O escritor que queria mudar seu estilo. Rent-Seeking no Brasil. Doutor Palhinha no Multiverso da Paúra. Outros.
Alerta de duelo mortal na sua telinha. Tire as crianças da sala (ou não).
Olha o v(2), n(39) aí gente…
A mudança de estilo - Decidido a aperfeiçoar seu estilo, o escritor estudou alguns autores, leu alguns manuais sobre estilo, fez anotações. Tudo isto por volta de uma dúzia de semanas (usar dúzia para contar bananas e semanas era parte de seu estilo). Finalmente, naquele momento - pensou alegremente - chegara a hora de finalmente mudar seu estilo.
Sentou-se confortavelmente e colocou sua xícara de café matinal ao lado - mas não tão ao lado porque não era descuidado - do notebook. A tela em branco à sua frente lhe fez pensar na ironia daquilo para quem havia sido alfabetizado com quadros negros. Agora era tudo ‘preto no branco’ embora, democraticamente, em sua infância, fosse o exato oposto. Não conseguiu evitar pensar na ironia de que gerações posteriores à sua fossem menos democráticas, já que nem souberam o que era um quadro negro.
Até lhe ocorreu uma piada sobre racismo, mas seu estilo era comedido e atento às críticas nas redes sociais. Além disso, seu humor, muito peculiar, poderia, por esta mesma peculiaridade, passar batido sem render-lhe as risadas que pensava merecer quando contava piadas.
Mentalmente o escritor pensava estar pronto. Meses de estudo, uma boa noite de sono, um café que já não lhe queimaria a língua (tanto quanto suas piadas?) e uma tela pronta para receber o seu novo estilo. Da janela, coroando seu importante momento, vislumbrou um belíssimo sol nascendo. Não poderia deixar para depois. Não mesmo.
Levou as mãos ao teclado e, na tela, surgiu:
Naquela manhã de sol forte, Gregor Samsa acordou e viu que seu arado estava torto. Não só torto, como parecia estar assim, meio que com o bacurau sujo.
A espinha gelou-se. Olhou novamente para a tela e conferiu.
Naquela manhã de sol forte, Gregor Samsa acordou e viu que seu arado estava torto. Não só torto, como parecia estar assim, meio que com o bacurau sujo.
Como assim? Não era isso que havia pensado. A frase que imaginara era:
Naquela manhã de sol forte, Gregor, o padeiro dedicado daquela ruela de Lisboa havia acordado com preguiça e não parava de pensar em Luana, a esposa do cônsul da Romênia.
A despeito do sol forte e do personagem Gregor, o resto da frase em nada parecia com a que lhe despontava em sua mente. Seria um daqueles tropeços de quem acorda cedo e ainda não tomou o café? Preocupado, levou a mão direita à boca e deu uma leve soprada. É, havia mesmo escovado os dentes. Deu um gole do seu café e voltou-se para o teclado. Ao digitar, surgiu:
Assim, Gregor levou a mão ao seu arado e deu uma sacudida demorada e percebeu que sentia um certo prazer.
O susto foi maior ainda. Afinal, o escritor queria apenas escrever:
Bom dia. Sou eu mesmo quem está aqui. Eu, o mesmo escritor de sempre.
Obviamente, pensamentos sobre doenças invadiram sua desconcertada mente. Começou a suar e, ao mesmo tempo, não conseguia parar de beber o café. Levantou-se. Olhou para o teto e deu um suspiro profundo. Ocorreu-lhe que poderia ser uma invasão do computador ou algum tipo de vírus, o que lhe deixou um pouco mais calmo.
Correu para a sala, pegou seu caderno de estudos e um lápis. Correu as páginas lotadas de anotações de seus estudos (aqueles, das dúzias de semanas, lembra?) e, achando uma página em branco, escreveu:
Não é que Gregor se sentisse bem com aquilo. Não, Gregor era católico e temente a Deus. Um bom cidadão até.
Não podia acreditar no que lhe acontecia. Teria enlouquecido? Em sua mente, a frase original latejava como se uma enxaqueca fortíssima o tomasse de assalto:
Eu sou um escritor que iniciará seu novo romance em um estilo totalmente novo, original mesmo, fruto de meus estudos nos últimos meses…e não estou louco!
Foi então que uma ideia absurda lhe ocorreu. Seria possível que seus bem intencionados estudos em busca da mudança de seu estilo tivessem lhe deixado perturbado? Mas era só seu estilo que, agora, pretendia, seria menos dedicado à descrição das paisagens. E também não começaria mais suas frases com “E’. Isso e mais uns detalhes que havia anotado naquele mesmo caderno.
