Doutor Palhinha e o Roubo do Dragão de Jade
E nem tem clã das adagas voadoras. Nem Shaolin, nem 12 homens de aço, nem mesmo monges à prova de balas...
No v(2), n(7), Doutor Palhinha enfrenta um novo desafio em Doutor Palhinha e o Roubo do Dragão de Jade. Espero que goste!
Doutor Palhinha e Roubo do Dragão de Jade
I.
O bairro da Liberdade é exótico e cheio de mistérios (porque, sabe como é, oriental e mistério são termos inseparáveis…). Centro de turismo, local de vários restaurantes e bons karaokês, o bairro é uma pequena Ásia. Japoneses, chineses e coreanos dividem as atenções dos turistas com suas lojas coloridas cheias de produtos exóticos.
Sim, este é o bairro da Liberdade, parte asiática igualmente desvairada da paulicéia. Cenário ideal para…um crime. Sim, meus amigos, um crime. Aconteceu há alguns anos e não foi muito notado pela imprensa, sequer pelos enigmáticos jornais escritos em japonês, chinês ou coreano. Falamos do caso do dragão de jade, uma rara estatueta pertencente a um colecionador, o senhor Ngô (吳), um vietnamita que vivia em um raro sobrado em certa rua do bairro.
O senhor Ngô era um dos raros vietnamitas que sempre era confundido com japonês, chinês ou coreano. Veio ao Brasil com nada mais que dois dólares, um saco de roupas e uma pequena estátua, um dragão de jade, daqueles orientais, que mais se parece uma serpente, relíquia da família.
O vietnamita era bom de trabalho. Incansável, não foi difícil notar a melhoria de sua vida ao longo dos anos. Quando se casou com Joaquina, em 1955, já tinha uma pequena fortuna obtida com duas lavanderias e uma pastelaria.
Foi numa noite fria e chuvosa de 1967 que Ngô se assustou com o barulho de vidro quebrado. Pegou um bastão de treino que usava em suas aulas de karatê e correu para a sala onde encontrou a janela arrombada e deu pela falta de sua preciosa estátua.
Desesperado, Ngô vociferou contra tudo e contra todos. Xingou brasileiros, italianos, japoneses, chineses, enfim, todos que, em seu desespero, poderiam ter hábitos culturais perversos que explicariam o roubo de seu querido dragão.
Joaquina, para sua sorte, era uma esposa muito dedicada e, melhor ainda, taubateense. Assim, não foi difícil fazer contato com o grande doutor Palhinha, um investigador já conhecido deste leitor.
II.
Do ocorrido passaram-se uns poucos dias. Nos primeiros, Doutor Palhinha conversou com o casal e viu-se diante de três suspeitos, todos pertencentes à comunidade asiática. Em poucas horas, estavam todos na sala do sobrado do sr. Ngô. Antes que o leitor pergunte, eis uma breve apresentação dos mesmos.
Primeiro, o coreano, o sr. Ii (季). O senhor Ii vivia de vender pimentas. Comerciante pobre, conhecia o sr. Ngô pois foi, durante muito tempo, cliente assíduo de uma de suas lavanderias. Foi, porque, certo dia, discutiu ferozmente com um funcionário por conta de uma confusão envolvendo suas camisas havaianas com as de outro cliente. Desde então, jurou que iria se vingar do sr. Ngô.
O segundo suspeito era um japonês, o sr. Suê (季). De rosto sempre carrancudo, o senhor Suê trabalhava durante todos os dias da semana. Dono de uma pastelaria de relativo sucesso, em todas as manhãs fazia ginástica com alguns colegas na praça do bairro. Foi lá que conheceu o sr. Ngô, também um entusiasta da ginástica matinal. Numa pacata manhã, os dois discutiram por uma discordância acerca da ordem do desenho dos traços de um ideograma de um calendário pendurado na pastelaria do japonês. Desde então, jurou que iria se vingar do sr. Ngô.
O terceiro suspeito era o senhor Ji (季). Oriundo de Shanghai, o chinês era fumante inveterado. Dono de lavanderia, gabava-se de ter os menores preços (e os maiores lucros) de todo o bairro. Conheceu o sr. Ngô em uma negociação com fornecedores de sabão em pó e a disputa pelo menor preço foi ganha pelo vietnamita. Para o sr. Ji, aquilo foi muito humilhante. Desde então, jurou que iria se vingar do sr. Ngô.
Ali estavam todos na sala do sr. Ngô, diante da janela quebrada. Havia um óbvio mau humor na atmosfera. Joaquina pediu à criada para servir chá e quase causou uma briga entre os três suspeitos. Afinal, chá verde? Ou chá de jasmim? Chá de ginseng? E ai de quem falasse de açúcar. Dona Joaquina já estava calejada e conseguiu contornar a situação servindo um copo de cerveja gelada para cada um porque, diz o estereótipo, japonês, chinês e coreano adoram uma cerveja (vietnamitas, claro, também).
