Emporiofobia: o medo da cooperação com estranhos (que você precisa perder)
O medo dos mercados é um problema sério para o qual ainda não há uma vacina com 100% de eficácia. É uma herança evolutiva que precisa ser vencida, para seu próprio bem.
Você ainda acha que uma economia de mercado é sinônimo de um inferno dantesco em que as pessoas são escravas-zumbis-robotizadas numa fábrica como aquela do filme de Charles Chaplin, Tempos Modernos? Pensa que o neoliberalismo é o bicho-papão que irá transformar todos em escravos de uns poucos endinheirados que dominarão o mundo pelas redes sociais (provavelmente criando plataformas maquiavélicas como o Substack)? Então você precisa ler esta newsletter na qual proponho a tradução de um livro. Ou talvez precise de um remédio tarja preta. De qualquer forma, já estamos no v(1), n(14) e seguimos a todo vapor.
The Capitalism Paradox: How Cooperation Enables Free Market Competition de Paul H. Rubin deveria ser traduzido? Sem dúvida! Este ótimo livro, em português, ajudaria muito num bom curso de História do Pensamento Econômico ou mesmo em um de Introdução à Economia. Talvez ajude mais em cursos que não o de Economia.
Tudo começou em 2014, quando o Southern Economic Journal publicou o discurso do, então presidente da Southern Economic Association, Paul H. Rubin. O título era provocador: Emporiophobia (Fear of Markets): Cooperation or Competition? (Emporiofobia (Medo dos Mercados): Cooperação ou Competição?). Li na época e gostei muito. Alguns amigos ouviram Emporiofobia, pela primeira vez, de minha boca.
Mas fica melhor! - O prof. Rubin elaboraria o tema com mais detalhes em seu livro publicado cinco anos depois, The Capitalism Paradox: How Cooperation Enables Free Market Competition (O Paradoxo do Capitalismo: Como a Cooperação Possibilita a Competição de Livre Mercado). Um dos temas interessantes do livro é o de que as pessoas não nascem com intuição econômica e que há bons motivos evolutivos para tal.
Eu mesmo, por exemplo, lembro de ter sido inicialmente atraído, quando jovem, para o discurso panfletário de que trocas voluntárias entre duas pessoas são sempre um ato que resulta em um ‘vencedor’ e um ‘perdedor’. Uma situação que chamamos de jogo de soma zero. Não é muito difícil perceber que o argumento é falacioso. Uma troca voluntária não pode ocorrer se ambos não ganharem com a mesma.
“Não é muito difícil perceber”? Não é o que dizem meus colegas, ex-alunos ou professores. Uns até se revoltam: você está me dizendo que meu trabalho é fácil? Olha esta prova deste aluno aqui! E a deste outro! Pensando bem, eu fui muito otimista no parágrafo anterior. Recorro a Rubin. Em certo trecho do livro (minha tradução, quase ao pé da letra), ele diz:
“Evoluímos em situações de pouca especialização e divisão do trabalho, pouco capital, baixa mudança tecnológica e pouco ou nenhum crescimento econômico. Havia alguma troca, incluindo a troca do mesmo bem ao longo do tempo e havia a possibilidade de se esquivar [das trocas]. Se houve desigualdades de riqueza significativas, provavelmente elas resultaram do fato de que alguns se esquivavam do compartilhamento. Se nossas mentes evoluíram neste contexto, os módulos econômicos inatos prevalecentes deveriam ser adaptados a esse cenário, e este parece ser o caso. Em particular, o que faltou foram módulos para compreender os benefícios sociais das trocas, do crescimento econômico, do investimento ou da inovação”. (*)
Resumindo, em um ambiente de pouca divisão de trabalho há também pouca especialização e, por consequência pouco há para se trocar. Sem falar que várias pessoas poderiam se recusar a entrar em trocas com outra pessoas. O que Rubin chama de módulos mentais poderia ser traduzido como uma visão de mundo (o tal Weltanschauung) ou o que Douglass North e Arthur Denzau chamaram de shared mental models, em um artigo de 1994.
Um ponto interessante é que, por questões evolutivas, diz Rubin, desenvolvemos um modelo mental pouco amistoso aos benefícios das trocas voluntárias. Isto não é difícil de perceber quando você se lembra de como é a evolução da história econômica ao longo dos séculos: uma longa estagnação seguida de um súbito crescimento (explicar isto é o passatempo de alguns aficcionados da área denominada Desenvolvimento Econômico).
A propósito, o gráfico anterior, popularizado por Deirdre McCloskey (uma autora que tenta explicar a virada ali do final em uma sequência de livros que ainda não consegui terminar de ler…), é conhecido como o gráfico do taco de hóquei pelo seu formato óbvio.
Com tanto tempo em uma economia estagnada (a estagnação não se limita à sua família, tribo, feudo ou cidade…), não admira que o modelo mental das pessoas tenha se desenvolvido de forma a não perceber nas trocas voluntárias um jogo win-win.
Realmente tem razão o professor de Introdução à Economia quando afirma ter dificuldades para explicar aos alunos que os benefícios do comércio. Aliás, diz o autor, em outro trecho (aqui em inglês mesmo):
Our minds are not hard-wired to be able to read. Economics is like reading: it can be learned, but it must be taught. Moreover, some aspects of economics are very difficult to understand (…).
Mas, o mais legal das trocas voluntárias (economia de mercado), como nos lembra Rubin, é a cooperação. Economistas, diz ele, falam muito de competição, mas pouco de cooperação. Trata-se de um vício a ser corrigido nas salas de aula (eu já falei que seria bom traduzir o livro do Rubin?).
