Eu não sou um gato
E se eu fosse, estaria arranhando o seu sofá, não escrevendo isto, ora bolas!
No v(1) n(19) vamos falar um pouco da experiência de se ter felinos em casa. Não que eu seja um exímio conhecedor da psicologia/fisiologia/gostos literários dos animais (ou dos gatos, especificamente). Aliás, caso fosse, venderia livros ao invés de enviar textos para os assinantes. Além disso, falo brevemente de um filme que, na era pré-vamos-censurar-tudo-porque-somos-empoderados, era polêmico (e despertava debates). Hoje, sob olhares ternos e aprovadores de alguns, seria cancelado.
Eu não sou um gato - Sofia chegou por aqui em Abril do ano passado, no início do trabalho remoto no qual podemos trabalhar de casa (eba!), mas não podemos ir ao churrasco dos amigos (ohh!). Ao contrário dos que já tinham gatos em casa, ela chegou já com a presença, portanto, constante dos donos. Foi assim que ela se habituou a nos ver.
Agora, quase um ano depois, veio a Juju, mais nova, invadindo a casa conquistada pela filha única. Chegou no último sábado. Diziam que seria bom porque as duas brincariam (uma tem uns 2 a 3 anos e a outra, pouco mais de 1 ano de vida). Seria um alívio para quando sairmos de casa (embora ninguém saiba exatamente quando vamos sair de casa).
No primeiro dia, para minha surpresa, Sofia se afastou. Não brigou pelo seu território. Abandonou a sala (pode ser uma estratégia militar prevista em algum A Arte da Guerra de Sun Tzu para Gatos). Talvez esperasse que Juju fosse uma visitante provisória. Só sei que estranhei muito tudo isso.
Já no segundo dia, os encontros se tornaram mais constantes. Ante a desenvoltura da nova moradora, o incômodo de Sofia aumentou. Sofia podia ser encontrada em posição de tocaia em diversos pontos da casa. Sempre pronta para rosnar e brigar. Alguns incidentes foram registrados.
No terceiro dia, o conflito já lembrava a guerra de trincheiras (sem direito a comemoração no Natal). Eu já não distinguia entre o que poderia ser uma tentativa de paz e uma cilada. Os conflitos do dia anterior, agora, pareciam menores. Cheguei a pensar numa tentativa de suicídio ingerindo todo o conteúdo de uma caixa de Neosaldina.
Quarto dia: a rotina da relação conflituosa seguiu aleatória. O conflito, contudo, diminuiu. Tivemos que nos ausentar de casa pela manhã. Eu voltaria primeiro para casa. Minha imaginação foi para o espaço. Imaginei um cenário apocalíptico em meu retorno. Como naqueles ótimos filmes pessimistas dos anos 70. Seria como em Logan’s Run, só que sem a cidade dos domos. Ou como em Omega Man.
O fato é que, ao chegar em casa, encontrei os dois solitários exércitos em estado de sono quase absoluto. Juju ocupava uma cama instalada em um móvel da sala e Sofia estava na cama de casal (seu último refúgio, aliás). Depois do almoço, alternei alguns momentos perto delas e sozinho. O que vi? Juju sempre parecendo chamar Sofia (ou a mim) e Sofia calada.
Até que, em certo momento, após todos estes dias, Sofia me chamou. Fui até o quarto. Ela brincou um pouquinho (quase nada) comigo. Deitou-se. Começou aquelas longas piscadas que gatos usam para, supostamente, comunicarem-se. Aos poucos foi adormecendo. Quando a deixei, não olhei para trás. Queria manter a imagem dela dormindo com toda a tranquilidade que nenhum de nós havíamos tido nos últimos dias.
A história não terminou. Sobre este tema do convívio entre gatos (quase digo que aceito pix), aceito dicas.
Eu sou um gato - O clássico de Natsume Sōseki não é um livro de leitura fácil, principalmente para distraídos como eu. Mas gostaria de destacar a tecnologia de produção usada na criação do romance. Conforme Souza (2011), aprendi que Sōseki substituiu o lendário Lafcadio Hearn na cadeira de Literatura Inglesa na tradicional Universidade Imperial de Tokyo (a famosa Tōdai).
