Eis o v(2), n(102) da newsletter que está subindo o Monte Fuji solitariamente.
O mundo flutuante de Liberty Jones - Liberty Jones era o pseudônimo de Gérson de Almeida Barros. É que Gérson era fã de faroestes, ao contrário deste autor (que, vez por outra, até gosta de um ou outro) e, sendo assim, criou esta mistura do vilão Liberty Valance com Indiana Jones para si.
Vivia sozinho em um pequeno apartamento no bairro da Floresta, próximo ao centro de Belo Horizonte. Perdera os pais quando adulto e o único irmão havia morrido em um acidente de carro há alguns anos. Tendo sido um fracasso na arte dos relacionamentos, também não tinha esposa, nem namorada.
Gérs…digo, Liberty, vestia-se sempre com uma calça jeans surrada, botas cuidadosamente sujas, uma camisa velha, um colete (como Liberty Valance), uma blusa de couro e um chapéu também cuidadosamente sujo. A bem da verdade, o visual era todo feito para que ele parecesse ter acabado de voltar do deserto de Atakama. Ou de Góbi. Ou das praias do nordeste, mas sem o visual de turista.
Saía em direção ao trabalho trajado desta forma. Era servidor público e, portanto, não se sentia ameaçado por sua vestimenta notoriamente suja. Na repartição, a turma se ajeitou de forma a alocá-lo em uma sala isolada, com um trabalho absolutamente burocrático que pouco necessitava de contato humano.
Assim, Liberty Jones vivia suas aventuras, uma de cada vez, temperando sua vida solitária com um pouco de emoção. Ou pelo menos é o que ele imaginava.
Não, Liberty Jones não lutava contra moinhos de vento. Nem com os de água. E nem com aquelas hélices de usinas eólicas, embora, sim, esta última é uma ideia que lhe passou pela cabeça ao assistir a um documentário sobre fontes alternativas de energia em uma plataforma qualquer de streaming.
O leitor não sabe que tipo de aventura Liberty Jones vivenciava? Ora, pois eu posso lhe contar algumas.
Certa vez, Liberty escapou de uma tentativa de assassinato de seu arqui-inimigo, Devil Stoven. Sim, este era seu fogão. Aconteceu assim: Liberty chegou em casa exausto de tanto carimbar papéis (eu não contei, mas nem um computador lhe deram…) e resolveu que iria poupar tempo comendo um empanado de frango que estava em sua geladeira.
Seguindo as instruções, tirou-o da embalagem, colocou dentro do forno, na pequena vasilha de teflon. Abriu o gás e achou que havia acendido a chama. Devil Stoven, contudo, era tinhoso e temperamental e, portanto, só havia ali dentro do forno o empanado…e gás!
Liberty foi à pia lavar o rosto suado do calor da caminhada. Enxugou-o com a toalha e, como todo herói, jogou-a no sofá ao invés de pendurá-la de volta. Foi até a geladeira e abriu uma lata de cerveja, destas bem baratas e ruins. Quando se voltou para o forno, notou algo estranho. Percebendo que não havia fogo, como que por instinto, apertou o botão de chama.
Para sua sorte, ele não estava na frente do forno porque a tampa deste se abriu fortemente e a janela da cozinha, ainda fechada, explodiu. Os estilhaços atingiram sua perna, mas, para sua sorte, não houve um incêndio. Atordoado, Liberty jurou ter ouvido a gargalhada maligna de Devil Stoven.
Fechando o gás, Liberty tirou do bolso um charuto, riscou um fósforo na pedra da bancada da cozinha e murmurou alguma ofensa para Devil Stoven (Devil Stoven voltaria a tentar assassiná-lo em outras ocasiões e, quem sabe, um dia, eu lhe fale sobre estas outras aventuras).
A vida de Liberty não era fácil mesmo.
Houve também a ocasião em que enfrentou o dissimulado Kitchen Mug. Foi assim: após uma noite de bebedeira e uma noite mal dormida (sem mulheres em sua cama, foi só insônia mesmo), Liberty acordou exatamente com o mesmo surrado ‘uniforme’ e, ao se levantar, notou que teria que lavar a roupa de cama novamente…na semana seguinte.
