Eis uma edição extraordinária. Quem diria, não?
O relógio de bolso - O relógio de bolso é um artigo mais e mais raro. Já vi uns modelos novos. Há um tempo comprei um, provavelmente chinês, numa destas coleções que se encontrava em bancas de jornais, ou seja, nem todos são caros. Mas poucos têm alma. Esta é a história de um deles.
O relógio de bolso, a ressurreição e a morte
O relógio estava conservado, mas, com o tempo, ficou relegado à gaveta e a bateria se esgotou do esforço de fazê-lo funcionar. Foram anos de trabalho sistemático, em que o relógio correspondeu, ao seu orgulhoso dono o afeto sincero que este lhe dedicava. Talvez se possa dizer que os componentes do relógio estavam em férias coletivas por tempo indeterminado.
Sua corrente havia perdido um pouco do brilho. Caso o relógio pudesse dizer algo, talvez ele pedisse por um tratamento para a corrente. Não seria um pedido raivoso ou com rancor. Seria apenas um lembrete para que se lhe desse novo brilho, algo fácil de se resolver com alguma receita caseira.
Passou-se muito tempo até que o dono, sempre tão cheio de afazeres (que, aparentemente, não tinham valor para ninguém mais, exceto para si), decidisse, finalmente, resolver o problema da bateria do relógio que estava guardado, em sua caixinha de plástico verde-oliva, na gaveta de um móvel.
Abrindo-a, pôde olhar novamente para aquele antigo amigo que há tanto tempo estava adormecido. Apreciou com ternura seus detalhes prateados. Com ou sem chuva, traria de volta os movimentos dos ponteiros. Olhou para o relógio e, mentalmente, pediu-lhe perdão por todo aquele período distante.
Não saberia dizer se o relógio o perdoara. Talvez fosse necessária uma prova. Assim, apressou-se, trocou de roupa, colocou a caixa na maleta, muniu-se de um guarda-chuva e partiu em busca da relojoaria que estaria no mesmo local, apostou, do qual se lembrava.
Na relojoaria, o envelhecido senhor levou o relógio para algum canto oculto à vista dos clientes. Certamente um pequeno canto escuro, com luminária, lentes de aumento e peças tão pequenas e de manuseio, tão delicado quanto complexo, espalhadas em compartimentos de uma enorme caixa de madeira. Pelo menos, era o que imaginava, tomando de empréstimo uma vívida memória que tinha de pequena relojoaria que frequentara, há alguns anos, em outra cidade.
Não teve tempo de sentir-se ansioso. O relógio de bolso foi-lhe retornado em menos de cinco minutos. Era apenas a troca de bateria (e que lhe custou quinze reais). Viu que o relojoeiro já havia acertado os ponteiros: 9:05! Realmente! Menos de cinco minutos levou a ressurreição de seu relógio! Que alegria!
Ainda admirado, e com aquela felicidade infantil de quem tem um brinquedo consertado, saiu caminhando, desta vez, decidido a comprar um presente de Natal para alguém que não faria muito caso do que quer que comprasse (mesmo que investisse muito tempo em sua busca). Quis o sábio destino que seu excesso de preocupação em encontrar algo que agradasse não o levasse a lugar algum.
Tinha ele este hábito de cuidado na compra de presentes. Buscava, sempre que possível, presentes que combinassem com as pessoas. Gostava de ver um sorriso sincero no rosto do presenteado. Isso, por óbvio, demandava-lhe muito tempo. Nem sempre este investimento era reconhecido, mas como o relógio de bolso nos lembra, exige tempo.
A chuva vinha irregular e a caminhada do dono do relógio alternava momentos de guarda-chuva aberto e fechado. Ao redor, algumas lojas iniciavam suas atividades e outras, pelos cartazes de aluga-se, tinham sucumbido à pandemia que atingira o mundo. Sentiu pena dos que não resistiram. Comprou algo mais para si mesmo, confortando-se com o pensamento de que estaria ajudando alguns comerciantes.
O tempo, o mesmo que seu relógio voltara a informar com a mesma diligência de antes, não tinha culpa pelas falências. O tempo não é bom ou tuim. Ele apenas segue em frente, observando as vidas dos humanos, estes inventores de tantas maravilhas, inclusive, de relógios e, dentre eles, os companheiríssimos relógios de bolso.
A escoliose, por falar em tempo, reclamava um para si. Enquanto se preparava para encerrar o passeio, pensou em como era bom ter, em sua maleta, seu amigo pulsando novamente, como um ser vivo. Parecia-lhe até que o relógio estava feliz, por mais estranha que a ideia possa parecer. Voltaria a caminhar com ele? Com certeza.
O tempo do relógio é o mesmo tempo dos homens, sabemos. Mas quanto tempo mais teria para si? Nunca soube. Parte dele morreria alguns anos depois. A outra ainda vive e dizem que caminha por aí nas manhãs de sábado, no céu. Nunca mais sofreu e, dizem, carrega consigo o mesmo relógio, no bolso da calça e com a corrente, mais brilhante do que nunca, atada à calça. Sua bateria, agora, dura uma eternidade.
FIM(?) Tic-tac-tic-tac…)
O último número da newsletter - Foi sobre o curioso caso de Geraldina Maupassaint. Não viu? Olha ele aqui.
Vida Concreta - Lucas Mafaldo ‘cometeu’ uma reflexão algo melancólica.
… a cultura contemporânea deixa pouco espaço para a verdadeira amizade, para a lealdade, para o senso de pertencimento.
Não sei se é algo da ‘contemporaneidade’, mas não quero parecer mais pessimista do que ele (ainda).
Guerra Fria e os relógios soviéticos - Já que a foto é de um Silgar (Portugal), vi que há uma história sobre uma suposta tentativa soviética de falir a indústria americana de relógios. Ver aqui e aqui. Um catálogo de relógios soviéticos aqui.
Talvez você seja novo por estas bandas. Rapidamente: publico duas vezes por semana, geralmente às quartas e sábados. Eventualmente há algumas edições extraordinárias. Assinar (custo = R$ 0.00) me ajuda bastante. A temática? De tudo um pouco. Confira os números anteriores aqui.