A questão da cooperação, aliás, é também tema do divertido livro de Russ Roberts (já traduzido), no qual nos apresenta a visão moral de Adam Smith. Uma “lição” que apre(e)ndi do livro de Roberts é o de que há um sentido profundo para o famoso dito negócios são negócios, amigos à parte e é ótimo que assim o seja. Talvez possamos falar sobre isto em outro número desta newsletter.
De qualquer forma, claro é que não existem ganhos de bem-estar gratuitos. Alguém tem que martelar o modelo mental que abraça a prosperidade sobre a visão errônea do comércio como um jogo de soma zero na cabeça dos alunos, certo? Isto me remete a um ótimo (mas pouco conhecido) texto do Bryan Caplan, Persuasion, slack, and traps: How can economists change the world?.
Com este título otimista (pelo menos para os economistas), Caplan descreve seu argumento sobre como economistas poderiam ser mais eficientes na arte da persuasão e, portanto, do ensino (que não é só persuasão, mas dela muito se aproveita).
Em certo trecho, ele menciona uma estratégia para ensinar economia nos cursos introdutórios. Uma estratégia bem pró-ativa, aliás.
1. Destaque o contraste entre a visão popular e a economia básica em termos diretos. 2. Expliquer porque esta é verdadeira e aquela é falsa. 3. Faça isto de forma divertida. (**)
Sensacional, não? A polêmica, em si, de alguns fatos, já seria suficiente para disparar um processo de aprendizado muito mais dinâmico. Infelizmente, nem sempre é assim. A despeito do que se diz sobre uma suposta liberdade de cátedra, o que se vê nas redes sociais nos mostra que muitos dos supostos defensores desta liberdade raramente querem ser ‘agentes de sua própria mudança’.
Há até repreensões a professores (só-pode-polemizar-se-for-contra-trocas-voluntárias-senão-é-fascismo) e supostas acusações de que alguns argumentos são ofensivos (trocas-voluntárias-me-ofendem). A liberdade de cátedra só vale se eu não for micro-agredido. A diminuição da capacidade cultural dos indivíduos não aparece diretamente nos exames PISA, eu sei, mas eu a vejo andando por aí. Perdem com isto o pagador de impostos, financiador do ensino público, o jovem (por motivos óbvios) e o professor (os que realmente desejam ensinar).
Até mesmo esta dificuldade em se ensinar Economia pode ser pensada sob o argumento do modelo mental descrito por Rubin: a mente mal acostumada gera mecanismos de defesa para manter seus preconceitos. Some-se a isto mais alguns outros fatores e teremos uma figura muito próxima da dura realidade que precisamos mudar.
Mudar? Pois é, a evolução humana tem seus momentos. E que momentos! Quem não se lembra da sensação deliciosa de ter tido uma opinião alterada pela primeira vez, ali mesmo, na escola? Acho incrível o quanto subestimamos - ou não percebemos - este fenômeno sensacional.
As sugestões de Caplan, para o professor, podem ser complementadas por sugestões aos alunos. Eis a minha proposta. Não sou pedagogo, mas acho que são sugestões tão óbvias que nem deveria chamá-las de minha proposta.
(1) mantenha a mente aberta; (2) seja polemizador, mas educado (debater não é agredir); (3) mantenha o bom humor.
Será que traduzir e publicar o livro do Rubin não lhe parece, agora, quase uma obra de caridade? Ok, posso ter exagerado, mas você entendeu o ponto.
Para encerrar, duas gotas de bom humor.
Trecho maravilhoso do livro do Rubin (pense nele) - "The law of demand is exactly the opposite of the concept of need. If we really needed something, then our consumption would not respond to price changes." [The Capitalism Paradox: How Cooperation Enables Free Market Competition - Paul H. Rubin]
Meu símbolo da vacinação: a bolinha perereca amarela - Uma das minhas afilhadas faz aniversário hoje (23/06). Perguntei à mãe dela o que ela gostaria de ganhar e foi assim que fiquei sabendo de uma bolinha perereca amarela (não me pergunte o que é, não encontrei nada assim).
De qualquer forma, a impossibilidade de achar a exótica bolinha me levou às busca por qualquer brinquedo e achei uma divertida maleta de médico. Resultado: ela já abriu o presente e, até o momento, já vacinou o pai. Em breve, espero, teremos uma fila de bichos de pelúcia em seu apartamento.
Você não precisa de muito para mostrar a uma criança de 2 ou 3 anos como é divertido vacinar. Bom, no início, talvez você precise de uma bolinha perereca amarela. Ao menos seu conceito abstrato. Nunca gostei tanto de uma bolinha perereca amarela.
(*) No original: “We evolved in situations of little specialization and division of labor, little capital, low technological change, and little or no economic growth. There was some exchange, including exchange of the same good over time, and possibilities of shirking. If there were significant wealth inequalities, they were probably due to shirking by refusing to share. If our minds evolved in this situation, then current innate economic modules should be adapted to this setting, and this appears to be the case. In particular, what was lacking were any modules for understanding the social benefits of exchange, economic growth, investment, or innovation.”
(**) No original: “Highlight the contrast between the popular view and basic economics in stark terms. 2. Explain why the latter is true and the former is false. 3. Make it fun.”
Referências de artigos científicos mencionados (ou, simplesmente, “Referências”)
CAPLAN, B. Persuasion, slack, and traps: How can economists change the world? Public Choice, v. 142, n. 1–2, p. 1–8, 2010.
RUBIN, P. H. Emporiophobia (Fear of Markets): Cooperation or Competition?. Southern Economic Journal, v. 80, n. 4, p. 875–889, 2014.