Onde é que você vai? Escrever com clareza. Harry e Sally. Boko Haram. Qual o saldo de sua vida até aqui? Outros.
Você está gorda...gorda como uma viúva machadiana.
Este é o v(2), n(99) desta newsletter. Note que, tirando as edições extras (foram poucas este ano), já devo ter passado de 100 números. Sobrevivo ao longo dos meses graças ao incentivo da turma que me lê. Assinantes? Vão e vêm, mas em uma tendência de lento aumento. Como será 2023? Perguntarei ao polvo que faz previsões sobre a Copa e depois te conto.
Onde é que você vai? - O casaco o incomodava. Na verdade, o tempo instável é que o incomodava. Manhãs frias se alternavam com manhãs quentes. As tardes também eram incertas, embora as noites fossem sempre mais frias naquela época do ano.
Claro que o guarda-chuva era-lhe impensável como acessório. Preferia se molhar a ter que carregar um. Daí o casaco. Só que o casaco pesava com a chuva. Ele havia visto algum anúncio de um casaco impermeável, mas nunca acreditou em lojas virtuais com produtos muito inovadores, desconfiado que era.
Quando já se preparava para lançar o casaco no lixo, a chuva parou. O sol forte retomou seu lugar no céu, renovando suas esperanças de que estaria seco em breve. Saiu de dentro da farmácia carregando sua mala e voltou a caminhar na calçada que, pouco a pouco, retornava à normalidade.
‘- Foram tantos anos, mas tantos…’, pensou enquanto caminhava.
A mala, com suas poucas roupas, era parte de sua mudança para uma pequena casa alugada, exatamente no lado oposto da cidade. O fim do contrato de aluguel obrigou-o a uma realocação. Com esta veio a oportunidade de experimentar algo novo, daí a casa e não um novo apartamento.
Sua vida não havia sido lá muito emocionante e nada indicava uma possível mudança deste padrão. Talvez o novo ambiente, a casa, pudesse lhe dar alguma oportunidade neste sentido. O universo, quem sabe, poderia conspirar em prol de uma vida mais agitada.
Ao vê-lo sair, a síndica do prédio, uma senhora já idosa, perguntou-lhe:
‘- Onde é que você vai?’
Naquele momento, sua resposta foi algo vaga.
Já não se lembrava do que havia lhe dito de manhã. De manhã? É, achava que havia sido de manhã. Continuou caminhando, um pouco mais lentamente. O cansaço lhe tomou a agilidade e as pernas reclamavam-lhe enfaticamente.
Para sua sorte, encontrou um banco em uma simpática praça. Sentou-se e colocou a mala ao seu lado. O sol estava mais quente. Jurava que havia trazido uma garrafa de água, mas sua busca pelos bolsos do casaco não teve êxito. Sentiu uma certa confusão. Onde estava o bloco de anotações com o endereço?
Colocou a mão no bolso do casaco e achou o bloco.
‘- Que é que isto faz no meu bolso?’
Folheou-o, mas não conseguia identificar o que procurava. Levantou-se, nervoso, e saiu caminhando, deixando sua mala para trás. Irritado, não conseguia mais controlar seus pensamentos. Tudo parecia estar macabramente embaralhado. Sentia-se em um labirinto e, ao mesmo tempo, não sabia o que era um labirinto. Como era possível?
Lançou o casaco ao chão, furioso. Começou a ser notado por outras pessoas, curiosas e assustadas. Gritou alguns xingamentos desconexos. Já não sabia mais para onde ia. Não sabia nem de onde vinha, sequer onde estava. Sua mente não funcionava mais como antes.
Estava demente.
Escrever com clareza -…é o nome do curso do Pedro Sette Câmara, em uma plataforma de cursos virtuais. É, eu paguei e não me arrependo. Já falei do tema aqui, mas nunca é demais repetir: transmitir sua idéia (com acento, viu?!) de forma clara é algo que exige um esforço de quem não nasceu com o dom da comunicação.
A análise dos textos, pelo Pedro, é muito inspiradora para quem pretende encontrar o caminho da clareza. Como é? Se eu recomendo? Claro.
Textos que todos deveriam ler - Este, do Alexandre Soares Silva, na última Crusoé, é, aliás, de uma clareza incrível. Pena que só será lido por assinantes, mas eu sei que você conseguirá, de alguma forma, acesso ao ensaio. O nome é: Onde só há silêncio, só há acertos.
Harry and Sally - Daqueles filmes que são da minha época e que nunca havia assistido vem um, muito simpático, com Billy Crystal e Meg Ryan que é este tal de Harry and Sally. É uma comédia romântica, muito relaxante, sobre os encontros e desencontros de…Harry e Sally.
