O v(4), n(52) ainda está cheio de espírito natalino…
O velho e a escada - Era final de ano e eu saía da loja com alguns presentes para tornar o Natal de algumas crianças do abrigo mais feliz. Caminhei até o carro, abri o porta-malas e organizei as sacolas ao lado de minha mochila velha e das ferramentas que, por precaução, carregava, mesmo que nunca tenha aprendido a usá-las.
Certificando-me de que nenhuma sacola corria o risco de virar em curvas ou aclives e declives, fechei o porta-malas e me preparei para partir. Enquanto arrumava o espelho do carro, notei algo inusitado: bem atrás do carro, na imensa parede branca de um prédio, encontravam-se um velho e uma escada, destas de duas pernas, feita de material prateado.
O velho estava no chão e a escada, fechada, encostada na parede. Passar por ele era meu caminho e resolvi ver se precisava de algo. Quando parei o carro, perguntei se estava bem, mas ele não pareceu me ouvir. Falei mais alto. Nada. Já ia gritar quando notei que a janela estava fechada.
“- Bom dia. O senhor precisa de algo?
- Oi?
- Bom dia. O senhor…
- Ó, não, não. Obrigado, meu jovem.
- O que faz aqui? A escada é sua?
- É sim, meu senhor.
- Precisa de carona? Quer que lhe compre algo para beber?
- Bondade sua, meu filho, mas não preciso. Obrigado.”
Ainda morto de curiosidade, mas sem graça, resolvi me despedir dele e ir para o abrigo. O velho se despediu e continuou sentado. Pude notar que ele olhava para o céu e para o chão, alternadamente e ele e sua escada foram desaparecendo com o aumento da velocidade de meu velho automóvel.
Depois de me emocionar com a entrega de presentes no abrigo, resolvi passar pelo mesmo local e, quem sabe, pagar um café para o velho. Para espanto de ninguém (eu sabia que você ia adivinhar esta, leitor!), lá estava o velho com sua escada. Notei que estava com óculos de aro dourado e lentes arredondadas.
“- Olha o senhor de novo, com sua escada…
- Ora, meu jovem, você novamente?
- Sim senhor. Voltei porque achei que poderia precisar de algo.
- O jovem apenas deu uma volta?
- Não, não. Vou lhe dizer: é que todo ano eu e o pessoal da firma ajudamos um abrigo de crianças. Assim, levei os brinquedos para lá.
- E elas ficaram felizes, não é?
- O senhor nem imagina!
- Que coisa boa, meu jovem.
- O senhor estava de óculos ou minha memória me falha novamente?
- Ah, isto? Estavam em meu bolso, mas com o sol da tarde, minha visão piora um pouco, sabe? Não sei bem o que é…
- O senhor quer que lhe compre um café? Por favor, aceite. É perto mesmo…
- Bem, se o jovem insiste…”.
Deixei-o ali com sua escada e fui até a pequena padaria a menos de 20 metros e comprei dois cafés e um pão com presunto e queijo. Quando voltei, lá estava ele, sorridente.
“- Trouxe-lhe um café e um sanduíche.
- Ah, puxa vida, como o senhor tem um coração bom…
- Senhor é o senhor. Sou um jovem…
- …de bom coração, logo se vê.”
Tomamos o café e uns segundos de silêncio fizeram-se presentes. Pelo menos em termos de conversas porque eu podia ouvi-lo mastigar o sanduíche com vontade.
“- Estava com fome, senhor?
- Oh, um pouco. Confesso que sim, um pouquinho. Fazia algum tempo que não comia…
- O senhor trabalha por aqui?
- Não exatamente…
- É o senhor um lavador de janelas?
- Não, meu filho…
- Não me diga que é assaltante…
- Claro que não. Ora, veja bem…por que acha que eu seria um bandido?
- É que a escada…
- Ah, isso? Ora, meu filho, isto é para me ajudar no trabalho. Sabe, estou velho…
- Posso perguntar…
- Sim, pode. Antes que pergunte, ouça o barulho que se aproxima.
- Sim, sim, estranho…é familiar, mas não sei o que é…
- Vê ali, perto do telhado daquele pequeno prédio? Vem dali.
- Sim, mas não vejo nada…
- …ainda…
- O senhor está me assustando.
- Não mais, meu jovem. Veja.”
Apontou para o céu e vi algo inacreditável: um trenó com renas.
“- Eu só posso estar sonhando…o que colocaram no meu café??
- Nada, meu filho. Só café e açúcar, creio.
- O senhor está vestido de…
- É, é o meu trabalho. Ainda lembro de você criança, meu jovem. Sabia que seria um homem bom.
- O senhor…não…não é possível…
- Aqueles cavalinhos de plástico, os índios…depois um autorama…
- O senhor se lembra…espera, não pode ser….”.
O trenó se aproximou e o velho pediu que eu o ajudasse a subir no trenó usando a escada.
“- Meu jovem, tenho que ir.
- Mal posso acreditar! É mesmo o…
- Sim, sim. Só que agora vou lhe pedir algo.
- O que o senhor quiser.
- Guarde a escada com você.
- Eu, bem, claro. O senhor não vai precisar dela?
- Não mais neste ano e, sabe de uma coisa? Você vai precisar dela.
- Eu?
- Sim, você, meu jovem. Porque você assumirá meu lugar ano que vem.
- Mas eu não posso, o pessoal da empresa…
- Meu jovem, não sei se notou, mas você não tem mais que se preocupar com isso.”
Assustado, notei que eu não mais tinha substância, corpo, nem sei como descrever. Ao meu lado vi meu corpo inerte ao lado do café derramado. Meu rosto esboçava um sorriso.
“- Oh, mas e agora…
- Não se preocupe. Guarde a escada, meu filho. A idade chegará e você precisará mais e mais dela. Até o dia em que encontrará seu substituto.
- Os amigos da firma, os vovôs do asilo, os meninos do abrigo…
- Sim, são sua única família, eu sei. Eles sentirão sua falta e você sentirá saudades deles. Sei disto. Logo passará, acredite em mim.
- E eu tenho escolha?
- Na verdade, tem. Você pode simplesmente ir embora para o céu ou poderá ajudar sua ‘família’ e mais tantos outros, dando-lhes um pouco de conforto no dia de Natal. O que acha?
- Papai Noel…
- Meu jovem…não chore. Tome, guarda a escada e se prepare. Preciso que me dê meu passaporte para a aposentadoria…
- O senhor, bem, o senhor conte comigo!”
O velho, digo, Papai Noel me abraçou demoradamente, subiu no trenó e partiu. Eu não sabia, mas aquele seria o primeiro de meus melhores dias de Natal em minha (nova) vida.
Até mais ler!(*)
(*) “até mais ler” foi plagiado do Orlando Tosetto, cuja newsletter, aliás, você deveria assinar.
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