A versão inicial era apenas um conto, submetido a uma reunião literária (chamaríamos, talvez, de um grupo de leitura). Tendo recebido elogios, foi-lhe sugerido estender a história. Sōseki não teria acatado a sugestão de imediato mas, depois, resolveu transformar o conto no livro que viria a ser um dos maiores clássicos da literatura japonesa.
Há várias formas de se chegar a um produto final como livros ou filmes. Este pequeno relato da tecnologia de produção envolvido em Eu sou um gato é daqueles no qual você lança um piloto, submete-o a um grupo de pessoas, colhe as impressões e considera se altera algo ou não. Não é tão estranho assim, não é?
Obviamente, nem sempre a forma de se produzir um livro é se trancar em um quarto e sair dali apenas quando se está satisfeito. Nunca pesquisei sobre o tema, mas imagino que alguém já tenha dissertado sobre os diversos modos de se produzir um livro, neste arcabouço mais microeconômico de tecnologia, função de produção, insumos etc.
p.s.1 - Já disse em várias ocasiões que, ao contrário da maioria das pessoas, cheguei a Sōseki por conta do divertido Botchan. Em algum momento, no início dos anos 80, numa sala de cinema que hoje não deve existir mais numa agência do extinto Banco Nacional, em Belo Horizonte, assisti a uma adaptação desta divertida história do irascível professor do ensino médio e suas desventuras no interior do Japão. Sendo nosso mercado editorial pouco diversificado na época, lá pelo início dos anos 2000 é que consegui uma versão em inglês do livro. Anos depois, seria lançado em português (você o encontra facilmente agora).
p.s.2 (não confundir com o jogo) - Um livro bonito de se folhear é o Cats in Ukiyo-e - Japanese Woodblock print of Utagawa Kuniyoshi. O autor é Nobuhisa Kaneko. Trata-se de bela edição bilíngüe (japonês/inglês) da PIE International, 1a edição de 2012.
Lamento muito - Nos longínquos anos 80/90, assisti, em um cineclube da vida o polêmico O Porteiro da Noite, dirigido por Liliana Cavani. Nestes tempos atuais, em que a revolução cultural de Mao Zedong venceu a civilização e a ordem é cancelar fulano, eu me pergunto quantos teriam estrutura mental para assistir ao filme sem tocar fogo no cinema, exigir cancelamento ou que o diretor do filme seja queimado vivo.
Assistir ao O Porteiro da Noite é, de certo modo, tão difícil quanto assistir Saló: 120 dias de Sodoma do famoso Pasolini. Em termos da política de cancelamento tão querida dos netos (ou bisnetos) da Revolução Cultural, imagino, restaria incólume apenas o filme do italiano sendo encaminhado para a fogueira o de sua compatriota.
Lockdowns funcionam? - Excelente - e longo - texto do Astral Codex Ten (deste mesmo Substack.com) sobre o tema.
Vacinas não vencidas. Seriedade, sim - A propósito de tema relacionado (ao da pandemia), o Pedro F. Nery jogou a pá de cal no episódio que agitou as redes sociais nos últimos dias: o da falsa história das vacinas vencidas. A matéria só seria corrigida dias depois. Minha solidariedade vai aos servidores municipais e estaduais que trabalham na área da saúde e que sofreram ataques e acusações injustas e aos jornalistas que desenvolvem um trabalho sério e que viram sua reputação sofrer com episódio tão deplorável. Também me solidarizo com os potenciais entrevistados (economistas e outros cientistas) que não se curvaram ante à remota possibilidade futura de uma entrevista (ou outros benefícios) e apontaram, corajosa e sensatamente, os problemas da tal reportagem.
Um tema para futuro desenvolvimento por aqui… - A despeito do que dizem por aí, a demanda pelo uso da “ciência” em políticas públicas não está em alta na sociedade (embora exista um não-desprezível contingente de interessados nisto). A demanda pelo uso político de evidências científicas, esta sim, nunca foi baixa. O episódio mencionado anteriormente é um óbvio exemplo disto.