O Cálculo do Consenso na Colonização dos EUA - A Ilha do Doutor Palhinha - Outros Assuntos.
Bumba, bumba, bumba meu boi, que 2022 já chegou!
Feliz 2022!
Inaugurando o v(2), n(1), temos uma resenha (quase um fichamento) de um ótimo texto para discussão de Vlad Tarko e Kyle O’Donnell seguida de uma visita à Ilha do Doutor Palhinha, não do famoso investigador, mas propriedade de um de seus antepassados.
Neste início de ano espero retomar o lado mais acadêmico da newsletter que acabei deixando um pouco de lado no final de 2021, em prol da ficção. Em 2022, a meta é tentar manter o equilíbrio por aqui. Aperte os cintos porque, sabe, o piloto sumiu!
O texto para discussão Escape from Europe: A Calculus of Consent Model of the Origins of Liberal Institutions in the North American Colonies, de Vlad Tarko e Kyle O’Donnell usa o arcabouço criado no clássico The Calculus of Consent, de James Buchanan e Gordon Tullock para analisar os primeiros anos das colônias que viriam a se transformar nos Estados Unidos da América (EUA). Vamos falar sobre o texto, em duas partes.
I.
O ponto central do uso deste arcabouço consiste em se perguntar sobre os custos de se adotar uma instituição em detrimento de outra. Por exemplo, por que algumas colônias adotaram formas de governo mais democráticas do que outras? A resposta passa pelos determinantes dos custos de se adotar esta ou aquela forma de governo.
Custos que, aliás, aprendemos no clássico livro de 1962, são de dois tipos: (a) custos de tomada de decisão e; (b) custos políticos externos. Os primeiros dizem respeito aos custos de se decidir (e de se lhe dar o devido enforcement). Eles aumentam conforme o número de pessoas necessário para a aprovação da proposta discutida em proporção da população total afetada (por sua aprovação).
Os custos políticos externos são aqueles que são impostos aos que discordam da decisão tomada, já que deverão segui-la de toda forma. Eles decrescem com a proporção de pessoas necessária para a aprovação da decisão (afinal, quanto mais pessoas, menor a parcela de ‘sofrimento’ individual do derrotado).
Tarko e O’Donnell chamam a atenção para o fato de que estes custos podem ser pensados de duas formas distintas, conforme a análise feita. Há os custos externos arcados pelos que pertencem à comunidade/colônia e há os custos externos de jurisdições vizinhas que são prejudicadas pela decisão tomada.
Assim, por exemplo, digamos que a comunidade A decida construir uma prisão na fronteira com a comunidade B. Alguns moradores de A votam contra, mas perdem. Este é o primeiro tipo de custo externo. Mas há também a comunidade B, que não vê com bons olhos a prisão próxima à sua fronteira. Este é o segundo tipo de custo externo.
A pergunta, então, é: qual a proporção ótima de envolvidos para que uma decisão seja aprovada? Isto depende da minimização da soma destes dois custos. Em resumo, este é o argumento original do livro de Buchanan e Tullock.
II. Uma vez compreendido o arcabouço central do texto, qual seja, o modelo de Buchanan e Tullock, os autores postulam (e provam) três teoremas: (1) se os custos externos caem, o tamanho eficiente do grupo decisório cai; (2) se os custos de tomada de decisão aumentam, o tamanho eficiente do grupo decisório cai e, finalmente; (3) maior homogeneidade aumenta o tamanho eficiente do grupo decisório.
No caso da colonização do território que viria a ser os EUA, havia baixa densidade populacional e uma grande área geográfica. Para os autores, isto é sinônimo de níveis baixos de spillovers interjurisdicionais (o que diminui a necessidade de centralização) e também de alto custo decisório entre as jurisdições.
Tarko e O’Donnell ainda apontam a relativa homogeneidade (o que facilita a tomada de decisão pelo grupo) das colônias como um determinante importante para a escolha de instituições inclusivas e democráticas. Argumentam também que o puritanismo favoreceu a homogeneidade e que:
[t]he higher uncertainty and lower state capacity to enforce privileges also undermined the rent-seeking logic of mercantilism, leading to greater economic freedom in the colonies. [[Tarko and O’Donnell (2021), p.16]
Os exemplos históricos que usam são New England e a região de Chesapeake Bay, que apresentam características bem distintas sendo a primeira um exemplo de desenvolvimento mais livre e democrático, em contraste com a segunda.
Parte do argumento deles, neste momento do texto, é muito parecido com a dicotomia entre os determinantes das colônias de exploração e de povoamento, ou seja, a existência de terra e clima favoráveis à exploração em larga escala ou não (veja a Tabela 1 do artigo, reproduzida a seguir).