Foi ao banheiro e espremeu o que pôde do tubo de pasta de dente sobre sua escova já gasta e fez alguma higiene bucal. Notou, pela dor ao fundo da boca, que teria que ir ao Mr. Teeth em breve, o que o preocupava. Afinal, Mr. Teeth sempre dava um jeito de deixá-lo desacordado, o que abria as portas para seus piores inimigos.
Bem, tudo isto não era, no momento, uma preocupação para Liberty que, cuspindo a mistura de água com pasta dental na pia, tirou um charuto do bolso, riscou um fósforo na porta do banheiro e começou a fumar.
Atento a tudo, Liberty entrou sorrateiramente na cozinha (embora o charuto não fosse lá um bom ajudante em seu disfarce…), pegou o caneco que estava no escorredor, encheu-o de água até mais ou menos um terço e colocou em uma das bocas de Devil Stoven, tendo o cuidado de ligá-lo em fogo máximo.
Chegou à janela e não viu ninguém no prédio vizinho. De relance, notou que o varal ainda tinha as flanelas que usara para limpar o apartamento há cerca de 15 ou 20 dias. Pensou nos problemas que teria na próxima rodada de limpeza enquanto seu charuto se acabava. Ouviu um barulho e viu que a água já borbulhava. Voltou para a cozinha.
Pegou o pano de prato marrom (marrom de sujo, ele, quando comprado, era branquinho, branquinho…), enrolou em sua mão e trouxe Kitchen Mug para a pedra da bancada. Encontrou na pia sua xícara ainda com café do dia anterior (e algumas formigas). Jogou-lhe um pouco de água da torneira, dando-se por satisfeito.
O pó de café e o filtro de pano estavam próximos e, hábil que era, não demorou muito para deixar a xícara posicionada para receber a mistura que lembraria um café. Contudo, ao se virar, esbarrou o braço em Kitchen Mug e saltou para trás com um grito horrível de dor. Sim, Kitchen Mug tentara queimá-lo vivo! Maldito!
Instintivamente, empurrou Kitchen Mug para dentro da pia, queimando-se mais um pouco (e, de novo, urrando horrivelmente). O charuto foi ao chão. Enquanto a água quente escorria pelo ralo, abriu lentamente a torneira e viu a fumaça sair de Kitchen Mug ao contato com a água fria. Pode ou não ter quebrado a supracitada xícara.
Respirou aliviado, mas ainda sentia dor. Liberty Jones não usava pomadas (era um lema que adotara para a vida) e, assim, retirou gelo do congelador e encheu uma bacia com os cubos. Em seguida, enfiou o braço no gelo e ali relaxou. Com a outra mão, riscou um fósforo na parede e notou que não poderia pegar um charuto.
Liberty Jones ficou observando o fogo no palito. Ao sentir o calor se aproximando dos dedos, soprou, apagando-o.
A faca sobre a mesa - Sobre a mesa estava a faca. Afiada, nova, pontiaguda e brilhante. Parecia que o encarava, olhar desafiador de quem espera alguma reação. À sua frente, um copo de whisky que suportara algumas doses tinha já o gelo transformado em complemento ao destilado de mediana qualidade que havia comprado há alguns meses.
Atrás do copo, de costas, olhando para o céu noturno, estava o angustiado personagem. A noite da cidade nunca tem muitas estrelas e, naquela, em especial, não se vislumbrava nem uma pequenina. Não havia como fazer desejos à estrela solitária sem nome. Precisava de desejos? Há muito deixara de acreditar em poderes de estrelas. O mistério do mundo não lhe parecia mais algo tão ameaçador.
Quando criança, tinha um certo respeito pelo tal mistério do mundo. Ou pelos mistérios. Ao longo da vida, alguns deles foram sendo resolvidos, mas havia um do qual nunca conseguiu se desvencilhar: o mistério da morte. Digo, do que existe (existe?) após a morte.
A faca sobre a mesa brilhava com o reflexo da luz da lua. Não era um reflexo qualquer. Era especial. Unia o aço da faca com a delicadeza da luz lunar produzindo, ao menos aos seus olhos, uma sensação de pureza que contrastava com as impurezas de sua própria humanidade. Que sabor teria aquela faca tão bela quando combinada com seu sangue?
