Eu te daria o mundo de presente - A pata do escritor.
You will die in a sea of guilt, Zacharias!
Este é um número especial do v(4) desta newsletter. Daqueles que me fazem perder assinantes. Pois vamos fazer mais uma limpa!
Eu te daria o mundo de presente - Foi na Sexta-Feira da Paixão. Acordou com o despertador que, ao contrário dele, não entendia a diferença entre feriado e dia comum de trabalho. Melhor assim, pois não atrasaria seu remédio matinal.
Enquanto a água do café esquentava, olhou para a mesa e encarou a pequena caixa de chocolates importados que comprara para seu sobrinho. A Páscoa, claro, é uma data na qual visitas são sempre mais difíceis de se agendar. O céu prometia um dia mais quente que os anteriores, sem chuvas. A água do café ferveu.
Fazia já algum tempo que já duvidava da própria capacidade de fazer um bom café. Alguma coisa havia mudado. Ou talvez fosse apenas o coador que estaria velho mesmo. Desistiu de um segundo café e enviou uma mensagem para o pai de seu sobrinho, pois não aguentaria não entregar os chocolates depois da Páscoa. Para sua surpresa, a resposta veio rápida e, melhor ainda, poderiam se encontrar ainda naquela manhã.
Aprontou-se, saiu de casa e os encontrou no local combinado. A manhã ensolarada veio mesmo com um forte calor. A pequena caixa de chocolates trocou de mãos e ele ganhou um abraço em agradecimento. Passearam um pouco pelo bairro, parando sempre nas praças onde havia aqueles aparelhos de ginástica de metal que as pessoas, com sorte, ainda não depredaram. Todos se divertiam.
Com a proximidade da hora do almoço, a sombra da separação tornava-se mais presente. O sobrinho descobriu uma sorveteria - e crianças, picolés e sorvetes são inseparáveis, como sabemos - vencendo o pai com o argumento de que chuparia apenas um picolé. Pensando bem, não são apenas crianças que adoram picolés, não é mesmo? Cada um teve seu momento refrescante. Foi então que…
“- Tio, fica aí. Não sai.
- Tudo bem.”
Assim foi como ele deu um jeito para confabular com o pai por meio de cochichos caprichados (e, portanto, inaudíveis) acerca de uma pequena surpresa. Voltou e disse:
“- Tio, se eu pudesse, eu te daria o mundo de presente!
- O mundo? Puxa, eu iria ter trabalho para consertar o mundo, né? Teria que sacudir…
- Iam cair muitos carros, né?
- Iam.”
O pai disse que iria fazer compras no supermercado próximo à sorveteria. Quando entraram, o sobrinho esticou sua pequena mão em direção ao tio, como se fosse uma autoridade policial.
“- Espera aqui. Não entra não!
- Tudo bem!”
O tio já desconfiava que havia uma surpresa a caminho e, sem quebrar a expectativa de ninguém, o sobrinho voltou com um pequeno ovo de Páscoa. Um novo abraço se deu entre eles. Desta vez, contudo, o tio o recebeu com mais emoção. pois deu-se conta de que até, aquele momento, ninguém havia se preocupado em lhe manifestar algum sincero apreço pela proximidade da Páscoa.
O abraço momentâneo, mas firme, tornou-se eterno. Acostumado com a solidão, o tio descobriu que ainda não havia se desacostumado do amor humano. Na despedida, o sobrinho ainda adicionou:
“- Hoje só pode comer peixe, viu, tio?
- Sim, isso mesmo.”
Fazia tempo que ele nem se lembrava mais do peixe na Sexta-Feira da Paixão. Despediram-se ele e o sobrinho com alguma tristeza, pois gostariam de passar mais um tempo juntos. Era chegada a hora de pai e filho encontrarem a mãe para o almoço em família.
Em casa, o tio pediu uma tilápia com arroz no aplicativo. O almoço, embora solitário, foi mais feliz. O ovo de Páscoa não durou muito tempo. Nacional, feito com pouco cacau, para ele era foi o melhor ovo de Páscoa de todos os tempos.
