O homem e seu fracasso - Zensetsu Tsugaru - Identitarismo faz mal - The Wrong Box (A Loteria da Vida) - Juca Pato - Comuns - Outro.
Dê-me uma comédia melhor do que uma inglesa e lhe darei um sopapo!
O v(4), n(7) chegou para acabar com seu carnaval. A bem da verdade, o carnaval já acabou. Só você finge que ele continua porque você é preguiçoso.
O homem e seu fracasso - Primo Lêvi era um cara que não sabia se aquilo era um homem. Lêvi nasceu em Niterói, mas, pouco depois, mudou-se com os pais para São Paulo, nos saudosos anos 70. Contam que muitos o confundiam com o famoso Primo Lévi, autor de “É isto um homem”. O momento não poderia ser melhor já que, diante de si, estava uma figura exótica, uma mistura de Rambo com Clóvis Bornay.
“- É o carnaval!”, disse a si mesmo mentalmente.
Lêvi nunca foi fã do carnaval. Preferia a companhia de seus cachorros em sua humilde, mas sempre limpa e organizada casa, escondida nos fins de alguma rua do Cambuci. Viviam, pois, meu primo Lêvi, Bolota, Panela, Lulu e Popeye, seus quatro cachorros em comunhão com Deus, sem incomodar vizinhos com festas de arromba (lembre-se: anos 70) ou similares.
Sua casa tinha um pequeno quintal com duas laranjeiras, herança de um pai apaixonado pela horticultura, dois quartos, uma sala de jantar, uma outra sala, dois banheiros. As telhas, naquele tom marrom-alaranjado cujo nome desconheço (se é que algum há) combinavam com as paredes brancas e as janelas com grades porque sabe-se bem como era a insegurança na paulicéia setecentista (no caso, do século 20).
Uma rápida olhada pela casa revelaria a você, leitor e convidado para um café na casa de Lêvi, um estilo de vida modesto. Um toca-discos, duas camas, um fogão de quatro bocas, uma geladeira, uma mesa para refeições com quatro cadeiras, um sofá e duas poltronas, um rádio e uma televisão. Obviamente, todos em seus devidos cômodos, um mapeamento que deixo aberto à sua imaginação.
Os quatro cães faziam a festa o dia todo na casa de meu primo Lêvi que, só, sem uma companheira e sem os pais - falecidos quando ele já tinha uns trinta anos - retribuía o amor dos cachorros com muito cuidado e zelo com a vida deles. Não saberia dizer, amigo leitor (ou amiga leitora, você me entendeu, né?), a raça dos “aumigos” porque sempre fui ruim com raças de animais (inclusive os humanos). Deixo o racismo e a tara por classificar pessoas em raças para os racistas que, se você permitir, negam-lhe um documento oficial se você não declarar uma raça à qual supostamente pertença, ainda que a inexatidão científica da declaração seja óbvia.
Seus um metro e setenta centímetros de altura combinavam-se com setenta quilos numa distribuição que incluía cabelos loiros e anelados (como um daqueles horríveis anjos barrocos, gordinhos, nus e dourados), olhos castanhos, braços que pareciam estranhamente curtos (pelo menos a mim…) e pernas atarracadas. A pele? Parecia um branco para os morenos e um moreno para os brancos. Nos anos 70, as pessoas ainda tinham horror aos fiscais de melanina por se lembrarem das consequências destas idéias na Europa enlouquecida (mais ou menos de 1933 a 1945).
Julgava Lêvi que os homens eram iguais lembrando-se de algo que, se não me falha a memória, Thomas Hobbes disse: o ser humano é aquele no qual, cortado, jorra sangue vermelho, sempre. Como pretos, pardos, cafuzos, mulatos, brancos, amarelos etc. jorram sangue vermelho, não haveria por que discriminá-los.
Lêvi tratava a todos igualmente, contando piadas maldosas também igualmente ofensivas a todos, ajudando a qualquer um que lhe pedisse ajuda independentemente do percentual de melanina em sua pele. Creio que Lêvi tinha uma classificação muito digna do que eram suas obrigações em uma vida comunitária, mas esta é a minha opinião. O leitor pode ter outra.
Alguns dizem que Lêvi desistira da vida aos quarenta. Da vida louca, quero dizer. Tendo namorado a mesma mulher desde os vinte anos de idade, quase consumou o matrimônio, mas foi impedido por uma discordância qualquer em alguma discussão que tiveram, ainda sóbrios, num jantar romântico. Passou uns meses chateado até encontrar, na porta de sua casa, certa noite, uma pequena caixa de papelão com os quatro filhotes que viriam a ser Bolota, Panela, Lulu e Popeye.
