Joana Sussekind Heliodora, uma médium peculiar
Atores especialmente convidados: Gustavo Corção e Edmund Burke.
Bom vê-lo de novo, assinante. Bom também vê-lo, novo assinante.
Neste 33o número da newsletter (v(2), n(33)), uma pequena história ficcional sobre uma médium muito peculiar. Claro, há também outros assuntos. Divirta-se.
O estranho caso de Joana Sussekind Heliodora - Aí vamos nós.
I.
Joana Sussekind Heliodora nasceu William Roberval da Silva mas, aos 12 anos, após muita briga com os pais, iniciou seu processo de transição e se tornou Joana.
Foi influenciada por Arthur Bonsucesso, conhecido no bairro como pastor socialista (sim, este era seu apelido) que, aproveitando-se das reprovações no colégio, passava o tempo tentando doutrinar os colegas mais novos para sua facção em um partido de extrema esquerda.
Arthur, tentando sempre se vender como o aluno descolado, aproximou-se de William e, verificando que a pauta da transição dava votos, lentamente, convenceu-o de que este seria seu caminho para a liberdade e - por que não? - para o socialismo.
Assim, nas sombras do pátio do colégio, nasceu Joana Sussekind Heliodora. A transição, claro, foi iniciada de forma clandestina e, quando descoberta pelos pais (bem pouco tolerantes), resultou na expulsão de Joana, que saiu de casa com apenas uma mala de roupas e uns poucos trocados que a mãe, sem que o pai soubesse, havia colocado, em um pequeno envelope amarelo, em sua mala, com uma triste carta.
Envelope amarelo, aliás, que Joana, agora, usava em sua nova profissão. Não, ela não se prostituiu. Após a traumática expulsão, ela foi acolhida em um abrigo de uma igreja em uma cidade próxima àquela em que morava com os pais. Adeus aos sonhos socialistas do militante Arthur mas, talvez por isso mesmo, a liberdade tivesse alguma chance na vida de Joana.
Os moradores do abrigo, ao descobrirem que sua nova colega não era exatamente um homem, nem uma mulher, não lhe corresponderam a amizade e, mesmo com a bondade das freiras, as provocações e agressões chegaram a um ponto tal que Joana pegou sua mala e abandonou o abrigo, não sem antes se despedir das freiras.
Não, não se abateu.
É verdade que teve motivos para desistir de tudo. Durante algum tempo, Joana tentou retomar o contato com Arthur Bonsucesso que ignorou suas chamadas. Também não conseguiu contato com o pai. A mãe, contactada, passou a enviar algum dinheiro, com alguma regularidade, proporcionando-lhe um modesto conforto.
Pensando em como se sustentar, Joana decidiu tentar a vida como uma destas cartomantes que se vê em novelas. Deu um trato em sua tenda e conseguiu doações de algumas roupas de forte colorido. Comprou um baralho de cartas, uns dados e, após algum treino, nascia a cartomante Joana.
II.
Foi numa tarde em que o sol projetava a sombra das árvores sobre o gramado e o calçadão da praça, ainda recheada de crianças incansáveis que Joana recebeu, em sua tenda, a primeira cliente: dona Amélia. Tratava-se de uma simpática viúva que ansiava por notícias do seu falecido marido com quem tivera uma vida feliz por 52 anos.
Joana tinha um plano tão ingênuo quanto simples e arriscado: tentaria interpretar o espírito do falecido com o material colhido na conversa inicial, sempre acompanhada de um chá (que era dizia ser ‘mís.ti.co’, soletrando assim mesmo) e umas bolachas (que ela servia só para deixar os clientes à vontade).
Após uma breve e amistosa conversa, Dona Amélia e Joana deram-se as mãos e foi então que aconteceu o inesperado.
‘- Quem está aí?
- Sou eu, Amélia Fonseca de Matogrosso. E o espírito?
- Boa tarde, Sra. Amélia. Eu sou Gustavo Corção.
- Quem?
- Gustavo Corção.
- O senhor não é o meu marido!
- E nem a senhora é minha esposa.
- Mas eu…
- “O adulto é o homem que descobriu seus limites, e o mais perfeito adulto é aquele que conserva a vitalidade da infância dentro de nova e terrível conquista: uma ordem”.
- Ok…’
Antes que dona Amélia pudesse pedir pelo marido, o espírito soltou mais algumas frases e se foi.
‘- Nossa, dona Amélia, desculpe-me, não sei o que houve…
- Tudo bem, minha filha. Acontece, né? Acho…bom, não sei como é isso…
- Nem vou cobrar da senhora…
- Ah, minha filha, pode ficar. Mas obrigado assim mesmo. Pelo menos conheci alguém diferente.’
Dona Amélia, como várias pessoas solitárias, não desprezava sequer uma breve conversa. Joana sentiu-se aliviada. Contudo, o susto a deixou cheia de dúvidas. Não é que ela realmente podia incorporar espíritos? Seria a primeira médium trans do país? Mas como chamaria o espírito certo para a conversa?
Excitada com a descoberta, resolveu explorar mais o seu dom, arriscando-se em outros atendimentos. Com o seu João da padaria, que procurava a falecida sobrinha conseguiu apenas o espírito do patriarca, José Bonifácio de Andrada e Silva, que conversou um pouco sobre seus planos para o Brasil. Já com o casal Tanaka, que vendia verduras na feira da praça aos domingos, que buscavam um contato com um falecido tio-avô japonês, só foi possível mesmo conversar com José Ortega y Gasset sobre massas (não as de lamen).
