o novo marco do saneamento fosse mantido sem as famosas mudanças malandras em detalhes (o diabo lá habita) que sabotam boas políticas públicas.
Muito cuidado, inclusive, com tentativas de se ‘aperfeiçoar’ análises de políticas públicas de forma que a análise fique tão complexa (‘ah, o mundo é complexo, Cla(á)udio…embora eu só queira um remédio para dor de cabeça e não uma análise holística, senão eu morro antes…’) que seu poder de informar caia para zero. Muito cuidado.
E, então… - Desejo a você e aos seus um Feliz Natal, Hanukkah ou o que quer que você comemore nesta época e que tenha a mesma mensagem de generosidade e compaixão do Natal. Em resumo (e redundantemente): Feliz Natal!
Por hoje é só, pessoal e…até mais ler! (*)
(*) “até mais ler” foi plagiado do Orlando Tosetto, cuja newsletter, aliás, você deveria assinar.
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Talvez você seja novo por estas bandas. Rapidamente: publico duas vezes por semana, geralmente às quartas e sábados. Eventualmente há algumas edições extraordinárias. Assinar (custo = R$ 0.00 + valor do seu tempo para apertar o botão subscribe com seu endereço de e-mail lá…) me ajuda bastante. A temática? De tudo um pouco. Confira os números anteriores aqui.
Feliz Natal, amigo Shikida… o Ludovico está te fazendo falta!
Feliz Natal, Cláudio e obrigado pela coração à minha crônica.