Já vimos isso na literatura nacional e em outros textos (Acemoglu, Sachs, Easterly & Levine, Engerman & Sokoloff etc.). Isto, aliás, não é um problema. Afinal, os autores não dizem que sua abordagem substitua outras. De fato, frisam que oferecem uma explicação complementar.
Fica faltando um pouco de integração (em termos do modelo matemático) entre elas, mas é um texto maravilhoso de se ler (e olha que raramente eu uso adjetivos neste tipo de ensaio), pois traz de volta o arcabouço do clássico de Buchanan e Tullock para o centro das análises.
Claro, você poderia pensar na colonização brasileira, mas há importantes diferenças entre a colonização dos dois países (e o melhor resumo que conheço é este texto, que enfatiza a questão dos direitos de propriedade sobre a terra). Não tivemos a mesma diversidade institucional na colonização que os EUA.
Ainda assim, algum pesquisador com acesso a votações de algumas câmaras municipais no período colonial poderia fazer uma criativa aplicação do modelo de Buchanan e Tullock, imagino.
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A Ilha do Doutor Palhinha - Muito antes de Honório Palha de Godoy, o famoso Dr. Palhinha, usar de preconceitos e estereótipos para resolver crimes, existiu um outro doutor Palhinha, um tio-bisavô (ou um tio-avô, não se sabe bem), cientista, que mantinha um laboratório secreto numa remota ilha do Pacífico.
Este doutor Palhinha tinha o título de doutor em ciências para-pura-pira-psicológicas (PPPP) que ele obteve após estudar alquimia, preconceitologia, ciências estereotipáticas e biblioteconomia veterinária no obscuro College of Plonksville, localizado nos arredores de Glasgow.
Aparentemente, um ramo da família Palha de Godoy teria migrado de Portugal para a Inglaterra, ainda no século 16, dando origem a uma longa tradição de exóticos investigadores no arquipélago. Alguns dizem que Sherlock Holmes chegou a conhecer (e, prontamente, rejeitou) os métodos investigativos desenvolvidos pela Casa dos Palha de Godoy.
Mas foi de um casamento indesejado entre Joshua Palha de Godoy III e a promíscua Elizabeth Thorndike Moreau que nasceu Jack Moreau-Palha de Godoy ou, como era conhecido nos arredores de Dublin, Dr. ‘Grasshopper Killer’ Palhinha, devido à sua mania de mastigar as patas dianteiras dos pobres insetos desde os 13 anos de idade, para o horror de suas namoradas.
A despeito da estranha mania, Jack tinha uma vida normal. Aos 17 anos, por algum motivo, desenvolveu obsessivo interesse por preconceitos, estereótipos e doenças venéreas. Há boatos de que o interesse teria surgido após suposta iniciação sexual em um bordel de prostitutas que praticavam magia negra, mas isto também nunca foi comprovado (e ainda é alvo de estudos por Palhintólogos).
Depois da faculdade, Jack, ou melhor, Dr. Palhinha, usou a herança deixada pelos pais para comprar uma ilha isolada no Pacífico e por lá construiu seu laboratório no qual desenvolveu experimentos totalmente fora dos padrões da ética científica da época.
Em uma de suas experiências mais bizarras, misturou, numa noite de lua cheia, os frascos da misoginia com a misandria em um ofurô e, após 12 horas, dali surgiu o padre brasileiro Dom Hélder Câmara (ou um sósia dele).
Noutra ocasião, misturou duas colheres de discurso de ódio com um copo de estereótipo de latinos com uma garrafa cheia de suco de cenoura e obteve Donald Trump (ou um sósia dele).
A loucura do cientista era tamanha que, em vários experimentos, usava de seres humanos também. Houve certa ocasião que lançou um programa para que voluntários visitassem a ilha e se submetessem aos seus experimentos. Pagava a viagem de ida e fornecia alimentação e uma vaga promessa de hospedagem. Alguns voluntários estiveram na ilha e foram vítimas de seus experimentos.
Em um, este exótico Dr. Palhinha enxertou na mente de um deputado inglês socialista (fabiano) o favoritismo intragrupal e o estereótipo do latino preguiçoso, obtendo um jornalista (e sindicalista) gaúcho que só pensava em escrever artigos de opinião elogiando jornalistas gaúchos, mas, dada sua imensa preguiça, passava os dias tomando chimarrão e comendo fish and chips.
As loucuras não paravam em suas primeiras criações. Afinal, as aberrações se acasalavam (Dr. Palhinha deu-lhes o livre arbítrio). Havia casamentos, divórcios, uniões estáveis, casamentos arranjados, amancebados etc.
