O v(5), n(14) chegou e não adianta reclamar.
Denuncie! Prenda! - Há dois modos de se resolverem problemas em uma sociedade: buscando a cooperação ou usando a coerção. Há combinações de ambas, como nas políticas públicas em que se permite ao seu destinatário receber uma quantia em dinheiro para gastar como quiser, desde que cumpra alguns requisitos.
A sociedade é um conjunto de indivíduos que se identificam por algumas similaridades, mas, não podemos nos esquecer, “cada um é único”. Por isso a cooperação acaba sendo a melhor forma de se conseguir resolver problemas. É mais adequado (não necessariamente “mais fácil”) induzir a cooperação do que pensar em punições detalhadas que sejam tão boas para o sujeito A quanto para o sujeito B e o C, e o D…etc.
O leitor percebe que há dois ‘modos de pensar’ orbitando meu texto, certo? Um modo que pende para o autoritarismo (‘crie uma punição’) e outro que entende a diversidade e pensa em como pessoas auto-interessadas podem cooperar (‘aprenda com as pessoas’). É o que eu disse lá no início: coerção e cooperação.
Eu, que já vivo neste país há mais de meio século, passei por um período militar (A Revolução de 1964 ou o Golpe de 1964, como queira) para uma transição democrática, chegando na bagunça atual que não sei nem se é uma democracia, uma democracia populista, uma autocracia disfarçada etc. Os cientistas políticos, sempre tão contaminados por suas ideologias (com raras exceções), criam rótulos sem base científica (que vendem livros, a propósito) e nos confundem. Bom, ao menos eu me confundo, não sei você.
Eis o que posso relatar para você, amigo mais jovem, sobre o que vi e o que vejo.
Durante o final do século 20 e o início do 21, tentávamos explorar a cooperação das pessoas, mais do que incentivá-las a ver seus vizinhos ou conhecidos como inimigos a serem exterminados. Aprendíamos, no colégio, que o Brasil era uma potência emergente e o que nos impedia de crescer eram alguns ‘interesses internacionais’ e não falávamos muito dos nossos próprios erros: a culpa era do estrangeiro.
Com o fim da ditadura, o problema passou a ser uma mistura de causas domésticas (“o empresário que muda o preço, mesmo com a tabela da Sunab do redentor Plano Cruzado”, por exemplo) e externas (“se estivéssemos com a URSS, não seríamos explorados). Houve uma mudança na orientação que se pretendia ensinar para as crianças nas escolas e, em nome da correção das injustiças, passou-se a permitir o ensino de apenas uma visão da história, que tinha (tem) um apelo social, mas que a própria história não nos diz ser a que melhor explica a realidade.
Nesta visão, ‘o empresário é o inimigo’ ou, se o PIB da indústria for o sucesso, são os industriais os culpados pelo atraso. Ou os bancos. Ou os agricultores. Sempre que há uma grande empresa, com escala suficiente para produzir em massa (até barateando o produto), há a suspeita de que seja corrupta e explore seus funcionários. Nos anos 80, com o cenário de inflação descontrolada (ou desesperadora), empresários eram os grandes vilões. Como disse Roberto Campos, em um dos programas do ‘Roda Viva’, as pessoas não enxergavam o governo como o culpado porque confundiam a causa da inflação com a remarcação dos preços (uma tautologia…), esquecendo-se de que a política monetária desastrada (ou frouxa, ou passiva etc.) é que causa a mudança nos preços.
Aos poucos, começamos a ceder à visão de que o avanço social é um jogo de soma zero: o negro só ascende se o branco não o fizer. O mesmo para mulheres e homens. Ou para pobres e ricos. Criamos a visão falsa de que não é possível que todos fiquem bem. O ponto de partida - ou o ‘marco temporal’ - de cada problema é ou indefinido ou não existe, o que torna a discussão mais complicada. Isto sem falar que corrigir a desigualdade entre homens e mulheres pode atrapalhar a correção da desigualdade entre negros e brancos, por exemplo.
Desta visão de que a sociedade é um ‘todos contra todos’ - muito adequada para o discurso de políticos populistas, aliás - surgem as soluções de tons policialescos que vemos por aí. A cada minuto, no Brasil, chuto, deve surgir uma proposta de um “Disque-Denúncia” diferente.
Sua patroa é branca? Denuncie o racismo. Seu chefe é homem? Denuncie o machismo. Seu amigo é liberal? Denuncie o fascismo (!). Entrou no ônibus e achou que o motorista te olhou feio (mesmo que não o tenha), denuncie seu abuso. Teve uma sensação de fragilidade no meio de um jogo de futebol por conta do erro da arbitragem? Denuncie a corrupção. Pensou ter ouvido uma ofensa à sua família? Denuncie a difamação. Leu uma reportagem que fala do amigo do seu amigo? Denuncie a imprensa e peça que recolham as revistas das bancas. Podendo, censure.
