Ela - Cinquenta Tons de Sinusite - O humor - O exagero da humildade - É hora de partir, Alfredo.
Antigamente, a briga das crianças era para ver quem ia se sentar na cadeira.
O v(4), n(39) chegou e, não, ele não está muito bem de saúde. Paciência.
Ela - Tocou o interfone numa tarde de sexta-feira e logo pensei: “- Sextou!”. Quando a vi, tomei-a em meus braços e a trouxe até o apartamento. Ajudei-a a se livrar das roupas mais pesadas pois, afinal, estamos em tempos de muito calor.
Fiz questão de lhe arrumar um bom lugar e ela se acomodou. Conversamos e li um pouco para ela que, por sua vez, pareceu-me - mas não sou tão bom em primeiras impressões - gostar de minha recepção. Sorri-lhe e juro que percebi uma resposta positiva por parte dela.
Acomodada em seu confortável nicho, ela, minha airfryer, estava pronta para nossas futuras aventuras a dois. Foi mesmo paixão à primeira vista.
Cinquenta Tons de Sinusite - Já vou para quase 3 meses assim. O convênio me dá uns médicos que só posso ver em seu hospital e, vá você tentar marcar um retorno: impossível em menos de um mês (na melhor das hipóteses). Cada um me deu uma receita e quase nenhum fez os exames necessários. Sim, penso em mudar de plano. Afinal, se outro cobrir exames e me der algo similar para a internação, a um preço menor, trocarei com alegria.
Até me consultar com o médico particular, foram, portanto, uns cinquenta tons de sinusite. Cinquenta, claro, dos que me lembro. Podem ter sido mais. Finalmente, parece que estou entrando em um processo de melhora. Os karaokês que me esperem.
Neste período estive em São Paulo para assistir ao grupo Abeya de música folclórica e, claro, não pude cantar. Contudo, sua apresentação foi tão bonita que, falando com um deles, destaquei que, por incrível que pudesse parecer, não me sentia frustrado. A cada música eu, mentalmente, cantava e era como se a voz estivesse saindo pela minha boca. Obviamente, não é a mesma coisa e eu gostaria de estar cantando em voz alta com todos. A lição é que nem sempre a desgraça é tão ruim quanto parece.
Em breve, caro leitor. Em breve…
O humor - Talvez meu humor seja mesmo muito peculiar. Não condeno quem não me entende. A iluminação não vem para todos. Reze e se esforce muito que um dia você consegue me entender. Não é difícil, mas a beleza infinita só é alcançável com muito sacrifício.
O exagero da humildade - Não era raro que se sentisse o mais ínfimo dos mortais. O cuidado necessário com a humildade faz com que muitos de nós, vez por outra, entremos neste buraco depressivo de uma humildade excessiva. Com Stanislaw não era diferente. Acostumado com o mundo da pesquisa desde criança quando ganhou um laboratório, cresceu olhando o mundo com os óculos (ou as lentes, tanto faz) de um pesquisador.
Veja bem, eu disse pesquisador, não influenciador. Stanislaw não saía por aí tratando a Ciência como uma religião, cheia de verdades absolutas (e, portanto, tratando os discordantes como pecadores para os quais nem sempre há perdão). Não senhor, ele fazia questão de frisar que o que a Ciência gera são consensos mais frágeis do que acreditam aqueles que nunca fizeram uma pesquisa na vida (inclusive os que apenas leem sobre a ciência).
Stanislaw sabia a diferença entre ser humilde e ser capacho para aproveitadores disfarçados de cientistas, estando sempre atento para evitar as armadilhas que as vaidades humanas criam. Obviamente, esta atenção toda, este cuidado com os detalhes, tomavam-lhe muito tempo e, vez por outra, ele caía nestas depressões.
Você imagina como eram, não? Geralmente começava do nada, sem gatilhos. Bastava que Stanislaw estivesse apreciando o céu, lendo um livro ou tomando café. O sentimento de humildade excessiva - ou de inutilidade - vinha como um raio e se apossava de todo o coração do humilde pesquisador, jogando-o em um oceano de pensamentos tristes, nos quais se via como alguém que não sabia nada de nada. A humildade epistemológica se transformava na depressão sistêmica. Tudo lhe parecia melhor que ele próprio. Evitava até olhar para as lapiseiras em cima de sua mesa.
Stanislaw nunca venceu estas depressões. Apenas as administrou como pôde. Morando só, tentava conversar com algum conhecido - a internet, neste sentido, era-lhe muito útil. A plataforma mais popular que tinha era o tal X, muito popular entre seus amigos (também entre seus inimigos). Ali conversava com um ou outro amigo.
Seu suicídio se deu uma semana após o avanço do autoritarismo no país proibir-lhe o acesso à plataforma. O governo do Turcomenistão causou sua morte. Os responsáveis nunca foram presos porque, sabe como é, autoridades cometem crimes impunemente no Turcomenistão. “São um bando de facínoras sustentados por impostos!”, dizem os mais altivos membros da oposição do país que ainda não foram presos e que também não são lá tão oposicionistas assim.