Assim, novos seres surgiam, alguns com características bizarras como o caso do centauro Bussunda (seguidor de Bakunin e humorista), filho de pai (um cavalo tcheco) antissemita e de mãe (uma jornalista carioca) visceralmente anticristã.
A estranha sociedade das criações do Dr. Moreau-Palhinha, dizem, teria gerado até alguns brasileiros. Há boatos de que alguns deles teriam saído clandestinamente da ilha em um navio inglês, desembarcando em Salvador meses depois. Um deles seria o famoso bandeirante Borba-Gato.
Na verdade, seu nome não era Borba-Gato (este seria um dos apelidos que teria recebido no Brasil). Seu nome verdadeiro seria Gatius e ele foi criado em bizarra experiência em que o Dr. Palhinha misturou dois estereótipos altamente instáveis: o lusitano (aquele, das piadas); e o de intelectual paulista. Deu no que deu.
Mas acho que já basta de exemplos. Falemos um pouco da sociedade dos ilhéus. Dr. Palhinha tratava de educar suas criações em seu sistema de homeislandschooling. Seu sistema de ensino usava um currículo flexível, adaptado à realidade local e um ensino médio profissionalizante (chamado O Novo Ensino Médio Moreau-Palhinístico).
Funcionava assim: após a alfabetização básica (três anos) em linguagem inventada pelo Dr. Palhinha que se utilizava de seus conhecimentos de estereótipos e preconceitos, todos ingressavam na escola média (4 anos e meio) em que aprendiam noções de etiqueta preconceituoriana, estereótipos aplicados à economia doméstica, trigonometria e educação cross-sexual (já que vários eram frutos de cruzamentos inter-espécies…) e lições de socialismo utópico.
Encerrado o período escolar, as criaturas passavam a viver tal como quisessem, apenas seguindo as regras básicas da ilha que não envolviam nada muito complicado (Dr. Palhinha seguia uma versão própria do Manual de Como Lidar Com Uma Turbo-Torta de Cereja Enlouquecida, um antigo tratado pedagógico escrito por Jules Palha Freire de Godoy, em 1434, tido como insano em 1467 e falecido no mesmo ano), também conhecido como "A Lei”.
A sociedade de criaturas tão diversas quanto estranhas aumentava a cada dia. Curiosamente, não apresentava grandes conflitos. De algum modo, talvez pelas sucessivas camadas de mesclas de estereótipos e preconceitos, a convivência era pacífica.
Foi mais ou menos na terceira geração da sociedade que, após tantos acasalamentos, surgiu aquele que viria a assassinar o, então idoso, cientista antes de incendiar toda a ilha. Seu nome foi banido dos registros históricos, motivo pelo qual só o chamamos de ‘Aquilo’.
Fruto da síntese máxima de preconceitos e estereótipos, Aquilo, aos 17 anos, enlouqueceu por não conseguir lidar com a rica diversidade de criaturas da ilha. Era-lhe intolerável não só um esterótipo ou um preconceito puros. Também os concebidos por acasalamento causavam-lhe o mais sincero horror.
Se já não aguentava um anticristão sozinho, imagine o que sentia diante de um estereótipo de anão que também era gordofóbico! A tolerância era-lhe insuportável. Sentia uma necessidade inelutável de ‘cancelar’ ou ‘corrigir’ o que lhe pareciam ser imperfeições das criaturas.
Assim, numa bela tarde de Natal, tomada pela fúria purificadora que, acima de tudo, desejava exterminar todos os preconceitos e estereótipos, Aquilo descobriu o arsenal secreto de explosivos da ilha e, no início da noite, pôs fim à toda vida da ilha com uma explosão gigantesca que foi confundida por muitos como uma imensa festa com fogos de artifício.
Onde fica? A ilha? Não sei. Uns dizem que está perdida ali, perto da Polinésia. Outros, por sua vez, dizem que fica perto do Estreito de Behring. Ninguém sabe ao certo.
p.s. Note como a lista de preconceitos da Wikipedia luso-brasileira é distinta da sua contraparte anglo-saxã. Será que existe um preconc…waaaaaaaait a minuteeeeeee!
Dicas de R - Tenho publicado aqui algumas dicas de um mesmo pessoal sobre cointegração em R. É um tema de que gosto muito, embora esteja há um tempo sem trabalhar no mesmo. Mas a dica fica para os leitores que curtem R. Aliás, minha apostila (antiga…) para quem usa RStudio está aqui.
Omicron - Eric Topol, já mencionado aqui, é uma ótima referência.
A ideia que não foi para frente - A ideia do estepe como um quinto pneu deve ter incomodado o cartel dos instrutores da ala “se-não-fizer-baliza-não-passa”. Ou talvez não tenha sido mesmo uma ideia economicamente viável.
Daleks - Como é que eu nunca soube da existência dos Daleks?
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