O doutor Palhinha observava atentamente os suspeitos.
“- Ó, os três são parecidos, hein, dona Joaquina?
- Doutor Palhinha, por favor…
- Eu falo dos sobrenomes, dona Joaquina.
- Ah, sim…
- Se bem que japonês é tudo igual…"
O silêncio na sala era gritante.
“- É, seu Ngô, chinês é um povo caladão, né?
- Como assim?
- Chinês, este povo de olhos puxados que se veste de ninja…
- Ei, senhor errado! Ninja é japonês. Doutor Parinya errado! Protestou o 季 nipônico.
- Ah é, desculpa seu 季.
- É 季!
- Ah, sim. Desculpa, seu 季. É que não posso ver ninja que penso em Bruce Lee…
- O senhor está elado! Bluce Lee chinês! Não mistula a gente, seu Pa Lin Ya.
- Ô, meu mestre, caríssimo sr. 季. Peço que me desculpe. Sei que vocês, chineses, adoram um kimchi…
- Senhor Palyinya! Favor não confunde sashimi do japa besta aí, seu 季, com meu kimchi!”
A confusão entre os suspeitos e o doutor Palhinha não parecia ter fim. Nosso herói tinha diante de si um desafio digno dos melhores romances policiais! Seu método investigativo tinha que funcionar com estereótipos e preconceitos muito específicos. Não facilitava os três 季 serem tão mal-humorados.
“- Gente, vamos se acarmá?”
O apelo do doutor Palhinha surtiu efeito. O silêncio era tão absoluto que a sala mais parecia um salão para meditação zen.
“- Pessoal, deixem eu pensar. Primeiro, o nosso amigo japonês, o sr. 季.
- É 季!, protestou veemente o carrancudo senhor nipônico.
- Oh sim, 季. Bem, o sr. 季 é um japa e, como sabemos, japa é muito cheio das manias. Pede licença para tudo, distribui cartão de visita para Deus e o mundo e, quando resolve cortar a barriga de alguém, quando não a própria, declama um poema e leva o equivalente a 34 episódios (no caso de uma série de desenho animado) para morrer. É impossível que roubasse um dragão de jade deixando os estilhaços de vidro pelo chão. Teria limpado tudo.”
O sr. 季 fez uma reverência com as mãos nas laterais das pernas, inclinando-se cerca de 47 graus (exatos 47 graus) em direção ao doutor Palhinha, sinalizando seu agradecimento eterno.
E todos permaneceram em silêncio, o que decepcionou um pouco o doutor Palhinha que havia caprichado na encenação e nos trejeitos. É que ele havia assistido a uns episódios do detetive Columbo nos últimos dias, buscando aprimorar seus gestos. Nosso herói nunca escondeu de ninguém o sonho de um dia ter sua própria série policial.
Vendo que não seria aplaudido pelo desempenho teatral, bateu seu charuto no cinzeiro do sr. Ngô e prosseguiu.
“- Agora, este sujeito de cara quadrada, o sr. 季, que é coreano. Coreano, como sabemos, é um povo que adora pimenta. Mais até do que os china. É uma turma que também tem umas ideia esquisita. Adoram umas músicas irritantes, tal de Quêipópi e têm umas novelas cheias de drama. Sem falar que só sabem lutar com os pés, com um tal de tô-quem-dô. Seria de se esperar que se o assaltante fosse coreano, ele não parasse no roubo da peça. Certamente teria ido chutar o sr. Ngô e deixaria um rastro de pimenta pelo chão.”
O sr 季 respirou aliviado e, desta vez, não foi porque tomou dois copos de água após uma apimentada refeição. Praguejou algo em voz baixa e cruzou os braços.
Com a eliminação dos dois primeiros suspeitos, todos se voltaram para o chinês, o sr. 季. Doutor Palhinha fez um gesto negativo com a mão direita e, então, passou à análise do derradeiro último suspeito.
“- Gente, o sr. 季 aqui, é china. China é tudo pechinchador, fuma sem parar e sabe kung fu. Todo china anda com nunchaku e faz piruetas incríveis. Quando a gente pensa neste pessoal, quem vem à mente? Jackie Chan. Ou Bruce Lee. Sejamos honestos. Alguém acha que um china apenas quebraria a janela no assalto? Se o sr. 季 fosse o ladrão, ele só quebraria a janela após dizer o estilo usado e o nome do golpe. Mas o sr. Ngô não se queixou de vozes quando do ocorrido”.
O senhor 季, como seus antecessores, respirou aliviado.
“- Mas, doutor Palhinha, então, este crime não tem solução?”, perguntou a dona Joaquina.
