Doutor Palhinha (en)contra o Homoim
Crossover incrível! Preço desta edição: R$ 0.00 no Sistema Solar
Extra! Extra! Dois universos (ou seriam três?) colidiram! O desta newsletter e o da coluna do Polzonoff. A bem da verdade, estou usando o doutro Palhinha do universo do Alexandre Soares Silva aqui, o que nos dá um inédito crossover como jamais visto.
<aplausos, aplausos>
Paulo Polzonoff criou uma liga de heróis (ou seriam anti-heróis?) que agradariam aos contaminados pelo vírus do politicamente correto. Fiquei sabendo pelas redes sociais, claro.
Também chamado de Homoim (Homem Moralmente Imaculado), o Supercancelador é um herói anão que usa os poderes do anonimato e da covardia para cancelar todos os que dizem coisas que o desagradam. Seu arqui-inimigo é a dupla Fato & Bom Senso. E não se pode nem aventar a hipótese de, na verdade, o Supercancelador ser um vilão, e não um herói. Porque quem disser isso estará sendo racista e homofóbico, e corre o risco de ser supercancelado por esse superanão moral.
Claro que os leitores desta newsletter, conforme minha imparcial opinião, adorariam ver o embate entre doutor Palhinha e Homoim. Fiz aqui um survey com amostra de 2 mil assinantes (parte deles reside na quinta dimensão) e não deu outra. Fiz umas estimações e testes de robustez e o resultado persistiu: todos querem ver o embate entre eles.
Assim, aí vamos nós!
Doutor Palhinha (en)contra o Homoim.
Mais uma tarde quente Taubaté era interrompida com uma refrescante chuva. Não um temporal, mas uma chuva breve. Diria que teria durado uns 30 minutos, sem destruir árvores, calçadas ou pontes.
De seu gabinete, doutor Palhinha admirava a paisagem. Tinham sido díficeis os últimos dias. Não só pelo calor intenso, mas pelo inusitado do caso que passo a relatar a seguir.
Em plena tarde de segunda-feira, doutor Palhinha se preparava para sua soneca do meio-dia. Estirado no sofá, barriga à mostra e com jornal cobrindo-lhe o rosto: eis como se encontrava nosso herói quando o telefone, para sua tristeza, tocou.
‘- Alô, doutor Palhinha!
- Alô.
- É o Palhares.
- Oi primo! Tudo bão?
- Bão!
- Você sabe que eu tava na minha hora, né?
- Sim, sei. Desculpa. Mas é importante. Preciso que venha aqui na delegacia.’
O sargento Palhares trabalhava na 13a Delegacia de Polícia, em uma cidade próxima, o que lhe facilitava fazer umas consultorias informais, de quando em vez, ao seu famoso primo.
‘- Ilustre sargento Palhares!
- Digníssimo doutor Palhinha!
- Primo, eu lhe trouxe aqui uns picolés…
- …de milho verde, claro! Obrigado!
- Nada. Mas o que houve?
- Bem, bem, vem cá, primo.’
No fim do corredor central da delegacia, na sala de interrogatório, encontrava-se um suspeito de aspecto sorumbático. Aparentava ser um cidadão comum, de classe média. À sua frente, sobre a mesa, um livro de encadernação luxuosa. Esta era a visão dele por detrás do falso espelho que separava os dois primos do suspeito.
‘- Ué, primo, quem é este?
- Pois então, primo. Este é o senhor Marigoela. Mexe com cinema.
- Ah, então deve fumar baseado…
- Sim, sim. Mas não é por isso que está aqui.
- Já desconfiava. Policial é sempre descuidado…
- Primo, já falamos sobre isso...
- Ah sim, continue.
- Bem, tá vendo aquele livro?
- Sim, claro.
- O senhor Marigoela deu com o livro na cabeça de outro cidadão.
- Qual o nome do livro?
- É uma biografia de Luis Gama.
- O sujeito lá da abolição?
- Este mesmo.
- E em quem ele bateu?
- Ah, pois é. Aí é que está o problema.’
O sargento Palhares puxou seu primo para o canto da sala.
‘- É o seguinte, primo. Cê já ouvir falar do Homoim?
- O anão?
- Este mesmo.
- O que tem ele?