Há boatos - veja bem, boatos! - de que a ex-noiva, em um ato de misericórdia, amor, ódio ou indiferença, teria sido a responsável por deixar ali o caixote tão cheio de um potencial amor. Uns dizem que queria lhe atormentar, outros que desejaria testar os limites de sua bondade. Enfim, cada um diz uma coisa e nem sabemos mesmo se teria sido ela a responsável pelo fato que mudaria a vida de Lêvi dali em diante. O fato é que a caixa lhe surgiu na vida e Lêvi, com o coração arranhado, agarrou-se aos filhotes e passou a cuidar deles com exemplar esmero. As refeições em sua casa tornaram-se mais sonoras e divertidas.
Lêvi, eu nada disse antes a respeito, ganhava a vida escrevendo artigos para alguns jornais a respeito de automóveis. Quando o horóscopo do dia ficava descoberto, Lêvi arriscava uns palpites que, certa vez, levaram a também moradora do bairro, dona Neide a ganhar o prêmio máximo na loteria. Sim, Lêvi não ajudava apenas seus cães.
Alguns parentes afirmavam que Lêvi era um fracasso, já que não havia se casado, nem tido filhos (nem que fossem uns bastardozinhos…). Que era apenas mais um solteirão vivendo humildemente em uma casa com quatro cães, sem brigar com ninguém e ganhando sua vida honestamente. Pensando bem, Lêvi lidava bem com seu fracasso. Pensando melhor, talvez não fosse exatamente um fracasso…
Zansetsu Tsugaru - É o nome de um dos últimos álbuns de Takashi Hosokawa (nome + sobrenome, como no Ocidente). O que tem de interessante nele? Vários clássicos deste excelente cantor com novos arranjos. Costumo não gostar de novos arranjos, mas, neste caso dou meu braço a torcer.
Sem falar que a voz dele continua ótima, mesmo aos 73 anos. Tem no YT Premium, pelo menos.
Que estilo de música ele canta? Bem, o correto talvez seja dizer que ele canta músicas populares japonesas (Kayou, 歌謡) que tem dentro de si também o estilo Enka (演歌). Quando ele canta Minyou (民謡), ou seja, músicas folclóricas, acredite, é um show à parte.
Identitarismo faz mal - Bárbara é certeira no comentário sobre o emburrecedor identitarismo que vemos por aí, disseminando discórdia em nome da tolerância. Um adendo: ou os pais reagem e contestam o que estão ensinando aos seus filhos, vigiam e assumem seu papel de criadores/educadores, ou terão estes zumbis narcisistas, ignorantes e mimados que vemos aos montes.
Não é papel de nenhum conselho tutelar, juiz, muito menos de um governo. É seu, papai. Seu também, mamãe. Assuma as rédeas, ou seja, tratado na velhice por um médico que vai te olhar como um número, não como um ser humano.
The Wrong Box (A Loteria da Vida) - é um filme reinounidens….não, espera, volta. Eu tenho mais do que dois neurônios (e que funcionam!). De novo: é um filme britânico para lá de divertido que o Orlando Tosetto me arrumou há algum tempo, mas que eu não havia conseguido assistir.
Há males que vêm para bem, né? Carnaval, eu cheio de coisas para arrumar, cansado, afim de um bom filme, de um bom livro, de um bom papo, mas, pelo Teorema Shikida da Vida - TSV (todos os direitos reservados), você nunca poderá ter os três juntos. No máximo, dois deles. Deixando de lado meu revolucionário teorema, o fato é que hoje eu consegui (hoje é segunda-feira, tá?) assistir a divertida comédia britânica de 1966 e, olha, recomendo muito.
Claro que não está em nenhum serviço de streaming porque, sabe como é, é um filme antigo e a juventude que não conhece Peter Sellers ou Michael Caine não tem mais o direito de conhecê-los porque o que importa agora é só a última série da Fetnlix ou o último vídeo de 3 segundos do KitKot. A busca por uma cultura diversificada em filmes? Continua, mas há poucos viajantes jovens no barco.
E, a bem da verdade, isso pouco me importa. É a minha vida a que eu preciso colocar em ordem e tudo bem. Dito isto, não vou dar spoiler e você que se vire para encontrar o filme (minto: você consegue encontrá-lo fácil, mas sem legendas). Diversão garantida e o meu dinheiro de volta. Ou não era bem assim?