- Não senhora, dona Joaquina. Na verdade, já sei quem roubou o dragão de jade. Foi Felipe Reverson, o vizinho do sr. Ngô. Felipe Reverson, solteiro e aposentado, passa o dia todo vendo vídeos no YouTube. Sei disso porque investigamos a vida dele antes de vir para cá.
- Mas é um senhor tão bondoso…
- Bondoso…, a senhora veja, até achar que houve algum tipo de apropriação cultural. Vejam, o seu Reverson, outrora um pacato cidadão, passou por um processo que chamamos de ‘inteligência reversa’ e cismou que é um guerreiro contra uma tal de ‘apropriação cultural’. Para ele, um dragão de jade não pode ser vietnamita. Também não pode ser chinês. Nem japonês. Muito menos coreano. Aí, o seu Reverson, após assistir vários vídeos de fanáticos adolescentes influenciadores, tentou, de todo modo, identificar um crime do que ele chama de apropriação cultural na estátua. Como não conseguiu, desesperou-se, invadiu a casa do seu Ngô e roubou o dragão”.
Todos ficaram boquiabertos.
O senhor Ngô, então, disse:
“- Doutor Palhinha, mas como…?”
Com as mãos na cintura sobre seu surrado sobretudo bege e com o charuto já no fim, nosso herói arrematou:
“- Sim, seu Ngô. Quando sua senhora me contactou, prontamente me coloquei a investigar não apenas os senhores suspeitos orientais. Olhei prá vizinhança e investiguei. Quando vi as maluquices do vizinho, armei esta nossa conversa para despistar. Mas, ó, meus homens já terminaram a ‘visita’ na casa dele e acabo de ser informado aqui no celular que ele já confessou, e seu dragão de jade, senhor Ngô, está são e salvo.”
Doutor Palhinha sorriu. Conseguira finalizar um caso não só com sucesso, como também com uma atuação digna do grande detetive Columbo. A satisfação que sentiu foi complementada com o orgulho dos aplausos do casal Ngô e dos três 季.
Aliás, os senhores 季 não só fizeram as pazes com o sr. Ngô (吳), como tornaram-se todos amigos. Passaram a jogar, todos juntos, mahjong aos sábados, na pequena praça em frente ao sobrado. Anos depois, bem idosos (oriental, reza o estereótipo, vive muito), revezavam-se-se para saber em que casa assistiram juntos filmes de John Woo cujo sobrenome, aliás, escreve-se com o ideograma 吳.
FIM
E o Juó Bananére? - Illustrissimu inletôre, io volto gyá. #juobananerepresidente
Cognitivas, pobrezas e forçadas de barras - Você quer saber como se faz ciência? Pista: é feita por seres humanos e, portanto, carrega, em si, vários defeitos humanos. Assim, não se impressione com certas manchetes. Eis um exemplo destes problemas, no ótimo texto do Scott Alexander, sobre um suposto efeito da pobreza sobre as funções cognitivas.
As manchetes vendem a existência deste link mas…
And finally, people want to discover a link between poverty and cognitive function so bad. Every few months, another study demonstrates that poverty decreases cognitive function, it's front page news everywhere, and then it turns out to be flawed.
Manchetes tentam vender fatos provisoriamente checados pelo método científico como verdades, o que nem sempre é uma boa ideia.
Claro, com o tempo e muito trabalho, alguns resultados se revelam válidos, mas restritos à amostra analisada. Outros até são tidos como universais (como a gravidade de 9.8 metros por segundo ao quadrado). Mas, cá entre nós, um pouco de ceticismo não dói…
Projetos - Taí um/o bom humor.
Tostão furado - …ou um centavo. Este foi um dos melhores contos do Orlando. Se você não assinou a newsletter dele, não sabe o que está perdendo.
Chamada de trabalhos - Para quem gosta de leituras mais acadêmicas e do que eu chamo de governança radical, o Journal of Special Jurisdictions é um novo e interessante periódico que, aliás, está com chamada nova de artigos aberta.
Sobrenomes - Eis uma lista de sobrenomes pouco usuais no Japão e, aqui, alguns bem engraçados. Outro ponto sobre sobrenomes: durante muito tempo o Japão colonizou a península coreana e Taiwan. Na tentativa de se impor culturalmente, tentou obrigar o pessoal a usar sobrenomes japoneses. Aqui está um bom verbete na Wikipedia de língua inglesa sobre o tema.
A economia em Agatha Christie - Texto interessante, aqui. De quebra, você aprende um pouco sobre a doença dos custos de Baumol, um dos temas mais interessantes em Ciência Econômica.
Eu ri - O sujeito aí não achou engraçado. Já eu não só achei como ri. Acho que ganhei dele.
Por hoje é só, pessoal!
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