- O sujeitinho estava na cidade. O tenente Montebranco, que é um sujeito muito dado às burocracias e detalhes…
- Ah, aquele seu amigo esquisitão que nunca anda com mulheres?
- Este, mas pode parar que ele é meu chefe!
- Tá bão.
- Então, eu dizia…ah sim, o tenente resolveu que iria chamar o Homoim para ajudar a desvendar um crime que aconteceu durante as filmagens de um documentário sobre Luís Gama que usava a nossa cidade como locação.
- Entendo. E o que era foi este crime?
- Um dos atores foi agredido. O Vagner. Vagner Medeiros.
- Aquele famoso das novelas?
- Este mesmo.
- O que o branquelo fazia no filme do Luís Gama?
- Ah, ele fazia o papel do Luís Gama.
- Hein?’
Doutor Palhinha já havia visto de tudo na vida - e também nas novelas e telas de cinema - mas nunca lhe ocorreu ver um ator branco, quase albino, como Vagner Medeiros, fazer o papel de Luís Gama.
E o que havia acontecido? Sim, o senhor Marigoela, um pacato cidadão de bem, ardoroso fã de Luís Gama, passava pela rua onde se gravavam algumas cenas quando, subitamente, correu em direção ao famoso ator e deu-lhe com a bela encadernação (capa dura) de Luís Gama na cabeça.
O ator, conhecido por sua implicância, fez um escarcéu digno de Neymar caindo em campo na Copa do Mundo de 2014 e denunciou o senhor Marigoela por crime de racismo, homofobia e uso de biografias como arma branca (uma modalidade nova de crime, segundo sua própria imaginação).
Diante da delicada situação, o tenente Montebranco resolveu pedir ajuda ao famoso Homoim que, em nome da justiça social de tudo que é politicamente correto, atendeu ao chamado rapidamente, após cancelar seis humoristas e um filósofo no Twitter.
‘- Mas primo, não há o que descobrir aqui. Foi tudo em flagrante.
- Eu sei. Mas o problema não é o senhor Marigoela ter dado com o livrão na cabeça do atorzinho.
- E qual é o problema?
- O problema é que o Homoim tá dificultando o nosso trabalho.
- Como assim?
- É que o seu Marigoela é um sujeito pacato, sem antecedentes. Passar um dia na delegacia, tudo bem. A gente entende. Os advogados já concordaram que foi tudo um mal entendido e concordam que o seu Marigoela já pagou por seu ato irrefletido. Mas o Homoim insiste que o seu Marigoela deve ser condenado à prisão perpétua e cancelado.
- Esse anão aí é meio ruim da cabeça, né?
- Por isso eu te chamei, primo. Acho que talvez você consiga me ajudar neste caso.
- Ó, mas será um prazer. Chama o besta aí que eu resolvo isso.’
O sargento Palhares levou, então, nosso famoso investigador, para a sala do tenente Montebranco que, aliás, não estava na delegacia pois investigava uma ocorrência na periferia. Sentado em sua cadeira estava o famoso super-herói.
‘- Ué, cadê o Homoim, primo?
- Eu estou aqui, seu preconceituoso!
- Ah, é que não te vi, hominho…
- Como ousa! Seu fascista! Vou te cancelar…
- Não, não ‘fascio’ nada, não. Só investigo, seu Homoim.
- É DOUTOR Homoim, prá você. E, a propósito, quem é este homem, Palhares?
- Sargento Palhares! E este é o famoso investigador, o doutor Palhinha.
- Doutor Palhinha, de Taubaté, a seu dispor, seu Homos….
- Homoim!
- Isso, desculpa. Seu Homoim.’
Após esta pequena confusão, Palhares puxou uma cadeira para seu primo e sentou-se sobre a mesa do tenente. Iniciou-se então tensa conversa.
’- Olha, seu Homoim, eu queria agradecer muito por sua ajuda com o caso do seu Marigoela, mas…
- Não tem ‘mas’, Palhares! Ele foi racista! Agrediu um eurodescendente meio amamelucado com uma biografia Luís Gama de capa dura! Que parte do termo ‘injustiça social’ você não entendeu?
