Dilúvio - Tarifas - O dia da vida - outro.
"Se uma ONG mostra que um governo piora, é um direito divino do judiciário de seu país abrir uma investigação após a divulgação do resultado apenas", diz leitor.
Começa agora o v(4), n(6) desta newsletter. Nela, a história de Noé, um sujeito que bem poderia ser este que vos fala em um texto que ficou até longo demais e não alcançou aquela ponte longe demais que fica depois de uma batalha que já dura tempo demais, dentro da floresta que tem pernilongos demais…
Dilúvio - Um dilúvio moderno
I. Noé estava quase pegando no sono. Há mesmo um instante mágico, na fronteira entre o acordado e o dormindo, como no caso de um 0.99999… ali perto do solitário número um que alguns, em cheques, grafavam como ‘hum’ o que sempre me pareceu uma bizarrice, mas deve haver uma explicação para isso, sempre há. Às vezes, até duas.
Quanto ao Noé, coitado, ele não se preocupava com nada disto. Limites, séries, sequências, isto tudo é matemática e Noé nunca fora um bom aluno nas artes aritméticas, gráficas, algébricas ou geométricas e, afinal, ele estava quase dormindo, não é? É…bem...era porque um som não usual, meio abafado, chamou sua atenção.
Era uma espécie de ‘pof’, mas não um ‘pof’ destes que você ouve quando afofa um travesseiro. Era mais um ‘ping’ que se ouve quando uma gota cai no chão, só que mais suave. Era um ping-pof, portanto, um piongf. ‘Piongf’, ele ouviu novamente. Seu recém-chegado sono subitamente o deixou, saiu correndo e voltou para os braços de Orfeu, ou para o nariz de Orfeu ou para qualquer outra parte do corpo de Orfeu (pense o que quiser!).
‘Piongf’, ele ouviu pela terceira vez. Preguiçosamente levantou a cabeça do travesseiro. Como estava escuro, não viu nada. Ainda mais que estava sem seus óculos: era míope nosso Noé. Mais um ‘piongf’ foi o suficiente para fazer com que se mexesse na cama. Levantou-se pelo lado da cama correto, ou seja, pelo lado onde, no chão (onde mais?), estavam seus chinelos. Calçado e ainda zonzo, cambaleou um pouco e ouviu mais um ‘piongf’. Foi ao pé da cama e, pronto, descobriu que uma parte dela estava úmida.
‘Como assim?‘, pensou. Foi quando sentiu uma gota de água gelada atingir-lhe a nuca. Sim, vinha do lustre. Não que lustres produzam água - não que ele soubesse - mas do buraco no teto de onde saíam os fios que se conectavam ao lustre moderno de iluminação de LED, a água escorria e pingava em sua cama. Por isso o ‘ping’ havia se misturado com o ‘pof’.
Noé hesitou, ainda zonzo, sem saber o que fazer. Colocou umas toalhas no pé da cama, entre o lençol e o colchão e em cima do lençol. Voltou a se deitar, mas demorou a dormir.
II. Na manhã seguinte, Noé acordou e pôde notar o que acontecia com mais clareza. As chuvas haviam trazido mais uma preocupação para Noé que girou a cama e colocou uma toalha no chão apoiando um balde de plástico. Como Noé era filho de Deus (é o que diz a Bíblia, inclusive) e não um prisioneiro uigur em uma prisão da China socialista torturado por uma torneira que pinga sem parar o dia todo, decidiu que dormiria na sala, em sofá estreito que comprara recentemente.
Naquela noite, o ‘piongf’ se transformou em ‘ping’, mas, para o desespero de Noé, não só não parou como pareceu aumentar ligeiramente o seu ritmo. Dormiu na sala com alguma ansiedade e sonhou que Deus lhe enviava um recado sobre um dilúvio que viria em breve. Acordou, claro, bem agitado. Tentou correr para o quarto, mas ninguém consegue correr logo que se levanta (tente!). Caminhou, pois, até lá e viu que os pings já formavam uma pequena poça no fundo do balde.
Alguns dias depois, chegaram os funcionários da empresa barata que o condomínio contratara porque… afinal, são só três apartamentos em doze que estão no último andar, né? O que me importa a desgraça alheia? Sou só um bom cristão, temente a Deus, que confessa sempre aos domingos. Problema deles…é o que diziam à boca pequena, longe dos três moradores (Noé, como você já sabe, um deles).
Noé fez um café e começou a trabalhar. Quando foi lavar a louça do dia anterior, notou que não havia água. Ironia divina? Não, humana mesmo. É que uns encarregados de uma obra em outro apartamento, por algum motivo, foram ao telhado e conseguiram quebrar o cano que saía da caixa de água. Como resultado, um pequeno dilúvio atingiu a vizinha de Noé, Salomé que, desesperada, viu seu lar se transformar em um mar.
No quarto de dormir de Noé, os ‘pings’ seguiam firmes, mas sem maiores consequências, o que o fez pensar que, comparativamente à Salomé, ele vivia quase em um paraíso. Ainda assim, o sonho, o dilúvio…alguma coisa havia ali, né? Noé saiu para comprar madeiras e notou que os funcionários da empresa que quebrava o galho (mas não as telhas) remendando o telhado haviam chegado, preocupadíssimos.
III. ‘Já se passou uma semana’, pensou Noé, vislumbrando sua pequena barca na sala de jantar, construída artesanalmente por ele, que nunca antes na vida havia construído um barco (apenas os de papel, no colégio, em alguma aula). A infiltração, agora, já atingia todo o prédio, o que, subitamente, transformou todos os outros moradores em preocupados cidadãos, muito interessados na resolução do problema. Deus havia, finalmente, alcançado seus corações…ou não.