Esta é a sociedade em que vivo hoje. Uma sociedade na qual a solução é sempre a denúncia, nunca a cooperação ou a educação. Nunca é melhor ouvir diferentes pontos de vista. Usar a camisa com a estampa de Che Guevara é permitido, mas uma com a estampa de Hitler é causa de repulsa (ou prisão) e uma com a estampa de Adam Smith é, possivelmente, uma prova de que o usuário é fascista (!!). Temos dois pesos e duas medidas e, em ambos (e ambas), a solução é a denúncia, o processo (como se advogado não cobrasse…), a exposição nas redes em tom de denúncia. Vivemos em um grande “Aqui Agora” ou em um “Cidade Alerta”. Todos os que não conheço são criminosos ou ainda o serão. É preciso denunciá-los, nem que, para isso, eu precise colocar questões no ENEM vilanizando o agronegócio. Afinal, é preciso iluminar a mente dos que não enxergam a (minha) luz.
Denuncie este texto. Denuncie quem denuncia este texto. Denuncie ambos. Denuncie este conselho (ou sugestão). Denuncie suas múltiplas personalidades, esquizofrênica amiga. Denuncie. Denuncie. Denuncie até cair ao chão, esgotado. Espalhe cartazes com o telefone/endereço de e-mail do disque denúncia até nos banheiros (principalmente neles, pois é lá o destino dos recados mais loucos…).
Ajude a construir uma sociedade mais justa prendendo todos os potenciais criminosos. O resultado eu já sei qual é: os que têm poder continuarão causando injustiças e a sociedade esfacelada pela desconfiança, não conseguirá nem mais identificar as verdadeiras causas dos seus problemas…e nem terá a confiança necessária para se unir em torno da busca de soluções.
Denuncie.
Douglas Adams venceu - Em O Guia do Mochileiro das Galáxias, aprendemos uma lição importante: não adianta fazer grandes perguntas se você não tem capacidade de interpretar as respostas. É o famoso “42”, que surge já no meio ou no final do livro (não me lembro bem).
A tecnologia nos deu a Inteligência Artificial (IA) e esta nos dá quase tudo de mão beijada (embora ainda não tenha mãos ou lábios. Eu disse ainda, ok?). Maravilhoso, não? Sim, sabemos que é. Nossa produtividade aumenta bastante e os custos caem. Não preciso mais pagar a um estagiário para que me entregue um arquivo com uma tabela elaborada. A IA faz isso para mim a um custo muito menor. Pobre estagiário? Que nada: ele também usa a IA.
Os alunos usam a IA, os professores também. É como a calculadora: veio para ficar. A calculadora não levou bilhões à pobreza e nem a sociedade sucumbiu ao caos. O mesmo ocorre com a IA mas, momentos de transição são sempre oportunidades para dois tipos de pessoas: os oportunistas e os empreendedores. Os primeiros lucram com narrativas apocalípticas, por exemplo. Os empreendedores usam a IA em seus empreendimentos.
Todos, contudo, não podem escapar do problema primordial do uso da IA: o fato de que ela não responde corretamente se você não sabe o que lhe perguntar. Sim, em última instância, se você não estudou (sem a IA) e não aprendeu (sem a IA), não tem elementos suficientes (ou seja, massa crítica) para interpretar as respostas que a IA te dá. Douglas Addams, sem querer - e ele adoraria a ironia, creio - previu o que vivemos hoje.
Alunos, agora, serão avaliados de forma diferente. Eu diria até que é uma educação clássica o que teremos. Um aluno usa uma IA para gerar uma apresentação de um trabalho, mas não sabe fazer mais do que ler os slides e não consegue responder nenhuma pergunta sobre o conteúdo? Bem, a nota é zero, pois foi só isso (que já é muita coisa) que ele precisava saber. Não há motivo para avaliar o capricho dos slides porque a IA sempre gera conteúdos caprichados. Até uma explicação para você ela gera. Só que não é ela que quer um diploma, é o aluno.
Pois é, o paradoxo - que não é tão paradoxal assim - é este: você precisa aprender sem a IA (ou usando-a de forma a não prejudicar seu aprendizado, ou seja, sem terceirizar a aquisição de conhecimento) para saber o que fazer com a IA. Não há como escapar e a moral é a mesma dos tempos de seu bisavô: a preguiça e a falta de ética cobram seu preço hoje ou no futuro. Não há como escapar.
42!
Música - Algumas dos anos 80.
Por esta semana é só. Até mais ler!
(*) “até mais ler” foi plagiado do Orlando Tosetto, cuja newsletter, aliás, você deveria assinar.
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Talvez você seja novo por estas bandas. Rapidamente: publico geralmente às quartas. Eventualmente há algumas edições extraordinárias. Assinar (custo = R$ 0.00 + valor do seu tempo para apertar o botão subscribe com seu endereço de e-mail lá…) me ajuda bastante. A temática? De tudo um pouco. Confira os números anteriores aqui.
Muito bom. Muito bom mesmo. Síntese perfeita da nossa, minha sociedade. Sobre IA, já passei para meu filho de 13 anos ler. Obrigado.