Há bens que vêm para o mal: as consequências não-intencionais dos incentivos
Waqf, waqf, waqf. Sim, isso mesmo. Ficou curioso?
Um tema importante em toda aula introdutória de Economia (nos bons cursos, claro) é o das consequências não-intencionais dos incentivos. A newsletter de hoje, v(1), n(16) trata disto.
Imagine que você seja um rei e que você queira resolver um problema de fornecimento de bens que, geralmente, não são muito lucrativos, logo, não atraem a atenção de investidores privados.
Pode ser um abrigo para órfãos, por exemplo. Há um problema: você é conhecido por reinar sem muito controle por parte da população. Não existe parlamento. Eventualmente, quando decide entrar em uma guerra, você simplesmente obriga as pessoas a lutarem por você e cria impostos extras (ou aumenta o valor pago dos já existentes). É, você não inspira muita segurança para investimentos privados. Como ofertar orfanatos, então?
Eis uma ideia: crie uma isenção de impostos que seja eterna em troca do investimento inicial e manutenção também eterna do orfanato. Eu sei que existe um problema de reputação. Mesmo assim, suponha que você consiga criar uma âncora reputacional e esta isenção, portanto, seja uma promessa crível para as pessoas. Ou que você ofereça um ganho tão significativo que valha a pena (assim como títulos da dívida pública de curto prazo em países com inflação elevada).
Criado o mecanismo legal - podemos colocá-lo até nas escrituras sagradas de nossa religião oficial - alguns se candidatam para a construção dos orfanatos, poços artesianos, enfim, estes bens ou serviços que geralmente não responderiam aos incentivos ordinários que fazem a alegria do setor privado. Com a garantia de protegerem parte de sua riqueza da fome estatal por recursos, várias famílias se dedicam a ofertar estes - que os economistas chamam de - bens públicos.
A definição técnica de bem público é diferente daquela na cabeça do leigo. O público ou o privado são derivados de características do próprio bem. Vale falar um pouco mais com um exemplo. Um talkshow de uma estação FM é um bem público financiado por um mal público. Como assim?
Veja, um talkshow, neste caso, é tal que não se pode cobrar de cada ouvinte e, mais ainda, o fato de você ouvir (seu consumo) não interfere no fato de seu vizinho também ouvir (o consumo dele). Isto é um bem público. O mal público? A propaganda que é transmitida durante o programa. (*)
Voltando à ‘fábula’, nossa sociedade hipotética tem um monarca que não se submete a parlamentos e que conseguiu criar um incentivo para que o setor privado invista em bens públicos. Tudo corre bem por um tempo mas, como sabemos, o mundo não gira em torno de seu umbigo. Em outras partes do planeta, outras sociedades enfrentam outros dilemas e uma novidade surgiu: viagens de longa distância ficaram mais baratas. Outros reis estão fazendo a festa por aí, explorando novos territórios. Você vai ficar de fora?
Você até queria fazer o mesmo que seus colegas europeus, mas boa parte do capital necessário está afundado em orfanatos, poços artesianos e outros bens públicos similares. Isolando outros efeitos, esta ‘fábula’ ilustra o que estudos mostram ser um dos fatores que explica o atraso relativo do mundo islâmico quando do início das explorações marítimas.
Eis a consequência não-intencional de um incentivo do título da newsletter de hoje. Supostamente, a isenção real teria resolvido o problema de provisão eficiente de bens públicos (veremos a seguir que mesmo esta parte da ‘fábula’ não tem muita aderência aos fatos…). Contudo, este mesmo incentivo dificultou o uso de recursos em um empreendimento muito mais lucrativo que surgiu depois.
Claro, ninguém prevê o futuro, mas isto só reforça o ponto da dificuldade de se criar incentivos. Há uma discussão mais interessante subjacente ao tema: será que incentivos criados pelo Estado (absolutista ou não) são mais sujeitos a este problema que os do setor privado? Esta é uma agenda de pesquisa para a vida toda.
Esta ‘fábula’ não é senão um resumo não-técnico e bem superficial do que é conhecido como waqf. A waqf - adotada durante séculos ao longo dos anos no Oriente Médio, nos Balcãs e no norte da África - tem sido alvo de análises em diversos trabalhos do ótimo Timur Kuran (um economista lotado na Duke University). Seu ótimo The Long Divergence: How Islamic Law Held Back the Middle East, lançado em 2010 pela Princeton University Press é a melhor referência sobre o tema.
Fica melhor! - Recentemente, junto a outro coautor, Kuran publicou um texto para discussão sobre o mesmo tema. Um aspecto muito legal é que esta nova pesquisa usa uma base de dados de waqfs que cobre o período 1457-1923. Como adiantei, as evidências sugerem que o incentivo não gerou uma provisão eficiente de bens públicos.
Outro ponto importante sobre o qual vale a pena refletir: governos devem seguir princípios, mas também devem ter flexibilidade para mudar algumas regras. Não creio que um leitor desta newsletter queira a volta da escravidão ou o retrocesso nos direitos das mulheres. Mas imagino que todos achem útil o debate sobre o aperfeiçoamento da política monetária, por exemplo. Ok, isto é um tema para outra conversa, mas é uma questão que surge quando se pensa em problemas como este.
Notinha - (*) Agora ficou menos difícil ver que um podcast pago é um bem privado, espero. Em caso de dúvidas, consulte um bom professor de Economia.
Obs - Eu não sei se é ‘a waqf’ ou ‘o waqf’. Peço desculpas aos leitores mais entendidos do tema por este eventual deslize.
Um bom trecho do livro - A waqf was statutorily indivisible, and its beneficiaries could include or exclude anyone the founder desired. Hence, establishing a waqf allowed the selection of who would control a property after one’s death. It enabled a prosperous merchant to pass his wealth to a single son, thus limiting the benefits accruing to his parents, wife, daughters, and other sons. For that reason, it might seem that the waqf offered a perfect solution to the problem of wealth fragmentation. However, it created other problems, which chapters ahead will lay out, in stages. The waqf restricted the use of assets in ways that hindered adaptations to technological change, the pooling of capital, and organizational development. Hence, it was poorly suited to profit-oriented commerce.
Gostou? Espero que sim. Deixa eu passar meu chapéu então…