Caramuru, Aushumao e a importância de saber se comunicar em (pelo menos) duas línguas
Povoaçoens que se ora novamente povoão, Povoaçoens que se ora novamente povoão, Povoaçoens que se ora novamente povoão (não é possível parar de repetir...)
No sexto número do primeiro volume desta newsletter vamos falar um pouco de história e mencionar um livro muito interessante (que, sim, eu acho que deveria ser traduzido) que tem ótima história econômica como conteúdo principal.
Inicio lembrando de um amigo que não vejo há um bom tempo. Fernando Zanella é um economista que, nos anos 2000, terminou sua tese de doutorado em História Econômica em Auburn. Pedi a ele para ler a versão final (eu estava lutando para escrever minha própria tese) e foi com Zanella que aprendi sobre João Ramalho, Diogo Álvares (Caramuru), Vasco Lucena, figuras básicas na história colonial brasileira que nem sempre são destaques nos aulas de história. Bom, talvez apenas Caramuru seja lembrado (e só na aula de literatura, por conta do poema).
O que há em comum entre os três portugueses? Todos trabalharam como intérpretes entre os nativos e portugueses naquele início do Brasil colonial. Sua ação tinha o efeito de diminuir os custos de transação entre portugueses e nativos. Como foram parar no Brasil antes da chegada dos donatários das capitanias (sim, isso mesmo!) é um mistério. Alguns acham que teriam permanecidos na colônia com o fim das feitorias. É provável. Aliás, o tema da infiltração - acidental ou não - de portugueses em sociedades locais para facilitar as trocas (ou as invasões) - é parte da história da colonização portuguesa (e pode ser o tema de uma outra conversa…).
Corta para 2021. Estou cansado e tentando me distrair com um bom livro. Abro o ótimo Our Long Walk to Economic Freedom - Lessons from 100 000 years of human history de Johan Fourie. Subitamente, eu me deparo com um nome difícil de se ler (ou pronunciar): Autshumao. Não ouviu falar?
Bom, já é difícil pronunciar Autshumao, né? Que tal então pronunciar Khoekhoe? Autshumao foi um chefe dos Khoekhoe, lá no sudoeste africano. O que ele fazia? O mesmo que os lusitanos citados acima: ajudava nas conversas dos neerlandeses (na época, o país ainda não era o que chamamos de Países Baixos, assim, prefiro o termo neerlandês).
Austhumao falando uma língua européia? Pois é. O que se fez foi ensiná-lo para que pudesse ser um intérprete. Embora seja um caso isolado, isto me faz pensar se o custo de oportunidade dos neerlandeses em aprender uma língua indígena africana não seria maior do que o custo de oportunidade dos portugueses de aprender alguma língua indígena por aqui. Será?
Obviamente, a comunicação entre indivíduos não necessariamente é sinônimo de inexistência de conflitos, o que não nos impede de apreciar o papel dos indivíduos citados. Vale lembrar também que o início de uma colônia é sinônimo de gastos por parte dos donatários. Assim, evitar guerras e promover a paz significa diminuir seus custos, o que não é nunca uma ideia ruim, certo? (Para quem curte Teoria Econômica e gostou do tema, sugiro, sem modéstia, isto)
É, algumas pessoas falam de network, de relações sociais, etc, como se fossem uma descoberta da modernidade. Não é o que nos diz uma breve leitura do passado.
(Outro) Livro do dia: “A Capitanía de Duarte Coêlho e a Obra da Colonização Portuguêsa no Brasil” – Edição do Gabinête Português de Leitura Pernambuco-Recife, escrito por um certo Artur Alves Barbosa em 1935. É de onde veio a saborosa grafia do exótico subtítulo desta newsletter. Mas o livro é somente mais um daqueles em que o autor reclama de uma suposta glorificação de Nassau em contraponto às supostas realizações portuguesas em Pernambuco. Houve muito disto na literatura, lá pelos anos 30. Era uma espécie de literatura nacionalista e apologética. Nada que o progressivo uso dos dados (bandeira de Carlos M. Peláez, como se sabe) e o desenvolvimento da História Econômica não pudessem corrigir ao longo dos anos.
Filme do dia: Já que toquei no assunto, eis aqui um bom filme: Inferno no Pacífico com os gigantes Toshirou (Toshiro) Mifune e Lee Marvin. Dois náufragos de uma guerra em uma ilha (sem mais spoilers).