O Shamisen Inquieto - Espionagem Internacional - Zé Ivaldo, o servidor - Charter Cities.
Eichmann disse que só cumpria ordens. Alguns servidores públicos dizem o mesmo. Fosse Hannah Arendt chefe de repartição, dizem, ela estaria...
O v(4), n(10) desta missiva precisa ser comemorado. É o décimo deste ano! Espero que goste deste número!
O Shamisen Inquieto - Em sua tentativa de tocar de modo espetacular, o shamisen resolveu que sua afinação não mais cabia ao usuário. Por mais que se o afinasse torcendo o itomaki (a cravelha do shamisen), o teimoso shamisen sempre dava um jeito de se desvencilhar e tocar no tom que achava belo, puro, magnânimo.
Nos treinos, ele até fingia se comportar conforme seu suposto mestre determinava, gerando aquela impressão de que seria um shamisen obediente, cumpridor das ordens que lhe transmitiam pelo maior ou menor aperto em suas três preciosas cordas. Ah, quão tolos somos nós, humanos, não?
Foram semanas de treino em que o shamisen inquieto, lutando contra sua vontade, manteve-se assim, fingindo ser apenas um objeto cujo desejo seria moldado pelo talento do seu tocador. Uma vez ou outra, claro, ele se deixava levar pelo seu desejo e desafinava, mas sem levantar maiores suspeitas.
Até que o grande dia chegou. Iria se apresentar no Festival, junto aos seus cinco obedientes colegas que, aliás, ralhavam com ele sempre que sua opinião rebelde era manifestada (com aquele tom arrogante…). Alguns o chamavam de shamisen irascível. Talvez ele fosse herdeiro do cabeça dura Botchan, aquele personagem do clássico homônimo do grande Natsume Souseki (se você nunca leu, leia! É um belo livro!).
(a propósito, os sinônimos de irascível são divertidos. Alguns: abespinhadiço, agastadiço, anojadiço, árdego, arrufadiço, arupanado, azougado, cavaquista, irável, pururuca (!) etc.)
Naquele dia, naquela tarde, creio que naquelas duas horas e trinta minutos da tarde daquele sábado quente, seu mestre era o - vamos lhe dar um nome fictício - Matheus. Mestre do shamisen, obcecado em arrancar do mesmo as notas corretas nos tempos corretos, Matheus havia deixado tudo pronto para o mini-concerto que iria se iniciar naquele palco, diante de uma turma curiosa e atenta, a maioria nunca tendo ouvido o maravilhoso som do shamisen (sabe como é, funk martelando o martelão é quem manda…).
Veio a primeira música e tudo parecia correr bem, quando Matheus notou uma ligeira desafinação. “- Itomaki nelas”, pensou, tensionando as cordas. Voltou a se concentrar na música e o shamisen inquieto respondeu com nova desafinação, prontamente corrigida pelo - agora irritado - Matheus. A épica batalha entre servo e senhor durou uns três minutos.
Em meio aos aplausos, buscou afinar melhor seu teimoso instrumento. Pareceu-lhe que agora tudo estava bem. Mal sabia que seu companheiro não iria desistir tão facilmente de ser o melhor e mais original shamisen de todos os tempos, de todo o mundo. Mundo não. Universo!
O restante do concerto que não duraria mais de trinta e poucos minutos foram uma sucessão de outras batalhas entre ambos. Os outros shamisens, obedientes, fiéis à ordem natural da relação entre tocador e instrumento, fingiram não notar o sanguinário duelo que se travava sobre aquela cadeira de plástico. Foi difícil, mas Matheus conseguiu se impor ao shamisen. Só que terminou bem mais suado do que o restante da trupe.
Aplausos efusivos vieram da plateia. A dúvida que ficou foi: teriam gostado da combinação dos shamisens e tocadores a despeito da teimosia do shamisen inquieto, ou suas pequenas escapadas é que, combinadas ao restante, teriam sido a causa do sucesso? Para o shamisen, a resposta era clara. Para Matheus, também.
Antes de ser guardado o shamisen ensaiou soltar uma das cordas, mas estava cansado demais para esta luta. “Esta”, não para as próximas. “Maldito, Matheus! Ele pagará por isso! Deixa estar”, pensou.
FIM(?)
Espionagem Internacional - Filme de 1966 - nome original: Triple Cross - que nunca havia assistido e do qual registro aqui meu encantamento com a beleza da, então jovem, Romy Schneider. Não gostou? Azar o seu.
Falando sério, o filme é divertido. Tá, tem umas coisas estranhas no roteiro como a relação do personagem principal, o inglês Eddie Chapman (vivido por Christopher Plummer), com a jovem da Resistência Francesa cujo início me pareceu rápido demais. No mais, o personagem parece um carioca malandrão, só que britânico. Divertido.
O filme tem também Yul Brynner, Trevor Howard e Gert Fröbe (que faria o malvado Goldfinger, em famoso filme da franquia 007). Direção de Terence Young que, na bagagem, teve três filmes da franquia 007 (mas não o Goldfinger, citado anteriormente).
Recomendo.
Zé Ivaldo, o servidor - Dia de reunião e Zé Ivaldo não havia conferido a agenda que, como sempre, saltava (quase literalmente) aos seus olhos quando abria o programa de mensagens de e-mail. Mais um dia em sua vida, mais um dia de reclamações. Sorte que a secretária Zilda o avisou. Ela sempre o avisava, cuidando dele como a um bebê, um incapaz, um…bem, um Zé Ivaldo.
A reunião tinha como objetivo estimular os servidores daquela pequena secretaria municipal (criada pelo prefeito Totó e destinada a cuidar do artesanato da cidade que não tinha mais que 20 mil habitantes) a externarem suas ideias (aqui sem acento mesmo porque Zé Ivaldo reclamou dias com este autor acerca do “Novo Acordo Bobográfico”. Chupa, Zé!).