Voltou-se para a mesa e encheu novamente o copo com seu whisky. A garrafa estava quase vazia. Não estava bêbado. Talvez levemente tonto, mas só. Não tocou no jantar. Já de algum tempo imaginava as refeições noturnas como um exagero. Ou talvez apenas quisesse um motivo para iniciar uma dieta. Ah, dietas…
Sentou-se e encarou a faca enquanto sorvia mais um pouco do whisky. Lembrou-se dos últimos meses e de tudo o que havia ponderado sobre a vida, os peixes e tudo o mais (é que era um leitor voraz de Douglas Adams). Desejou poder ter feito o que não o fez e desejou não ter feito o que fez, concluindo que, ora bolas, não teria feito nada de diferente mesmo.
Inclinou seu copo sobre a faca, como se a purificasse com seu whisky. O contraste da cor dourada do destilado com o aço prateado da faca lhe pareceu ser uma revelação do divino: como a natureza e a obra humana podiam se combinar de forma tão bela? Sorriu um sorriso de sinceridade que só os bêbados possuem, embora ainda repetisse mentalmente para si mesmo que não havia bebido tanto (e que o whisky era de boa qualidade).
Algumas gotas de whisky caíram sobre a mesa e outras respingaram em seu bloco de anotações, formando uma pequena flor borrada. Com sua caneta, esboçou o contorno da flor e surgiu dali a primeira flor de cerejeira com aroma misto de Jack Daniels e tinta Lamy que havia visto em toda sua vida. Completou o desenho e sorriu, sentindo-se um artista.
Segurando o cabo da faca, ergueu-a diante de si e passou a admirá-la por diversos ângulos. Cuidadosamente colocou-a sobre a mesa. Notou que o jornal do dia anterior ainda estava no plástico, perto da porta, tal como o zelador o entregara. Levantou e, cambaleante, caminhou até ele. Tirou-o do plástico e tentou ler qualquer coisa, sem sucesso. Ainda repetia para si, mentalmente, que não estava bêbado.
Com o jornal em mãos, voltou à mesa e acomodou-se na cadeira de madeira. Notou que a faca ainda parecia lhe encarar, agora em tom de deboche, como se risse de sua incapacidade de ler bêbado. Tentou alcançá-la, mas suas mãos não o obedeciam tão bem. Virou as mãos e encarou as palmas. Ordenou-lhes, com a voz embolada, que lhe obedecessem. Quando se voltou para a mesa, não viu mais a faca.
Olhou para os lados, assustado e nada viu. Sentiu uma pressão forte em seu pescoço e notou que sua mão direita tentava alcançar sua jugular com uma resolução invejável. Com a mão esquerda, tentou pará-la, sem sucesso. O sangue jorrou enquanto tombava pesadamente no chão. Sobre a mesa, a bela flor desenhada desaparecera sob o mar de sangue.
Dias depois, seu cadáver foi encontrado. A faca não foi encontrada em sua mão direita, mas sobre a mesa, limpa e brilhante, como se nunca tivesse sido usada. Sua mão direita, decepada, foi encontrada a alguns metros.
Pensamentos - Precisando ser menos arrogante, parou de escrever e foi ler um bom livro. Às vezes, é preciso pesar bem os prós e contras do ego. Eu disse ‘às vezes’?
Faxina - Do último livro do João Filho:
Faxina
Algumas vezes morremos
mais do que o devido,
a parte que morreu
sabe que morreu
e dói inacessívelMas não acumule
as partes perdidas,
quarto da bagunça
atulhado de perdas,
sombras inimigas.Ponha a dor em caixas,
varra os seus resquícios,
a cicatriz que ficar
vai para o inventário
da dolorosa faxina.O peso de perder
nos ressuscita.
Está lá na p.102 de Ao Sul do Labirinto, da editora Mondrongo, recém-publicado.
Faxinas nunca são agradáveis. Faxina é trabalhosa e, muitas vezes, muito dolorosa. Uma escolha difícil é saber se você quer fazer a faxina. Ou a ressurreição. É preciso escolher bem.
Por hoje é só, pessoal e…até mais ler! (*)
(*) “até mais ler” foi plagiado do Orlando Tosetto, cuja newsletter, aliás, você deveria assinar.
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