- Já discutimos isso, Homoim. Os advogados já concordaram que ele pagou com uma noite na delegacia. Deixe disso…
- Você pode esquecer, Palhares. Você, o Vagner, o tenente Montebranco, mas eu não. Eu vivo para corrigir estes crimes que vocês cometem com seus preconceitos todos os dias!
- Que preconceito, seu Homoin?
- Seu Palhinha, a conversa não chegou na roça ainda!
- Entendo, seu Homoin. O senhor está dizendo que me vê como um ignorante investigador, né?
- Sim, não…bem, não é isso. ‘Defund the police!’ Cancelem os fascistas!
- O senhor sabe, seu Homoin, muito anão é meio invocado. O senhor é um. Por isso fica tão nervoso. Agora, por exemplo, acabou de me discriminar. Segundo seu próprio raciocínio, devo lhe dar voz de prisão.
- O quê?? Eu apenas disse que ‘a conversa não chegou na roça’…
Neste momento, com um largo sorriso, o sargento Palhares levou a mão às algemas que carregava na cintura quando Homoin se jogou aos seus pés implorando por perdão.
‘- Não façam isso comigo. Não fiz por mal. Sou um super-herói, tenho um nome a zelar. Preciso cancelar uns acadêmicos aí…
- Uai, seu Homoim, o senhor não quer manter o seu Marigoela preso para sempre?
- É diferente, ele bateu com um livro em um ator famoso e influente, um ícone da bondade…
- E o senhor menosprezou as origens do meu primo, né? Que vexame…
- Não foi bem assim, vejam…olhem o que já fiz até hoje. Nunca contei uma piada de português, de judeu ou de caipira…
- Mas veja, esta sua implicância com o seu Marigoela... O senhor não percebe?, disse doutor Palhinha, tirando um charuto o bolso.
- Perceber o quê?
- O senhor só quer prejudicar o seu Marigoela por ele ter um metro e oitenta de altura.
- O senhor chamou meu primo de caipira?
- Ah, bem, não eu quis dizer uma pessoa com necessidades urbanas especia…
- Sei, sei.’
Naquele instante, Homoin se deu conta de que, em sua luta por justiça social custasse o que custasse, havia perdido, em algum lugar do caminho, sua humanidade. Esquecera o fato mais óbvio de que, se fora feito à imagem e semelhança de Deus, não era o próprio.
Entristecido consigo mesmo, assinou uma declaração retirando as acusações contra Marigoela e já saía da 13a delegacia pensando se cancelar no Twitter quando sentiu a mão amiga do doutor Palhinha sobre seu ombro direito.
‘- Fica assim não, seu Homoin. Ninguém é perfeito.
- Eu fui uma pessoa horrível…
- Deixa de ser fresco, Homoin. Vamos ali no boteco do Tijuca que eu te pago um misto quente. Palhares, Palhares! Vem cá. Vamos fazer um lanche!’
Homoin, o sargento Palhares e o doutor Palhinha sentaram-se à mesa e pediram uma cerveja e uma porção de carne de sol com mandioca. Aos poucos, Homoin conseguia sorrir, mas sem aquele sentimento de vingança que, agora, parecia-lhe sem sal...
Na calçada oposta, o recém-liberto Marigoela topou com três meninas pulando corda e, carinhosamente, tocou a cabeça de cada uma delas com a biografia de Luís Gama. Homoin quase teve uma recaída e se preparava para levantar, achando que havia, ali, um ato de violência.
Mas, com sua humanidade em recuperação, seu coração se encheu de alegria. Optou por virar mais um copo de cerveja com seus novos amigos. Horas mais tarde, os três ainda podiam ser vistos no boteco do Tijuca, assistindo ao jogo do Bragantino com o Palmeiras.
FIM
p.s. Não, leitor, ninguém sabe a cor da pele do seu Marigoela. Curioso, não?
No próximo número: Doutor Palhinha, os Argonautas e o Mistério do Colosso de Rhodes (não, não, tô brincando).
Links - Doutor Palhinha é criação do Alexandre (a newsletter está aqui). Uma ótima ilustração do doutor Palhinha foi feita pelo Krahô) e o Polzonoff criou o Homoim (ele tem uma coluna aqui). Eli Vieira fez uma ilustração do Homoin (assine a newsletter dele).