O crime do corpo de Joaquina com talharim e pomarola na padaria do seu Miguel, Bom Retiro
Doutor Palhinha se une a Juó Bananére neste (não tão assim) eletrizante conto
Nesta edição extraordinária, um breve conto do doutor Palhinha em companhia do notável Juó Bananére.
Eram mais ou menos 7:30 da manhã daquela segunda-feira de 1913. O céu, cheio de nuvens, anunciava mais um dia nublado naquele feriado que começava…sangrento. Não, não se assuste. Não é um debate sobre distribuição de absorventes. É algo menos perigoso. Só um crime que ocorrera em uma pacata padaria localizada no Bom Retiro.
A polícia havia sido acionada logo cedo quando o seu Miguel da padaria, ao abrir seu pequeno - mas asseado (e muito popular com a vizinhança) - estabelecimento, encontrou, no chão, entre as mesas e cadeiras de madeira, o corpo de Joaquina envolto em sangue e restos de talharim com pomarola (servido às sextas por um bom preço, consulte o gerente).
“- Non é mia quirida Juóquina!”, exclamou Juó Bananére, ao ser comunicado do fato. E emendou: o grimo contra a sinvirgogna da Juóquina fui io que fiz.
“- Como é mesmo seu nome, italiano?” A voz rouca do doutor Palhinha denunciava seu desconforto com crimes que o tiravam da cama antes do meio-dia.
“- Juò d’Abax’o Pigues Bananére, dotore Parigna.”
” - Quantos anos tem?”
”- Treinta e chinco anno ingompletos, dotore Parigna.”
” - E o que o italiano faz para viver?”
”- Barbiere, giornaliste i zanfoniste.”
”- Cê toca bumbo?”
”- Nón, zanfona, dotore investigatore.”
” - Ah, sim. Entendo. E o senhor, como soube do crime?”
Calhou que Juó Bananére passava pela padaria do portuga, o seu Miguel, pensando em tomar um café com leite quando foi reconhecido pelos policiais. Sem ter como fugir à sua lendária fama de jornalista, tirou do seu bolso um bloco e começou a redigir o esboço da notícia para a página policial d’O Pirralho. Poucos sabem, mas ele matou sua mulher, tendo sido libertado pela Justiça ainda na primeira instância. Coisas da ficção (ficção?) brasileira1.
Por sua vez, doutor Palhinha, não é segredo para ninguém, andava muito atarefado nos últimos dias. Sua rotina, outrora mais tranquila, tem mudado por conta de novos casos que uns autores (obcecados pela sua personagem?), em plena pandemia, criaram para ele.
Claro, para o ilustre investigador, ignorante acerca dos conceitos de metalinguagem e afins, tudo parecia apenas o longo fio tecido pelas moiras. Fica combinado com o leitor, com Juó Bananére e demais personagens deste conto que nada diremos ao doutor Palhinha. Às vezes, é melhor uma personagem não saber de alguns fatos, sob pena de enlouquecimento. Temos um acordo?
Bem, voltando ao caso, sentaram-se Juó Bananére e o doutor Palhinha em uma mesa da padaria de seu Miguel.
“- Traiz um pão com manteiga e um café com leite, seu português.”
”- O senhoire não vais querer também, senhoire Banânere?”
”- É Bananére, seu Miguel. Ah ma che esto tutto lusitanni tenia qui cunffundi mió nome!”
”- Não se incomode, senhor. Mais o senhor não vais querer algo do cardápio?”
”- Una chícara de café, perfavore.”
Ao lado destes dois monstros sagrados da literatura brasileira, o corpo da falecida Joaquina (já mencionei que é homônima da esposa de Juó?), já começava a exalar um odor desagradável.
“ - Seu Miguel, vem cá, portuga!”
” - Sim senhoire, investigador doutor Palhinha.”
” - Qual foi a última vez que o senhor viu a empregada?”
” - Ora poish, eu a vi agurinha, estirada…”
” - Seu Miguel, deixa de ser tão português. Tô falando de antes da morte.”
” - Ah sim, gajo. O senhor gajo investigador é brasileiro, sim, entendo. Eu vi a rapariga ontem à noite quando pedi que fechasse a minha padaria assim que saísse o último cliente.“
” - E quem era o cliente, o senhor se lembra?”
” - Ora, poish, acho que me lembro. Era o Scipione, que traba…”
Juó Bananére não se conteve e interrompeu o interrogatório.
“ - Os portoguese tutti comi bacalhao in demasia. No posso creditare qui o padêro menciona o inlustro segnore Scipione!”
” - O senhor conhece?” , inquiriu o doutor Palhinha.
” - Má é chi o Scipione é chi mi imprego nas imprensa d’O Pirralho!”
” - Sim, poish, meu caro gajo italiano, é eshte meshmo. Aquele poeta eshêntrico.”
Doutor Palhinha, com aquele ar resoluto dos grandes investigadores, puxou o cigarro de palha que estava em sua orelha e o acomodou em seus lábios rachados. Dois policiais se aproximaram com isqueiros.
O cheiro do fumo de baixa qualidade encheu o ambiente como se tudo aquilo se passasse em um conto obscuro escrito por um autor descuidado que pensa que todo mundo conhece ou tem interesse em gente como Juó Bananére, ou o doutor Palhinha.