A mesa de madeira velha da sala de reuniões tinha em seu entorno umas seis cadeiras, destas modernas, de escritório, criando um ambiente de extremo mau gosto estético, embora funcional, já que os cupins haviam destruído as cadeiras originais há alguns anos. Somente a mesa, por algum motivo desconhecido, sobreviveu, sem que um único cupim tenha buscado se alimentar dela.
A equipe chegou aos poucos e foram ocupando seus lugares. Zé Ivaldo tentou se isolar do resto, mas a mesa, não mencionei antes, tinha formato circular, o que o impedia de se fazer de fantasma (exceto se ficasse embaixo da mesa e, juro, Zé Ivaldo pensou nisto por alguns segundos).
Com Zé, três outros colegas da repartição fecharam o semicírculo que esperava pelo supervisor e o gerente da regional. Como o ar-condicionado não funcionava há algum tempo, as janelas foram abertas, o que permitiu a incômoda presença de alguns mosquitos que Zé torcia que fosse transmissor da dengue para que pudesse tirar uns dias de folga.
A copeira trouxe alguns copos e uma garrafa de água sobre uma bandeja prateada e, antes que todos se servissem, José e Daniel, os superiores, chegaram sorridentes e com pastas de papel nas mãos.
“- Bom dia a todos!”, disse José.
”- Bom dia, senhor José; senhor Daniel!”, responderam quase todos porque Zé Ivaldo estava mal-humorado.
“- Pois bem, pessoal, sobre o plano de acompanhamento das novas metas, a gente conversou com o subprefeito e ele acha que seria legal ouvi-los primeiro. Achamos que isso ajuda a direção a entender melhor o que a equipe pensa.”, disse Daniel.
Neste momento, Zé Ivaldo levantou o braço. Daniel fez que sim com a cabeça, já um pouco desanimado.
“- Olha, eu acho que é complicado. Nós, que fazemos pesquisa, não somos gestores. Então não entendo a língua dos gestores e, não, não me peça para fazer um esforço porque todo e qualquer esforço é uma armadilha da gestão, não estou falando dos senhores não, mas sabem como é, há muita gente má aqui…”
“- Ô Zé, dá um tempo!” - interrompeu a Rose do RH da repartição.
”- Como assim, Rose? Como assim eu vou dizer as metas para o gestor? Isto é trabalho dele. Para que ele recebe? Eu só faço pesquisa…” - continuou Zé.
”- Peraí, Zé. Quando você fechou o convênio com a Fundação Dom Diego de Artesanato Federal, você não ficou triste em se exibir para eles como pesquisador-chefe da casa. Até fez uma extensa nota técnica…” - disse Sílvia, da coordenação de patrimônio que o conhecia há anos.
”- Olha, Sílvia, vou discordar. Aquilo foi só um evento específico. Eu insisto que as metas devem vir de cima.” - o tom de Zé era um pouco mais forte, mas não tanto que pudesse lhe render problemas com o Procurador Tavares que, aliás, não estava presente.
”- Mas Zé, nós sempre pedimos para que nossa voz fosse importante nas definições dos planos de trabalho! Você sabe disto!” - reagiu João, o secretário mais antigo da repartição.
”- Não, nem vem. Não vou fazer mais nada. Eu ganho função gratificada para pesquisar, não para decidir metas com os outros…”
”- Mas quer ter vida de servidor subalterno. Aí é fácil, né, Zé? Tem o título de barão mas quer vida de pescador…” - interrompeu, sarcasticamente Sílvia.
Zé sentiu o choque de realidade em seu rosto que, aliás, enrubesceu. Os demais - menos Sílvia - tentaram uma estratégica mudança de assunto, tentando quebrar que, agora, era tenso (e o calor não ajudava…). José olhou para Daniel e disse:
“- Pessoal, também posso sugerir metas sem ouvi-los, já que o Zé - eu sei que não fez por mal - insinuou que isto é minha obrigação…”.
Todos os demais, inclusive Daniel, frustrados, olhavam para Zé Ivaldo com um misto de pedido de compaixão com um ódio genghiskhânico. Rose e José quase derrubaram a garrafa de água, num encontro de braços ocasional que resultaria em um tórrido romance de duas semanas, mas isto não é assunto para hoje.
“- Bom, pessoal, sendo assim, a direção acha que cada um de vocês poderia ajudar no processo de compras de computadores. Mês passado, os técnicos da regional compraram sem consultá-los e compraram tudo errado. Se vocês puderem enviar a especificação…” - disse Daniel surpreendentemente calmo.
“- Eu gosto da ideia…” - começou a responder João, vislumbrando alguma esperança naquela reunião.
Entretanto, Zé Ivaldo levantou novamente o braço.
“- Sim, Zé?” - disse José.
”- Esta coisa da gente saber mais da especificação aí eu concordo, mas porque eu tenho que informar?”
”- Ahn…porque você, melhor do que nós, sabe de suas necessidades, Zé?” - respondeu José, genuinamente curioso sobre como aquilo era possível.
”- Olha, não quero ser chato, mas vocês estão impondo isso. Eu acho que não estamos tendo voz aqui. Por que não nos consultam antes?” - disse Zé Ivaldo.
A garrafa estava quase vazia. Sílvia levantou-se, olhou para Zé Ivaldo, pegou-a e foi até a copa repor a água.
Charter Cities - Divirta-se, mas, legendas, só em inglês mesmo.
Por hoje é só, pessoal e…até mais ler! (*)
(*) “até mais ler” foi plagiado do Orlando Tosetto, cuja newsletter, aliás, você deveria assinar.
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