Definitivamente, não conseguia incorporar o espírito que lhe pediam. Ironicamente, Joana começou a ficar famosa por sessões mediúnicas que mais pareciam pequenas aulas de filosofia. Eis um nicho de mercado que nunca imaginou existir. Seu espírito curioso e a necessidade de conseguir algum dinheiro adicional a levaram a tentar entender melhor tudo aquilo.
III.
Ao adentrar na biblioteca municipal, Joana se lembrou do colégio e dos tempos em que era apenas um garoto tímido e estudioso. Sentiu saudades, mas focou em seu objetivo: conseguir algum bico, já que sua mediunidade peculiar nem sempre satisfazia todos os seus clientes.
Após breve conversa com a diretora Teresa, conseguiu um trabalho arrumando livros. Ganharia pouco, é verdade, mas com o dinheiro enviado irregularmente pela mãe, as doações dos moradores e o pouco que conseguia com seus atendimentos peculiares, pensava, poderia manter-se decentemente na cidade até achar algo melhor.
Certo dia, diante de uma estante de livros de filosofia, reconheceu os nomes dos autores de algumas das vozes que incorporava. Ao tocar um dos livros, foi possuída por um espírito.
‘- Finalmente!
- Como assim…ei, recuperei minha mente!
- Não exatamente. Estamos dividindo.
- E o senhor seria?
- Edmund Burke.
- Senhor Burke? Deixe-me ver aqui na estante. Ah o senhor…
- Isso, sou um conservador.
- Hein?’
Burke, com sua paciência, explicou à médium ‘trans’ Joana que seu dom não era o da mediunidade, simplesmente. Tratava-se de uma especialidade: ela só incorporava espíritos de pensadores conservadores (e alguns liberais). Não somente isso, explicou Burke, mas o espírito sempre falaria em português, em tradução simultânea (e impecavelmente correta).
Estupefata, Joana não sabia se ria ou se chorava.
‘- Sorria, Joana. Não há nada melhor que incorporar bons pensadores’, disse Burke.
- Mas eu sou trans!!!
- E daí? Deixe de bobagem, menina. Você é intolerante?
- Só à lactose.
- Então não vejo problema. Você, percebo, é inteligente. Pense nas possibilidades…
- Agora que o senhor falou…e a tradução é correta mesmo?
- Sim, Joana. Aqui no mundo espiritual a gente se preocupa muito com isto. Nunca usamos traduções de má qualidade.
- Hum, entendo…’
A conversa durou um pouco mais com Burke explicando como a incorporação não passava por procedimentos burocráticos, além de detalhar, a pedido de Joana, um pouco da vida rural inglesa de seu tempo.
Naquela mesma noite, Joana não voltou para a tenda. Com autorização da diretora, dormiu na biblioteca. Aproveitou para varar a madrugada lendo livros de pensadores conservadores (e alguns liberais). Quase não conseguiu dormir, tamanha a excitação.
Foi assim que Joana, a médium transgênero, conquistou sua liberdade. Sua fama se espalhou rapidamente pelas redes sociais. Ficou conhecida como a única pessoa capaz de incorporar espíritos de pensadores conservadores e, você já sabe, também de alguns liberais.
Após tantas leituras - e com as ‘aulas particulares’ diretamente dos tutores mais famosos do pensamento ocidental (e alguns do oriental) - Joana tornou-se uma especialista em pensamento conservador. Em 2016 ganhou um título de doutora honoris causa em uma famosa universidade portuguesa.
Com a fama, passou a sofrer ataques dos amigos de Arthur (hoje, com 30 anos e ainda na 7a série do colégio, onde aparelhou o grêmio estudantil), que insistem ser Joana uma ‘detratora do caminho do socialismo com liberdade’.
Nada mais distante da realidade…
FIM
Gatunices - Ao lado da entrada térrea, à esquerda, um gato (ou gata) no estilo frajola (preto e branco) me olhava curioso (ou curiosa). Arrisquei mostrar-lhe que sou (ao menos para os gatos) um ser inofensivo. Aproximei-me da tela e lhe ofereci o dedo que cheirou, indiferentemente.
Virei-me para a direita, onde se encontra outro apartamento que abriga uma pequena gata branco-preta-laranja à qual já me acostumei a agradar com breves carinhos. A tela protetora tem esta virtude: protege os gatos da queda ao mesmo tempo em que nos permite acariciá-los. Pois não é que ela estava lá, atrás da cortina, vigiando-me?
Essa gata tricolor é como a Sofia (uma gata já mencionada várias vezes por aqui): adora brincar de esconde-esconde. Minha experiência prévia com Sofia me faz pensar se a famosa brincadeira da infância não foi inspirada na observação dos primeiros seres humanos criados junto a gatos.
Acordar cedo tem vários benefícios. Um deles, quando se tem vizinhos no térreo com gatos, é poder usufruir destes momentos de paz.
Imbens - Uma entrevista com o Nobel de Economia de 2021, Guido Imbens.
Humor - Estou rindo muito disso.
Caos urbano ou caos planejado? - Um debate sobre uma pauta que merece mais atenção: impacto regulatório sobre o desenvolvimento urbano. Promovido pelo IPEA, com quase 3 horas de duração. Veja mais aqui.
A análise de impacto regulatório assusta muitos gestores no serviço público, mas é um avanço notável para o arcabouço institucional brasileiro (não sem polêmicas, claro). Ações têm consequências, por mais que alguns não enxerguem este fato óbvio (ou não queiram enxergar).
Por hoje é só, pessoal e…até mais ler!
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