Juca Pato - O mesmo Orlando (sim, ele me pagou R$ 1 milhão pelo patrocínio, acredite, sua beiçuda!) me falou do Belmonte e de sua criação, Juca Pato. Adquiri um livro, mas sinto que o legal mesmo seria ver mais cartuns dele. Vai ver eu os acho na hemeroteca digital. Ou na José Mindlin.
Legal mesmo é que há um cartum, um único, em que Juca Pato encontra Juó Bananére. São Paulo já foi mesmo um epicentro cultural desta bananada, né?
Comuns - Existe toda uma literatura - ainda confusa para mim - que se desenvolveu após os insights da Elinor Ostrom sobre os comuns (bens comuns, tragédia dos comuns etc.). Parece que uma newsletter trata especificamente do tema que é esta, do Michel Bauwens.
Para os economistas, este seria o melhor texto introdutório ao tema. É um pouco cansativo ver esta estratégia de “isto aqui é diferente da economia neoclássica”, sempre utilizada por quem deseja destacar sua teoria (muitos que usam custos de transação tentaram isto, no início dos anos 90). Não vejo o tema como algo ‘revolucionário’. Vejo como mais um desdobramento da teoria econômica, que, em breve, fará parte dos modelos canônicos. Eis alguns trechos.
In the past, in the ascending phase of societies and civilizations, the market and state institutions were ascending and dominant, while depleting the local resources in their competitive endeavors, while in the descending phase, local populations would revive and regenerate their commons. But we now have a very specific problem: nation-states systems are dominated by transnational finance, and severely hindered in their capacity to reform and transform their national economies, and purely local responses are inadequate on their own.
O detalhe do parágrafo acima é que ele nos diz, explicitamente, que mesmo instituições supostamente perenes como os estados-nação, podem não ser suficientes e deveríamos pensar em alternativas.
The common good refers not just to the addition of all individual interests and utilities, but to interests and utilities that benefit the ‘whole’ system in which the agents participate. A contrario, market ideology believes that if every market player works for its own interest, that this creates the maximum amount of wealth creation, which can then eventually be redistributed through the state. In this vision, the common good is not seen as inherent, but derivative.
Neste trecho há esta suposta diferença entre comuns e mercados. Fica difícil ver como uma economia dos comuns possa existir sem interação com mercados (não pensei muito sobre o tema, é um insight). Não acho que um ‘kibutz’ de ‘commons’ possa existir isoladamente dos mercados e, portanto, não vejo necessidade de uma outra ideologia para um bem específico como os bens de uso comum.
Concorde-se ou não com o autor, o tema é atrativo para quem gosta de ‘mudanças tecnológicas’, ‘inovação’ ou ‘empreendedorismo’. Há já uma P2P Foundation, que parece trabalhar para ganhar seu espaço no mercado. Há uns e-books que podem ser base para estudos iniciais sobre o tema.
Há algo que me incomoda nestas visões - algo ambiciosas - que tentam descrever o mundo com base em linguagens de programação e derivados (P2P, blockchain, cryptocurrencies etc.): a impossibilidade de sua existência sem uma infraestrutura que lhe forneça energia. Literalmente, sem uma tomada ou um painel solar, por exemplo, nada disto acontece e isto nos traz de volta ao que eu disso no início: os fundamentos teóricos dos commons podem ser explicados com a boa teoria econômica (que não depende de energia para explicar o funcionamento das sociedades).
Para ser menos crítico, sim, Ostrom tem ótimos insights que não dependem de uma tomada ou uma bateria para a gerência dos recursos de uso comum que ela estudou. Claro que não resisto a perguntar: a energia elétrica, solar etc. é um bem privado? Se sim, então os entusiastas de commons precisam entender melhor o alcance de suas visões de mundo. É uma provocação, mas é uma provocação sincera.
Juiz Dredd - Juiz Dredd ganhou uma música para de chamar de sua. Já faz algum tempo, mas, claro, eu não sabia.
Por hoje é só, pessoal e…até mais ler! (*)
(*) “até mais ler” foi plagiado do Orlando Tosetto, cuja newsletter, aliás, você deveria assinar.
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Talvez você seja novo por estas bandas. Rapidamente: publico geralmente às quartas. Eventualmente há algumas edições extraordinárias. Assinar (custo = R$ 0.00 + valor do seu tempo para apertar o botão subscribe com seu endereço de e-mail lá…) me ajuda bastante. A temática? De tudo um pouco. Confira os números anteriores aqui.
Peter sellers was a Fine British comedian! Bloody good Newsletter you and toseto are very gifted talents !
Shikida: para ouvir o cantor Tsugaru só mesmo no Apple Music. https://music.apple.com/br/album/zansetsu-tsugaru/1695534187