Dias de Trovão. Outros assuntos.
"Há uma voz abafada, uma voz de incerteza, que sussurra nos ouvidos do crente. Quem sabe? Sem esta incerteza, como poderíamos viver?"
Bem-vindo ao v(3), n(4) da newsletter. Um pouco cansado, um pouco descansando…eis meu estado atual. O trecho entre aspas, logo abaixo do título, foi retirado de Monsenhor Quixote, de Graham Greene.
Dias de Trovão - ‘Nunca, as brigas no WhatsApp atingiram tanta gente ao mesmo tempo’. Pelo menos era o que ele achava. Escreveu a frase com uma convicção que não se baseava apenas em abstrações. Não. Todos os grupos a que pertencia estavam em ebulição. O motivo? Política, claro.
Seu país? Ora, era a obscura República do Jurisdiquistão, localizada em um enclave entre a Ucrânia e a Rússia. Havia sido parte da antiga URSS e, com a democratização, um poderoso burocrata local, Alexander Vovonovich, conseguira que o território fosse transformado em um país.
Só que era um país tão pequeno (em todos os aspectos) e obscuro que a comunidade internacional custou a reconhecê-lo. Vovonovich era formado em Direito, motivo pelo qual, alegava, poderia desenhar todas as instituições do país. Orgulhoso, de fato, desenhou-as todas: desde a Constituição, passando pelo sistema eleitoral e as estruturas dos poderes e chegando até a regulamentações de trânsito.
Vovonovich adotou um arranjo bem peculiar para suas leis: no Jurisdiquistão, a direção dos veículos, por exemplo, poderia ficar à direita ou à esquerda. Dizia que era um democrata e, assim, o país importava automóveis fabricados em praticamente qualquer lugar do mundo. A diversidade de padrões não parava por aí: centímetros e polegadas eram igualmente adotados, assim como os diversos sistemas de pesos e medidas. Até o código legal era, na verdade, um conjunto de diferentes códigos.
Vovonovich era assim: sempre preocupado em agradar gregos e troianos. O problema é que não se preocupava muito em como organizar esta miríade de sistemas concorrentes. Com o tempo, o que era uma convivência pacífica transformou-se em um conflito de visões e, daí para as agressões físicas foi um passo. Seus assessores à esquerda diziam-lhe que tudo era culpa do pluralismo (sonhavam com um partido único) e os à direita achavam que o problema era a falta de uma tradição mais linear, perene, assim, meio Burkeana.
O problema explodiu quando Vovonovich decidiu que o próximo presidente seria eleito por voto direto, dando fim ao seu papel de fundador/mandatário do pequeno Jurisdiquistão. Pensava em passar a faixa para alguém mais jovem, com mais disposição (Vovonovich já beirava os 70…).
Dois candidatos conquistaram a maioria dos eleitores. O discurso de um era o oposto exato do que era feito pelo outro e foi assim que o primeiro turno da eleição terminou em empate: 50% para cada um. Sem abstenções, votos nulos ou em branco. O país estava dividido.
Vovonovich se desesperou e logo criou uma lei implantando o segundo turno (a estabilidade jurídica, no Jurisdiquistão não era tão estável assim, mas, neste caso, até que parecia uma boa idéia (nesta newsletter tem acento sim, viu?) ter o segundo turno). Aprovada a nova lei, foi decidido que o segundo turno ocorreria em 15 dias; e assim foi feito.
Para a surpresa de todos, o resultado foi um novo empate técnico. Novamente, sem abstenções, votos nulos, ou em branco. Metade das urnas eram eletrônicas e não-auditáveis. A outra metade eram urnas tradicionais, com votos impressos e, pasme, a divisão meio a meio ocorreu em cada um dos sistemas. Além disso, os dois candidatos, a cada dia, tornavam-se mais agressivos.
O clima piorou quando os fanáticos seguidores dos candidatos resolveram acampar em lados opostos da capital jurisidiquistanesa, Dolária, uma bela cidade planejada (ah, os bons tempos da URSS…). Como nenhum dos grupos era composto de anjos, cada um infiltrou o outro com alguns bem treinados agitadores para insuflar o ódio que, convenhamos, nem precisava de muita lenha na fogueira para atingir a temperatura de ebulição (e os candidatos pareciam gostar da radicalização).
Indeciso, Vovonovich tentava alterar as leis para permitir um terceiro turno, trancado em seu palácio. Não conseguia mais sair de lá, preocupado com um possível conflito que poderia destruir seu pequeno - mas amado - país. Concentrado nas mudanças legais que, acreditava, melhorariam tudo, não percebeu o clima cada vez mais tenso…
…até que, em uma noite, dois acampados seguidores de um mesmo candidato se desentenderam por causa de um algodão doce, o último de um humilde vendedor que tentava ganhar alguns trocados. O inusitado é que um deles vestia-se como os do outro grupo (era um dos infiltrados). O fuzuê chamou a atenção dos membros do outro acampamento que correram em defesa de seu suposto membro.