Tenso - agora sim, bem tenso - folheou novamente o caderno em busca de suas anotações. Verificou uma a uma. Estava tudo lá. Desde sugestões para polir melhor algumas de suas frases passando por dicas sobre o uso da voz passiva a parágrafos de obras famosas que pensava em usar como modelos em seu novo estilo.
A despeito de tudo ali, organizadamente anotado, ele parecia estar preso em uma versão engraçadinha de uma história kafkiana, típica de seu humor no estilo que pretendia deixar de lado. Em um momento de fúria, escreveu num canto de página:
QUEM, DIABOS, É VOCÊ!
Espantado, notou que era exatamente o que havia desejado escrever. Num misto de alívio e alegria, arriscou mais uma:
QUEM, DIABOS VOCÊ PENSA QUE É?
Quase desmaiou. Não, novamente esta não era a frase que havia elaborado. Havia pensado em algo mais simples, só para checagem do seu retorno à normalidade:
Os pintassilgos cantam em homenagem ao meu novo estilo.
Note que até o uso de maiúsculas e minúsculas era mais comedido. Nada grosseiro e agressivo. Entretanto, ainda incrédulo, lá estava a pergunta dirigida a si mesmo. Coçou os olhos, olhou para um lado, para o outro e até para o teto. Ao olhar novamente para o caderno, para sua tristeza, lá estava a mesma pergunta.
Tentou fazer o contrário. Pensou em QUEM, DIABOS VOCÊ PENSA QUE É? mas, ao escrever, o que saiu foi:
Não, não era fácil para Gregor evitar pensar em Luana. E nem você conseguirá me tirar daqui. Escritor tolo…
Novo susto. Desta vez, desconfiou que poderia estar possuído por algum demônio, o que não lhe parecia razoável, já que não acreditava em anjos ou demônios. Tentou se acalmar e concluiu que não se tratava, obviamente de invasão ao seu computador. Poderia mesmo estar enlouquecendo mas, ponderando, viu que ainda conseguia usar o método científico para eliminar explicações descabidas de sua suposta loucura.
De escritor e louco todo mundo tem um pouco, pensou. Jogou-se no sofá e ligou a televisão.
<intervalo para o leitor refletir sobre suas próprias loucuras e checar se, ao rabiscar algo, também não estaria…>
Mais tarde, naquele mesmo dia, arriscou uma nova tentativa. Afinal, poxa vida, era o dia de inaugurar seu novo estilo que, pensava, seria mais sofisticado, mais agradável ao leitor, enfim, uma revolução no seu estilo de redigir.
Claro, não seria lá o melhor escritor vivo da língua portuguesa, mas a mudança de estilo, esta que tão carinhosamente construiu, merecia uma nova tentativa. Não havia espaço para a covardia. Não senhor! Não seria uma temporária loucura a servir-lhe de obstáculo.
Por isso mesmo a longa pausa. Poderia a estranha manhã ser manifestação não de uma loucura, mas sim de sua ansiedade com a expectativa de apresentar ao mundo (ou ao menos ao mundo tal e qual representado pela tela do computador) seu novo estilo. Não seria nem o primeiro, nem o último a se sentir ansioso diante de uma mudança tão radical.
Claro, claro, ansiedades…
Sentou-se novamente em frente ao computador, respirou fundo e digitou de olhos fechados (como se o abrir dos olhos pudesse lhe garantir alguma bijeção entre o que pensava e o que digitava).
Seu estilo não muda, mané.
Deixa de ser bobão.
Estilo novo é seu chulé.
Rima pobre, seu bordão.
Horrorizado, insistiu.
Não insista, não adianta.
Seu estilo não mudará.
Tente, tente, sacripanta,
que não vou te abandonar.
Tudo ficou assustadoramente óbvio. Seu estilo, aquele que desenvolvera por anos, aquele mesmo, não queria deixá-lo. O maldito, inclusive, zombava dele com rimas engraçadinhas e pobres, como as que ele sempre fez.
O escritor se acalmou e ponderou que, talvez, a mudança de estilo não devesse ser conduzida de forma tão espetaculosa, revolucionária. E se a gente pensasse como um aperfeiçoamento, assim, marginal, no estilo antigo? Ou em uma melhoria de pequenos processos de seu estilo? Sei lá, um puxadinho do estilo?
Imerso nestes pensamentos, viu-se já com fome novamente às sete da noite. Pensou que a melhor abordagem seria mesmo pensar em sua mudança de estilo como algo mais diplomático consigo mesmo (ou com seu estilo antigo, já não sabia mais ao certo como pensar sobre a situação…). Antes de dormir, pensou bem e digitou:
Boa noite. Vamos começar com o pé direito amanhã.
Foi o primeiro momento de alívio.
Um número terrível - Usando a monografia premiada Rent-Seeking no Orçamento Público Brasileiro: estimativas e determinantes (18º Prêmio Tesouro Nacional, 2013, Daniel V. Godoy), temos que: “…o custo social total na execução orçamentária nas três esferas de governo alcança 1,72% do PIB”.