A tragada inicial ligou algo no cérebro do inigualável investigador, o que nunca é mencionado em estudos científicos, como já desconfiava o doutor Palhinha que, aliás, disse em alto e bom tom:
“ - Os senhores vejam bem. Este Scipione, como vimos no conto ‘O pesquisador contra o esfinge gorda’, que está no livro que me imortalizou, é também conhecido como Oswald de Andrade. Ele esteve aqui ontem à noite, na padaria do seu Manuel, no Bom Retiro. Mais ainda…”
“- Bó Ritiro!”, exclamou Bananére.
” - Tudo bem, seu Bananére. Bó Ritiro. Posso concluir?”
” - Sí, sí. O inlustro ufficiale mi discurpe.” Bananére se calou, ao menos temporariamente.
Seu Miguel chegou, então, com os pedidos do cronista e do investigador. Bananére tomou seu café de um gole só. O lanche do doutor Palhinha, contudo, apenas esfriava.
“ - Como dizia, o escritor conhecido como Scipione foi o último cliente e estava sozinha com dona Joaquina. Ele não gosta de parnasianos.”
” - Mas não servimos parnasianismo neste meu ishtabeleshimento, poish.”
” - Eu sei, mas sua empregada, Joaquina, tentou servi-lo, provavelmente por fora, uma sobremesa parnasiana. Ó ali no chão um pedaço de doce bilacquiano. Sabem o que isso quer dizer?”
” - Mamma mia! Chi indiscobrimento dramatico! Scipione? Çaçino? Griminoso?” Bananére estava em choque.
”- Maish Joaquina vendia doshis que não eram portugueses?” Seu Manuel também estava em choque.
Foi então que, subitamente, saltou das vigas do teto a grotesca figura do Antropófago, identidade secreta de Oswald (cuja existência seria cientificamente comprovada um século depois por Felício Dimas, no ano de 2020, em O Pesquisador Contra O Esfinge Gorda, publicado em livro de um tal Alexandre S.S.)2.
Com seu maxilar robotizado ainda sujo de talharim com pomarola e sangue da pobre Joaquina, Oswald avançou contra o doutor Palhinha. Sua gargalhada soava a modernismo, seu odor exalava a nativismo.
“ - Scipione griminoso!” , bradou Juó!
Cercado pelos policiais e percebendo que nada mais havia a fazer, deu um incrível salto para fora da padaria e correu deixando, para trás, um bando de personagens (e leitores) perplexos. Vários policiais ainda tentariam segui-lo, sem sucesso.
Recuperados do susto, doutor Palhinha e Juó Bananére voltaram ao desjejum. Estava solucionado o crime do corpo de Joaquina com talharim e pomarola na padaria do seu Miguel, Bom Retiro.
“ - Senhor Miguel, teria aí um pão com mortadela?”
” - Ora, claro, senhor inshpetor! Já trago agurinha, agurinha.”
” - O Bó Ritiro corri perigo, inspetore?”
”- É, seu Bananére. Com Scipione solto, é bom tomar cuidado. Não saia recitando poetas parnasianos em voz alta…”
” - O signore Parigna non usó us preconcêto p’ra solucioná o grimo. Pur causa de che?”
”- Ora, seu Bananére”, exclamou doutor Palhinha em um tom que lhe era pouco usual, “os preconceitos, muitas vezes, escondem-se nas entrelinhas”.
” - Migna terra tê parmeras, che ganta inzima o sabiá…” Bananére recitou mentalmente. Por um instante ele desconfiou que poderia ser vítima de Scipione. Ou, quem sabe, talvez não. Talvez Scipione se confundisse com os versos atrevidamente macarrônicos.
Doutor Palhinha chamou seu Miguel e disse que levaria seu sanduíche embalado. Tirou do bolso umas moedas e deixou sobre a mesa. Bananére também deixou alguns caraminguás. Levantaram-se, despediram-se de seu Miguel.
O ônibus para Taubaté ainda demoraria a chegar. Deste modo, resolveu o doutor Palhinha acompanhar Bananére até a redação d’O Pirralho. Caminharam juntos, até desaparecem no horizonte.
Assim me relatou Antônia Melcher, de memória.
p.s. importante deixar claro que ambos caminharam de forma muito pouco parnasiana que estas coisas não pegam bem para homem, como me disse, em outro conto, o doutor Palhinha, entre um uísque e outro.
Espero que tenha gostado. Na quarta-feira volto com a programação normal. Caso tenha gostado e queira assinar, eu agradeço. Sugiro, claro, que veja alguns dos números anteriores para se inteirar da diversidade de temas tratados aqui.
A sentença, publicada em 7/6/1913, n’O Pirralho, não deixa dúvidas: “Das gunsideraçó intrinsicca dus fatto, i gunsiderano tambê a piniò piletica i treize-sêdete di Mittikinixoppp, Lumbrose, Gorpu di Girius, Joan Koppinga, Standio i Dikke, Ering, Ruio Barboza i otros giuriste notabilios, amuntano in goppa o diretto civile e gomerciale nu diretto chi diretto chi Gristo urganizô p’ru povolo in goppa da çarça ardentis, só certo da biçorviçó do réu.” (procura na Hemeroteca Digital que você acha, viu?)
A composição d’Os Modernistas, este grupo secreto de super-heróis cuja descoberta foi relatada no mencionado livro, era a seguinte: Oswald (O Antropófago), Mário (Macunaíma), Menotti del Picchia (Juca Mulato e, vale ressaltar, não é parente de Portia de Rossi), Anita Malfatti (A Paranóica), Biboca Myrtle (A Próclise) e Chapecó (um gigante mbundu, motorista do calhambeque Klaxon). Está tudo lá no O Homem Que Lia Os Seus Próprios Pensamentos.