Pobre Stanislaw, ele só queria pesquisar e viver feliz.
É hora de partir, Alfredo - Alfredo Garcia teve uma vida como a de outro qualquer: cheia de altos e baixos. Teve, por exemplo, bons pais. Imperfeitos, mas bem-intencionados que, convenhamos, é o que importa no final. Pelo menos é o que ele sempre pensou. Aliás, é o que todos pensavam. Não só na família dos Garcia, mas também entre seus vizinhos, os vizinhos dos vizinhos, a sociedade, enfim, em geral.
O passado, sabemos todos, importa menos do que o futuro, para aqueles que precisam trabalhar para sobreviver. Legado, história, enfim, isto existe para quem pode desafiar o status quo sem custos significativos. Em uma sociedade realmente livre, estes custos são baixos para todos. Na sociedade em que vivia Alfredo Garcia, não.
Sua trajetória de vida foi como a de muitos: pais pobres, muito estudo e, depois, muito trabalho. Alfredo Garcia tinha lá seus talentos e conseguiu seguir em seus estudos, concluindo o curso de Filosofia na universidade, o que foi motivo de orgulho para todos, menos para ele, que, como disse um grego famoso, sabia que tudo o que sabia era que nada sabia. Daí para o mestrado foi um passo.
O sofrimento do mestrado lhe serviu de lição. Após sua dissertação sobre Hegel, Alfredo começou a lecionar porque achava importante e interessante repassar o conhecimento enquanto se desenvolvia mais com suas pesquisas. Na verdade, o próprio ato de ensinar, acreditava, ajudava muito na pesquisa. Os colegas nem sempre concordavam com ele, mas, de tanto acreditar, acabou mesmo melhorando suas pesquisas (e suas aulas). Coisa de filósofo, né?
Por um tempo, aquilo lhe pareceu ser suficiente, mas Alfredo notou que a cultura dos diplomas avançava no país que entendeu um pouco diferente do que ele a moral de O homem que sabia javanês. Como já gostava do que fazia, partiu para o doutorado, esperando mais sofrimento (o que, de fato, aconteceu). O tempo de tortura durou menos porque alguns de seus créditos do mestrado foram reaproveitados.
Findo o doutorado (cuja tese, claro, versou sobre hegelianices), voltou à sala de aula e às suas pesquisas, tentando casar sua oferta de conhecimento à demanda média dos alunos que, geralmente, em uma sala de aula, possui variância elevada. Nunca foi fácil, mas Alfredo Garcia não se entregava e buscava sempre inovar nos métodos de trabalho. Ora criava notas de aula, ora apostilas com perguntas para estudo (algumas até com respostas…e sobre Hegel!!!) e buscava criar atividades diferentes para enfiar na cabeça dura dos alunos mais resistentes os conceitos básicos de suas disciplinas.
Como tudo na vida - na sua também, né, leitor? - algumas experiências deram certo, outras nem tanto e, finalmente, algumas foram um fracasso. Alfredo Garcia se sentia responsável por melhorar, ao menos, um pouco do mundo, por meio de suas aulas. “Um sujeito melhor preparado para o mercado de trabalho é sempre um acréscimo valioso”, pensava.
Ajudava muito que a direção da casa padronizava as regras para todos os professores, dando suporte não só a Alfredo, mas a seus colegas, em seu trabalho de ensinar, adicionar valor ao aluno e avaliá-los, preparando-os, pelo menos em parte, para as avaliações da vida.
“O tempo é o senhor da razão”, já disse uma camisa do ex-presidente Fernando Collor (na verdade, o ditado é mais antigo, mas o marketing do político era muito bom) e, assim, o tempo passou trazendo consigo mudanças as mais variadas possíveis, fruto de uma combinação complexa de fatores que vão desde os genéticos até as crises externas ou os modismos da intelectualidade.
Talvez fosse mesmo o tempo o senhor da razão. Ou da Razão, para os hegelianos. Aliás, Hegel talvez dissesse a Alfredo Garcia que os conceitos mudam (para ele, evoluem…mas quem disse que ele tem razão (minúscula) sempre?) e que, deste modo, os tempos mudam de uma forma mais sutil do que imaginamos eu e o leitor.
Alfredo Garcia começou a perceber, aos poucos, que, se havia um conhecimento absoluto hegeliano, talvez ele fosse o oposto do que sempre havia imaginado. Respeito aos pais? Piscou os olhos nos anos 90 e, em 2020, este conceito é quase o inverso. Alfredo via isto na maioria das famílias - não em todas porque, como já dizia Hegel, o processo não é perfeito e leva tempo (que, eu já disse, é o senhor da razão?).