A pata do escritor - Sim, um pequeno conto. A idéia surgiu desta postagem.
I.
Guimarães Ramos estava na grande guerra da África colonial. Até então, morava em Londres e estudava medicina. Seu espírito aventureiro o levara de Recife à Europa em busca de conhecimento e o chamado das guerras zulus foi mais forte que a caridosa voz de Hipócrates.
Os meses que passou em combate foram duros. A imagem heróica e romanesca da guerra sucumbiu à realidade sangrenta em poucos dias. Guimarães Ramos descobriu, ali, do que realmente eram feitos os heróis e não gostou muito do que viu. Muito sangue, muito suor e, surpreendentemente, poucas lágrimas. A máquina de cadáveres refreou-lhe o ânimo guerreiro. No fundo de seu coração, Hipócrates lhe estendeu a mão e ele recuou das trincheiras para os cuidados médicos.
Em meio à caótica situação nas tendas da Cruz Vermelha, fez de tudo: transfusões de sangue, operações de altíssimo risco, reanimação de quase mortos e transplantes experimentais. É, o canto de Hipócrates era forte, mas o gosto pela aventura não o havia abandonado e Guimarães aproveitou para testar algumas teorias sobre transplantes de mãos e pés que, no limite, poderiam salvar a vida futura de ou outro moribundo quando a paz renovasse a busca de vagas no mercado de trabalho no império britânico.
Certo dia em que o calor e a putrefação dos cadáveres vinham com mais intensidade, chegou em busca de socorro o capitão Phillips, um dos mais eficientes efetivos da linha de frente. Um homem desprovido de fé ou de valores morais, recrutado entre os ladrões de Londres, tinha apenas dois talentos: escrevia bem e promovia bons cortes de carne em qualquer ser vivo.
Chegou muito ferido, amaldiçoando Deus e o mundo. Guimarães até tentou, mas a hora do facínora havia chegado. Próximo da morte, fez questão de cuspir sangue na bíblia do padre que lhe dava a extrema. Tendo sua morte confirmada, Guimarães correu a cortar-lhe a mão direita, que era a menos danificada. Tinha em mente o pobre cabo Graciliano Rosa, outro brasileiro que por ali também estava como voluntário e que havia perdido a mão direita.
Graciliano, ao contrário de Guimarães, era pobre. Foi para Londres como criado do cônsul britânico que, no Brasil, usara seus serviços de pequenos reparos. Tomou gosto pelo rapaz e o convidou para uma nova vida em Londres. A oportunidade era muito boa - boa demais para ser verdade, disse a Graciliano uma cartomante - e Graciliano arrumou as malas e partiu.
Em Londres, o cônsul se revelou uma pessoa diferente, cruel e afeito aos maus tratos com seus servos. Em certa noite, tentou atacar Graciliano em seu quarto e foi aí que o brasileiro se viu obrigado a fugir. Foi assim que se deu seu recrutamento: estava no mesmo beco de mendigos e ladrões que Phillips e, bem, ali estava o pobre Graciliano nas mãos (pun intended) do ‘criativo’ Guimarães. A cartomante tinha razão…
Anestesia e algumas outras substâncias experimentais injetadas e pôs-se Guimarães a exercitar seus dons como cirurgião no moribundo Graciliano. O transplante durou um pouco mais do que o esperado por algumas complicações. Quando Graciliano começava a recobrar a consciência teve a impressão de ver o próprio demônio e deu um grito. Piscou os olhos e lá estava o sorridente Guimarães.
“- Foi um sucesso, Graciliano! Você tem uma nova mão direita!
- Nossa…obrigado, doutor Guimarães…
- A guerra pode ser uma oportunidade, Graciliano. Deus escreve o certo por linhas tortas, mas, às vezes, conseguimos desentortá-las.
- Não fale assim, doutor…
- Deixe disso. Relaxe. Você precisa de algum repouso.”
II.
Londres parecia particularmente bela naquele dia. Todos os soldados estavam cansados e aliviados. A guerra havia acabado para eles, classificados como incapazes. O próprio Graciliano, a despeito de sua nova mão, ganhou um atestado de Guimarães, muito mais interessado em que seu novo experimento fosse conhecido pela comunidade científica do que no remanejo do soldado para o front.