Em algum momento do filme, aleatoriamente, eu me lembrei de Kramer vs. Kramer, com Dustin Hoffman e Meryl Streep que, digamos, é quase que o exato oposto deste. Bem, não exatamente, mas são filmes que trazem duas visões distintas do relacionamento. Ou das fases de um relacionamento. Uma comédia romântica que pode terminar em um divórcio tenso? Não é uma história incomum.
Certamente você conhece melhores referências de filmes sobre casais do que eu (talvez até eu mesmo conheça uns melhores, mas não me ocorre nenhum agora). Não há porque escolher entre um e outro filme: pode-se tirar lições de comédias românticas tão úteis para a vida a dois quanto de dramas sobre casais que se separam.
Queria mesmo era registrar, com algumas décadas de atraso, minha admiração pela comédia despretensiosa. Até seu ritmo é realista, já que pessoas não mudam de cidade tão frequentemente, de modo que os encontros e desencontros de Harry e Sally em NYC, com longos espaços de tempo não são tão diferentes dos nossos (ainda mais no Brasil, em que a burocracia e os custos de mudança não são de se desprezar…).
Boko Haram - Como disse o Guilherme Stein, o pessoal do Boko Haram deve estar contente. Vai que eles se pautam por evidências, né?
Qual o saldo de sua vida até aqui? - Deus apareceu em um sonho para mim, em forma de um toca-discos (fosse Zeus, eu ficaria bem preocupado) e me perguntou sobre o saldo da minha vida até aqui.
Tentei lhe indagar sobre o período. Estaria o Criador falando de 2022? Ou da minha vida toda? Contariam os 9 meses na barriga de minha mãe? Deus fez assim com os ombros (embora ele fosse um toca-discos mas, ei, é um sonho!).
A pergunta de Deus me deixou paralisado. Não conseguia fazer as contas. Não fui um sujeito perfeito. Virtudes? Acho que algumas, mas não saberia quantificar seus efeitos. Tentei argumentar com Deus, malandramente, que não poderia usar esta abordagem ‘neoliberal’, ‘eficientista’, ‘cabeça de planilha’. Contudo, Deus me olhou e negou-me o recurso a subterfúgios imbecis.
Deus sabe que, no final, terei que apresentar-lhe um saldo. O problema é que nunca me foi mostrado o manual, o guia para preenchimento. Nem uma oficina fizeram. Se bem que estes guias, manuais e oficinas são 99% confusos e 1% propositalmente vagos (ou seria o contrário? Ou não seriam a mesma coisa?).
Deus começou a tocar uma melodia familiar. Acho que era a abertura de Dresden de Tannhäuser. Deus sabe que a abertura de Dresden, ao contrário da chatíssima abertura de Paris, na qual Wagner foi obrigado a colocar um balé (porque franceses eram fregueses e tinham esta mania por balé), tem um final. É como ele espera que a vida de cada um termine. Com um grandioso final.
Depois, claro, as cortinas descem, e Deus (ou o toca-discos que era Deus em meu sonho) vem com as cobranças, papéis e formulários. E terei que fazer isso de primeira. No sonho, Deus disse que eu poderia pegar uns formulários para treino. Ficavam em um balcão, como naqueles da imigração, em aeroportos.
Peguei alguns. Tinham perguntas como aquelas da imigração do governo dos EUA: já participou de um ato terrorista? Costuma sair para jantar com pan-totalitários comunistas e fascistas (ou com um deles)? Coloca azeitona em empada? Torceu para a Argentina na Copa? Etc.
Na coluna ao lado, escrevia-se um ‘S’ ou um ‘N’ e, claro, tive o cuidado de perguntar a Deus - que à esta altura, tocava um trecho triste de Tristan und Isolde - sobre a língua do formulário. Para meu alívio, era tudo em português mesmo (até porque, eu li as perguntas, né? Mas sabe como é…sonhos…).
Depois de preencher, havia uma tabela com uns fatores numéricos confusos. Pareciam ter sido criados pela Receita para que você não os entendesse, evitando o eventual ressarcimento de algum valor. Como na Terra, ao que parece, a Receita Divina só quer arrecadar.
Quando ia fazer a soma, notei que havia uma fórmula complicada. Antes que eu pudesse desvendá-la, acordei, suando. Olhei para o toca-discos que estava ao lado da minha cama, empilhado com outros objetos da mudança. Ele não parecia tão onipotente ou onipresente. Sequer imponente era.
O sonho, contudo, fez-me pensar sobre qual seria o saldo da minha vida até aqui. Até agora penso no tema, inconclusivamente. Espero não morrer de repente, nem cair na malha fina divina por pura incompetência…
Por hoje é só, pessoal e…até mais ler! (*)
(*) “até mais ler” foi plagiado do Orlando Tosetto, cuja newsletter, aliás, você deveria assinar.
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