Eis uma aproximação simples, mas informativa: o PIB foi de R$ 8.7 trilhões em 2021. Logo, o custo do rent-seeking seria, supondo que que ainda permanecesse no percentual de 2013 (uma hipótese conservadora, não?) de R$ 149,640 bilhões (1.72% * R$ 8.7 tri). Agora, considere que, segundo a CNN, o Bolsa Família atual (antes do Auxílio Brasil) custou R$ 34.7 bilhões em 2021.
O custo social da atividade rent-seeking, no Brasil, é quase quatro vezes maior que o custo do Bolsa-Família.
p.s. é só uma aproximação grosseira, pessoal. Eu ia escrever mais sobre isto, mas hoje (13/05) é aniversário do Orlando Tosetto e, portanto, optei por distrair-me com os textos de parabenizações a um dos melhores escritores neste mundo de blogs-newsletters (que é, cada vez mais, o mundo que usamos para ler bons autores?).
Cultura japonesa e imigrantes - Vários materiais produzidos pela colônia nipo-brasileira ao longo dos anos está digitalizada e disponibilizada aqui.
Pudim é muito bom - Mas melhor ainda é o humor do Alexandre. Com participação especial do Bimbo na divulgação da newsletter do nosso autor favorito.
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As tabas e nós - Pedro Sette-Câmara segue uma voz importante na grande conversa cultural brasileira. E é canhoto, o que o torna uma pessoa automaticamente melhor, na minha opinião (algo) viesada.
Menus - Esta ótima newsletter me informa que a Biblioteca Pública de Los Angeles tem uma base de dados online de menus. Restaurantes japoneses só aparecem dos anos 80 em diante. Já os chineses, bem, aí consegui algo dos anos 20, como esta página do restaurante Far East.
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Acrônimos que Deus me Livre - Baixou um santo publicitário em mim após ver a lista de ‘paródias e clones’ de acrônimos de organizações malignas similares à SPECTRE. O Orlando (o aniversariante supra…) atendeu ao chamado da pátria e…
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Biblioteca do Futuro - Como o 18 de maio se aproxima e como biblioteca é uma personagem que sempre reaparece aqui, eis o anúncio que deve interessar ao pessoal de Goiás, mas não apenas os de lá, certo?
Doutor Palhinha no Multiverso da Paúra - Doutor Palhinha encontrou seu similar da Terra 171 ao abrir uma garrafa de Caracu que, não sabia, era encantada. Como a Terra 171 era muito parecida com a sua, de início achou que apenas bebera demais naquela tarde de sábado.
Caiu em si quando se viu diante de seu outro.
‘- Uai, você sou eu?
- Hein? Eu sou eu.
- Peraí. Você é o doutor…
- …Palhinha. Isso mesmo. E você também. Afinal, só um investigador que usa preconceitos para desvendar casos…
- …olharia deste jeito para mim. Ó, moço, a gente faz uma boa dupla!
- Também tem algo em você que me agrada.’
Animados com a descoberta de serem versões distintas do mesmo doutor Palhinha, os dois saíram em busca do livro de Vishanti porque, como concluíram, só mesmo místico afrescalhado que usa roupas coloridas poderia inventar de abrir portais com livros com títulos imbecis.
É importante que o leitor saiba que o doutor Palhinha da Terra 171 foi criado pelo Alexandre Soares Silva de lá, que não usa barba e é um fanático criador de avestruzes. É que existe o multiverso dos personagens e também o dos autores dos personagens, como qualquer um (acho eu) deveria saber.
Voltando aos Palhinhas, sim, boa parte do tempo foi de uma animada conversa sobre os diferentes preconceitos e estereótipos dos respectivos universos. A sociedade do Brasil da Terra 171, por exemplo, tinha problemas com racismo já que, por mais de 100 anos, os colonizadores africanos importaram escravos europeus. Não era uma lembrança histórica da qual alguém se orgulha, claro.
O doutor Palhinha de nosso universo ficou maravilhado em ver vários de seus preconceitos e estereótipos parcial ou totalmente invertidos. Japoneses com fama de machos vorazes na cama e negros com fama de terem um órgão genital pequeno, as piadinhas de belgas sobre a monotonia dos franceses, as piadas com africanos (correspondentes às nossas com portugueses) etc.
Infelizmente, antes que pudessem desenvolver uma amizade maior (e como esta newsletter já havia ficado muito extensa), ao abrirem, ambos, duas garrafinhas de Caracu para brindarem à sua novíssima amizade, o multiverso colapsou em uma única xícara de café que, aliás, acabo de saborear. Está servido?
Por hoje é só, pessoal e…até mais ler!
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