Iniciou-se uma violenta guerra com paus e pedras - tal como diziam que seria a 4a guerra mundial - que evoluiu (ou involuiu, como queira) para depredações do patrimônio público e privado porque, afinal, depredadores não conferem a quem pertence o patrimônio depredado. Até umas estátuas eles picharam, aos olhos benevolentes (ou tementes) dos policiais locais (alguns até tiraram fotos com os pichadores).
Vovonovich, comunicado da explosão de fúria, correu para a sacada do palácio e, incrédulo, viu seu lindo jardim pisoteado por um bando de selvagens que, outrora, eram cidadãos pacíficos. Desesperou-se. Gritou para a multidão que estava ocupada demais se matando para ouvir discursos ou pedidos de retorno à normalidade.
Aos poucos surgiram focos de incêndio. Preocupados, alguns assessores de Vovonovich conseguiram trazer o estático líder de volta à realidade, pedindo-lhe que acionasse as forças de defesa o mais rápido possível. Apenas um dos assessores lhe aconselhou a deixar que o conflito durasse um pouco mais, pois isto lhe daria motivos para intervir com mais força contra ambos os lados. Vovonovich, contudo, não lhe deu ouvidos e autorizou o uso imediato de força, o que era tudo que os generais (sempre) queriam.
Em cerca de duas horas, com algum derramamento adicional de sangue (quem nunca, né?), não havia mais confrontos. Centenas foram presos e Vovonovich tinha, pelo menos, algum silêncio para tentar resolver o impasse da eleição. Chamou os dois candidatos para uma conversa, mas ambos só faziam se acusar de tudo que era termo ofensivo (‘sogra’, ‘quiabo’, ‘nazista radical’, ‘stalinista radical’, etc.).
Vovonovich tentou, de todo jeito, conciliar os jovens adversários que, agora, já eram inimigos mortais, sem sucesso. Estavam irredutíveis. Sem saber o que fazer, consultou seus assessores que, em uma rara unanimidade, sugeriram-lhe um governo de coalizão, um triunvirato com ele e os dois candidatos. Levada à mesa a proposta, houve um silêncio inicial de cerca de 30 segundos. A esperança de Vovonovich parecia ter alguma chance...
Como a alegria de pobre, a de Vovonovich também durou pouco. Os candidatos começaram, novamente, a se ofender. Não concordavam nem com a proposta e a proposta rapidamente foi esquecida em prol de ofensas mútuas. Foi quando Vovonovich se cansou. Apontou o dedo na cara de cada um e lhes disse algumas poucas e boas. Assustados, os candidatos permaneceram em silêncio. Ninguém nunca havia visto o líder do Jurisdiquistão tão nervoso.
Disse aos candidatos que aquilo não poderia continuar. Que eles que se entendessem ou ele, como líder máximo, abriria um processo contra eles e, como juiz e procurador máximo da nação, iria colocá-los na cadeia. Sim, este seria o ‘devido processo legal’ e ninguém iria se opor a ele. Disse-lhes mais: que bastava que olhassem para a praça destruída. Dali viria o apoio que teria da imprensa e do povo contra eles e que, sem dúvida, eles ficariam isolados.
Os candidatos pareciam, agora, compreender o tamanho da encrenca que teriam caso Vovonovich resolvesse, realmente, fazer-se de ditador. Após rifarem, as vidas de seus seguidores (dos menos aos mais fanáticos), finalmente pareciam perceber o tamanho do imbróglio que havia sido criado. Foi quando, finalmente, disseram a Vovonovich que aceitariam resolver tudo com uma decisão simples: cara ou coroa.
Claro que Vovonovich quase infartou, mas, diante das circunstâncias, aceitou. Pediu a um assessor uma moeda e jogou-a para o alto. Foram os segundos mais longos de uma moeda no ar, pelo menos para ele. A moeda caiu no chão, em um vão entre as tábuas corridas. Caiu de pé, para desespero de Vovonovich. Quando ia jogá-la novamente, ouviu uma explosão forte. Tinha início a invasão de seu país por tropas russas.
Foi assim que começaram os dias de trovão do pequeno Jurisdiquistão.
Não é exatamente como nos EUA - É o que diz o NYT.
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Aliás, ciência sem liberdade de expressão não se desenvolve.
Um gato é um gato - …não é uma onça.
Por hoje é só, pessoal e…até mais ler! (*)
(*) “até mais ler” foi plagiado do Orlando Tosetto, cuja newsletter, aliás, você deveria assinar.
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