Aos poucos, até educadores pareciam inverter os conceitos em que ele sempre havia acreditado. Tudo o que ele havia feito, desfeito o véu da ilusão que lhe parecia, agora, ter sempre existido, parecia-lhe garantir o insucesso total. Saber muito sobre um tema e incentivar a leitura? De algum modo, agora, isto não lhe parecia razoável e, provavelmente, iria levá-lo à ruína.
Estudar e ler por si só, bem, não era mais um mérito, mas ‘um problema seu’. E daí que você gosta de ler? Colocar limites em crianças? Não, isto só vai criar crianças responsáveis e educadas e o que precisamos, veja bem, é de ‘espíritos livres’. Até mesmo pedir silêncio em sala passou a ser visto como um ponto negativo. Afinal, que bom professor é este que pede silêncio em sala incomodando os alunos em sua dinâmica busca pelo conhecimento verdadeiro, encontrado ali, no chão?
A sensação, para Alfredo Garcia, é que o mundo que se escondia do outro lado do véu que o cobrira por anos era muito diferente daquele em que viveu. Não tendo um cargo importante, Alfredo só podia seguir em frente, tentando modificar seu modo de lidar com a sala de aula, com os vizinhos, com os colegas de trabalho, com os pais etc. O fantasma de Hegel - ou pelo menos da visão simplificada de Hegel que ele imaginava - o perseguia. Quem mandou estudar Hegel?
Noite sim, noite não, acordava no meio da madrugada, com pesadelos acerca de Hegel e de suas escolhas que, até então corretas, agora pareciam-lhe dialeticamente erradas. Alguns amigos até tentaram ajudá-lo, mas nem com campanhas de setembro amarelo as coisas pareciam melhorar para Alfredo Garcia. O mundo em que ele vivia não era mais o seu. Os pais, velhos, não o ajudavam muito pois eles também viviam em um mundo anterior e a fenomenologia do espírito hegeliana é sempre implacável com idosos, já disse alguém (ou serei eu o primeiro a dizer?).
Os dias se tornaram mais cinzentos - as queimadas criminosas, aliás, ajudaram - e Alfredo Garcia, só, fazia seu apreço pelo mundo. “O tempo é o senhor da Razão, não da razão”, repetia o tempo todo, em voz baixa, como se entoasse um mantra. As instituições que se acham ‘progressistas’ deixavam-no com menos válvulas de escape, aumentando seu estresse diariamente. Alfredo Garcia, outrora um defensor das liberdades, era agora um fascista por…defender as liberdades.
Alfredo Garcia era um combatente, não porque tivesse uma causa. Não, isto ele já havia abandonado há anos. Lutou até o fim pela sua qualidade de vida (que parava quando começava a do outro…embora, paradoxalmente, aumentasse com o aumento da dos outros). Cedendo aqui e ali para viver e, depois, para sobreviver, viu-se despido de qualquer orgulho, alegria ou satisfação. Suas pesquisas sobre Hegel foram parando e suas aulas de Filosofia perderam conteúdo até se tornarem quase um storytelling de um card só. Como Klaus Maria Brandauer em Mephisto, Alfredo estava finalmente despido de qualquer sensação de bondade ou de amor.
Em um último ato de amor para consigo mesmo, em uma noite sem nuvens de um final de semana prolongado, arrancou a própria cabeça com uma faca afiada. Seu sangue decorou a parede atrás da cama imitando uma pintura moderna, sem formar nenhum desenho ou palavra que pudessem ser interpretadas poeticamente por alguém, em algum futuro. Não. Apenas manchas de sangue desconexas e, alguns dirão, também tristes.
Em sua queda, já decepado, sentiu seu cérebro perder a capacidade de raciocínio rapidamente à medida que o sangue se espalhava pela cama, pela parede e pelo chão. Sua última visão? Ninguém sabe qual terá sido. Talvez a do seu caderno de anotações ou a de seus vários livros sobre Hegel sobre a mesa. Não se sabe o que sentiu Alfredo Garcia neste ato radical e derradeiro.
Durante dias a cabeça e o corpo permaneceram ali, em putrefação atraindo moscas que não se recusavam a subir alguns andares até a janela de seu apartamento. Estas moscas, ao contrário das que o levaram até ali, experimentaram um pouco de sua carne e sangue. Quando descoberto, dias depois, sua mãe apenas fez um pedido: “- Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia”.
Tudo o que ele produziu, os livros que comprou, suas anotações, álbuns de fotos e peças decorativas foram guardadas em caixas e enviadas para o sítio da família, no interior.
Por hoje é só, pessoal e…até mais ler! (*)
(*) “até mais ler” foi plagiado do Orlando Tosetto, cuja newsletter, aliás, você deveria assinar.
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Oi Shikida, espero que você esteja bem!
vou denunciar o post para a autoridade máxima do Brasil por tortura de bebês só pela foto