O v(3), n(55) chegou todo insinuante, tão cheio de graça. Beijou todo mundo e foi direto para a mesa de doces.
O terror cultural - Entrou no quarto e se deparou com todos aqueles livros que lhe lançaram um olhar acusatório. Não suportavam mais seu descaso. Pela primeira vez em toda sua vida, sentiu a energia negativa emanada dos companheiros de tantas aventuras.
“- Primogênito cabido, clava deífica, campeão,
De quem tremenda é a força, sem igual seu ataque…
- Heim?
- Repousa seu ânimo, seu coração se abrande!
- Peraí, você não é o ‘Enuma elis’, aquele livro babilônico?
- Ó de casa, nobre gente, escutai e ouvireis que das bandas do Oriente são chegados os três Reis.
- Ei, sua voz é diferente…mas que diabos está acontecendo?
- Trazer uma anamita para a cama com a gente é como apanhar um pássaro: eles pipilam e cantam em nosso travesseiro.
- Tá, mas e eu com isso? Não, não pode ser…você também me é familiar…”
O ataque dos livros de literatura deixou-o atordoado. Olhou novamente para o quarto e lá estavam os livros, empilhados, nos mesmos lugares. E, no entanto, as vozes em sua mente o deixavam atordoado.
Temendo por uma segunda leva de ataques, desta vez por conta dos livros de não-ficção, correu para a cozinha. Tentou fechar a porta, mas desde quando uma porta seria capaz de impedir vozes em sua cabeça? Talvez, claro, mas só talvez…se elas estivessem sendo transmitidas para algum receptor instalado por alienígenas em seu cérebro.
Claro! Só podia ser isso!
“- Ele que o abismo viu…
- Até você?
- Prefiro não fazê-lo.
- Por que isto tá acontecendo??”
Sem nunca tê-la conhecido, agora sentia a sensação de uma loucura que se aproxima. Lentamente. Sorrateiramente. Talvez até com dois copos de chopp nas mãos, supondo que a loucura tivesse mãos. Só este pensamento já o enlouquecia, enquanto ouvia vozes, desta feita, shakesperianas.
Procurou se acalmar. Abriu a geladeira e encontrou um pouco de requeijão próximo ao prazo de validade. Com uma colher, raspou o copo e pulou a etapa usual de encontrar um pão. Lambuzado o rosto, abriu a torneira da pia para se lavar e deu um grito ao ver sangue jorrando dali.
Virou-se para a porta da área de serviço e viu duas pequenas gêmeas. As vozes da literatura continuavam atormentando-o. Só que agora também via cenas de filmes. Viu um macaco açoitar Charlton Heston na porta do banheiro e Keanu Reeves se desviando de uma chuva de tampinhas de garrafas de cervejas (artesanais!) que pareciam voar em sua direção muito mais lentamente do que o normal. As vozes, claro, continuavam.
Confuso e desesperado, desviou-se do exterminador do futuro que cozinhava um ovo, enfiou a mão na gaveta e de lá pegou uma faca. Acertou sua jugular de primeira e, só então, descansou definitivamente do terror cultural.
Moti - O ventilador girava rapidamente para a direita e para a esquerda, aliviando um pouco o calor daquele domingo. Ao seu lado, alguns livros empilhados na mesa eram uma gritante lembrança de que ele tinha muito o que fazer.
Ainda assim, sentia um peso adicional, cíclico, em sua cabeça. A sensação era tão forte que ele realmente se curvava. Era como se houvesse algo a mais em seu cérebro. Tumor? Descartado. Seus exames estavam em dia. Dor na consciência? Não havia pecado mais do que a média de seus últimos 50 anos. A despeito do mistério, o peso parecia aumentar a cada dez minutos.
Curiosamente, não sentia dores de cabeça. Era só mesmo um peso crescente que tornava mais cansativo o trabalho de sustentação feito por seu pescoço que, se fosse gente, pediria as contas. Ou aumento no salário. Ou reclamaria em voz alta, talvez com gestos indecorosos.
Por volta da meia-noite, com a cabeça pesadíssima, deitou-se. Foi quando ouviu uma voz vinda de dentro de seu cérebro.
-Miau!
Assustado, tentou se levantar, mas sem sucesso.
-Miau! Miau!
Não havia mais dúvidas: um gato nascera em seu cérebro. Mais surpreendente do que você possa imaginar, ele parecia entender os miados. Era tudo tão estranho que decidiu por tentar dormir.
Na manhã seguinte, acordou sentindo uma felicidade indescritível. Espontaneamente, levantou-se. O peso não estava mais lá. Nem o miado. Teria sido tudo um sonho? Espreguiçou-se e abriu os olhos. Para seu espanto, ao seu lado, na cama, havia um pequeno gato alaranjado.
Poucos acreditam, mas foi assim mesmo que ‘Moti’ (pronúncia: motí, mas eu sigo um outro acordo ortográfico que está mais para durmo ortográfico…), o nome do gato (que já nasceu com nome, vejam só) entrou em sua vida. De forma inusitada, ele havia gestado Moti em seu cérebro e, assim, o simpático felino entendia bem de suas angústias, sonhos, fetiches e pesadelos.
A comunicação entre eles, aquela, perfeita, dos tempos de gestação, de algum modo, manteve-se. Moti foi um companheiro e tanto. Alegrou um bocado a vida de seu solitário dono por quase vinte anos. Já velhos, nas manhãs, sentavam-se (Moti na mesa e ele à mesa) para conversarem enquanto o dono digitava um diário que pretendia deixar como um registro de seus anos de vida para uma amiga (tinha poucos amigos e amigas e, velho, muitos já haviam partido).
Pressentia a chegada da morte e, nos últimos tempos, acelerou seu diário e programou o envio da mensagem para sua amiga. Moti acompanhou-o até o último suspiro. Quando desabou sobre a mesa, sentindo, pela segunda vez, um peso forte em sua cabeça, foi Moti quem miou por socorro. Os bombeiros encontraram-no deitado sobre o dono, com o queixo sobre sua nuca, com uma expressão melancólica.
Moti viveu mais uns poucos anos com a amiga de seu dono. Partiu em uma noite de primavera para se juntar ao seu dono. Onde quer que estivesse: céu, inferno ou qualquer outro lugar, Moti estaria com ele. Não precisou ser sacrificado, nem sofreu. Apenas fechou os olhos e se foi. Dizem que ambos andam juntos por aí, fantasmagoricamente. Vai saber. Afinal, se Moti nasceu do cérebro de um homem, por que é que não poderiam seus fantasmas caminharem por aí?
Eventos e Desafios - Já enviou seu trabalho para o Fórum Mackenzie de Liberdade Econômica? Não? Ah, mas pelo menos você se arriscou no Challenge Papers do Instituto Millenium, né? Não vai ficar com ‘medinho’, né?
Scheinkman - Um economista famoso (para quem passou pela graduação no final dos anos 80, ele era uma estrela em franca ascensão) que merece o Nobel? Eu diria que é um forte candidato, mas, por enquanto, estão apenas homenageando-o em uma série de quatro artigos (três já foram publicados). São eles: este, este e este.
Ainda que não tenham publicado o quarto artigo, o leitor familiarizado com a Ciência Econômica irá se deliciar com os ótimos textos de Carrasco e Lisboa.
Por hoje é só, pessoal e…até mais ler! (*)
(*) “até mais ler” foi plagiado do Orlando Tosetto, cuja newsletter, aliás, você deveria assinar.
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