O balde de Noé seguia sendo esvaziado e recolocado em intervalos irregulares. O sofá estreito da sala, agora, já lhe parecia uma cama de hotel bem confortável. Adaptado à vida em um apartamento com infiltração e uma canoa na sala, saiu Noé para o trabalho. Nem sentia mais aquela ansiedade de antes. O que viesse de Deus, claro, ele aceitaria. Afinal, não foi por falta de avisos divinos e ele já tinha uma canoa. Preocupava-lhe tão somente a questão dos remos e também sobre quanto tempo o dilúvio duraria. Deus nada havia lhe dito acerca da programação das águas de março que se adiantaram naquele ano.
No meio da tarde, o celular vibrou. Checando a mensagem, Noé não se conteve e soltou uma gargalhada. Um cano de esgoto na garagem havia rompido, em um evento não relacionado com as infiltrações. Alguns moradores até já faziam piada no grupo. O que é um cano de PVC furado perto de tudo aquilo? ‘Haja bosta’, pensou.
À noite, Noé chegou em casa e esvaziou o balde. Notou no teto duas novas infiltrações bem discretas. Promissoras, claro, mas ainda jovens, talvez pré-adolescentes. Sua cama, graças a Deus, ainda estava intacta. Na sala, a barca (ou canoa, já não sabia a diferença) parecia maior, mais vistosa. Os remos que comprara estavam amarrados, ao lado de sua estante de livros. A visão toda era um pouco surreal, mas nada ali lhe parecia anormal.
De madrugada, Noé acordou. Sentiu algo diferente. Levantou-se, acendeu a luz e checou o balde, o teto e as paredes. Nada de anormal. Coçou a cabeça e resolveu checar o resto do apartamento. Tudo estava em seu lugar. Sentiu um frio na espinha. Fazia muito tempo que não sentia este frio. A última vez foi há anos, quando propôs à sua namorada de então o noivado. Bem, não havia mais noiva agora. Nem casados foram, inclusive. Só havia aquela sequência de ‘pings’ no balde.
Noé pegou os remos, entrou na canoa que, agora sim, parecia uma barca. ‘Deve ser um sonho’, pensou. Colocou na mesma um isopor com sucos de laranja e cervejas. Pegou uns pacotes de biscoitos e três caquis. Acomodou ao seu lado o vaso com o cactus ganhou de presente de alguém (e que cuidava com muito carinho desde então). Abriu a cortina e notou que o céu não tinha muitas nuvens. Remou e a barca passou pela janela suavemente. Era uma barca translúcida. Noé também era translúcido agora. Continuou remando e seguiu em direção à Lua, sob a chuva que fazia ping-ping-ping, mas eram pings diferentes, mais amistosos.
Que alegria!
Tarifas - Em economês, ‘tarifas’ são impostos sobre produtos importados. Agora que já esclarecemos o termo, eis um ótimo texto explicando como a teoria econômica pode ser usada para analisar o impacto da imposição de uma tarifa em um país.
O dia da vida - O dia da morte chega para todos, dizem. O que ninguém nunca diz é quando chega o dia da vida. Até o momento, sigo sobrevivendo. Quando é que vem a vida? Quinta, às 07 horas e 48 minutos? Daqui a pouco? Domingo?
Tenho dedicado meu tempo a buscar o dia exato da vinda da vida. Não consegui ainda descobrir quando ela virá. Carlota, minha vizinha, mãe de dois filhos, funcionária pública aposentada, diz que o importante é que a vida esteja com os documentos em ordem porque a lei, neste país, é rigorosa com quem não tem dinheiro para pagar umas viagens para juízes a Coimbra.
Já o seu Zé, da sorveteria, disse-me que a hora da vida está intimamente relacionada com o ciclo dos negócios (que bons tradutores, acertadamente, chamam de ‘ciclos econômicos’…originalmente: business cycles). Ele me disse que aprendeu isso com um jovem de 22 anos que tem um canal no Iútyúbê (para os paulistas….para mineiros seria: Iútyub’), que, aliás, é reprovado em duas de três matérias de Finanças que cursa na faculdade, embora ganhe tanto com os ‘superchétz’ que já paga duas mensalidades, a cada semestre.
Não sei não, mas o André me disse que a hora da vida tem mais a ver com uma tal de Rachel, mais especificamente com uma certa característica de sua personalidade físico-espiritual. Contudo, o tema é muito complexo e, como diria a ex-reitora intolerante de Harvard, ‘depende do contexto’, embora eu ache que não.
Já o outro André me diz que a vida se parece mais com a história de um brigadiano (esse André é gaúcho) que torcia para o Esporte Clube Pelotas, não para aquele outro timeco da cidade, mas este caso fica para outro dia porque o texto já está grande para uma geração que é incapaz de se desafiar a ler mais de 5 (cinco!) linhas (hora de perder uns (umas) assinantes e seguidores(as) beiçudinhos(as)).
Seria a hora da vida algo que vem acompanhado de algum sinal? Ou de um marco territorial? Faz sentido pensar na hora da vida assim, como quem não quer nada? Hein? Hein? Sei lá. Diga-me você, último copo de cerveja gelada…
Garçom, a conta, por favor!
Um teste com legendas - A intenção é testar uma coisa aqui…
Por hoje é só, pessoal e…até mais ler! (*)
(*) “até mais ler” foi plagiado do Orlando Tosetto, cuja newsletter, aliás, você deveria assinar.
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