Graciliano foi recebido pela mãe e por uma comissão de médicos previamente avisada por Guimarães. A mão já estava quase totalmente funcional. Semanas haviam se passado e Graciliano ganhava cada vez mais confiança nos movimentos da mão. A orientação de Guimarães era a de que ele tentasse escrever, para acelerar a recuperação.
Buscou alguns livros que trouxera do Brasil e resolveu replicar alguns parágrafos.
Entusiasmado com o resultado, resolveu explorar mais sua nova mão direita.
A Europa he salva, e o bravo Wellington foi o primeiro que fez brecha na muralha que havia de fechar o Genero Humano como em hum grande e escuro Calabouço.
“Nada mal. Agora Graciliano Rosa poderá retomar seu desejo secreto de se tornar um cronista!”, pensou quase em voz alta. Neste momento, sentiu um leve tremor na mão direita.
Animado e cheio de esperança, prosseguiu:
O immenso numero dos Exercitos Francezes varias vezes espoliou ao Lorde Wellington das vantagens e fructos da victoria, mas não da mesma victoria. Talvez jámais existio outro General tão constantemente victorioso, ou que achasse as suas difficuldades tão grandes depois de vencido o inimigo.
Levantou-se e preparou um chá. Sentiu uma vontade inexplicável de escrever mais e sorriu. Voltou à mesa:
Entretanto que em Paris se representavão estas farças, A VOZ DO PIXO. RESPEITA AS MANE.
Assustado, deixou cair o lápis. Não sabia o que era ‘pixo’, nem ‘mane’. Estaria enlouquecendo? Respirou profundamente, contou até dez, pegou o lápis e retomou:
Depois da batalha de Waterloo, tendo certas informações que havião desapparecido os inculcados milhões dos guerreiros ENFODERE-SE. SE ESFREGOU, SE ESFREGOU COM OS GALÃ DE FILME PORNÔ.
Graciliano deu um grito. A mão, contudo, não o obedecia mais.
CHOQUEI! LACREI! OUSADIA NA CONTEMPORANEIDADE! EU NUNCA ABRIRIA A PORTA PARA ALGUÉM QUE DE FATO QUISESSE ENTRAR, MANO! LETRAMENTO, ACHAMENTO…
Graciliano tentava, inutilmente, arrancar o lápis de sua mão direita. Notou que ela estava cada vez mais peluda e alguns de seus dedos pareciam se juntar. Sentiu uma dor aguda e gritou. Gritou, mas seu grito não era mais uma manifestação de sua humanidade.
Tentou falar, mas não conseguiu. Seus lábios se juntaram e Graciliano caiu de quatro no chão. Não sei bem se devo chamar aquilo de Graciliano. Tinha agora uma pata no lugar da mão direita e sua roupa não mais lhe cabia. Estava inchado e peludo. De seus olhos, ainda humanos, ainda se percebia algum vestígio de uma alma. Sua aparência lembrava a de um jabuti disforme.
Sem boca, sem voz, com os olhos lacrimejando, Graciliano não tinha mais como escrever poesias, poemas ou crônicas. Sua mente parecia gritar por socorro, mas, aos poucos, o vocabulário restrito e desconexo pareceu dominá-lo. Sua humanidade desapareceu por completo. O brilho de seus olhos desaparecera. Graciliano agora era apenas um animal, sem liberdade para se expressar verbalmente, com um cérebro limitado, uma mão inútil e uma pata que escrevia, sem parar. Quando sua mãe abriu a porta do escritório, Graciliano saltou sobre ela e a despedaçou.
A literatura, os valores civilizacionais, a humanidade, tudo desapareceu sob a pata nervosa do outrora escritor Graciliano. Guimarães morreu em um ataque zulu antes de receber a notícia do fracasso de seu experimento.
Por hoje é só, pessoal e…até mais ler! (*)
(*) “até mais ler” foi plagiado do Orlando Tosetto, cuja newsletter, aliás, você deveria assinar.
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