Esta é uma edição extraordinária em dois sentidos: (i) o habitual, desta publicação fora da rotina e, (ii) o de que vivi um momento extraordinário.
Espero que o compartilhamento de minha alegria deixe melhor o seu dia.
Frajolinha - Como posso começar? Frajolinha é uma gata que vive livremente nos domínios do local de meu trabalho. Conheci-a meio que por acaso, enquanto procurava alguém para conversar sobre assuntos que ninguém mais gostaria de conversar comigo. Nem comentarei sobre minhas piadas...
Descrevê-la? Não. O prezado assinante encontrará duas fotos dela aqui, sob um discreto filtro de um aplicativo qualquer. Poderá apreciar (ou não) a beleza de minha simpática amiguinha por si só, sem meu viesado filtro que, possivelmente, diria que Frajolinha é tal e qual uma estrela de Hollywood.
Na época, ela residia sob a escada do saguão do prédio principal, com um pequeno cobertor velho que alguns improvisaram para ela. Nunca, em minha vida, havia sentido a presença de um animal me roçando as pernas.
No caso de Frajolinha, seus movimentos sempre me fizeram pensar que dançava comigo. Uma valsa, pois. Pois de tantas valsas e de nunca reclamar das minhas piadas ruins, transformei-me, rapidamente, em seu fornecedor de seu café da manhã, pelo menos de segunda a sexta.
Inclusive, eu, que já chegava bem cedo, passei a chegar mais cedo ainda, somente para alimentá-la antes de todos e ter a oportunidade de desfrutar de sua companhia por um pouco mais de tempo antes da labuta. Eventualmente, valsávamos.
Quando da hora de subir as escadas para o início da labuta, em muitas ocasiões, ela parava e ficava me olhando, silenciosa e calmamente (era o mesmo olhar de quando ia embora). Ou simplesmente me deixava falando sozinho. O fim de uma valsa sem música nunca é simples…
Existiam também alguns outros gatos, em especial um branco, que perdera um dos olhos. Chamei-o de Popeye. Popeye era uma dor de cabeça porque não admitia que eu alimentasse Frajolinha antes dele. Sem falar que para ele não existiam valsas. Parecia mais disposto ao duelo.
Lembro-me de ter xingado-o várias vezes. Passei a lhe dar comida também, primeiro pensando em livrar Frajolinha de certo estresse e, depois, porque passei, genuinamente, a gostar dele, ainda que sempre nos olhássemos com certa desconfiança. Amizade daquelas de dois companheiros insólitos de algum filme de faroeste.
Tudo ia bem e o mundo corria com suas dificuldades rotineiras quando veio a pandemia e, com ela, a apressada fuga para o trabalho remoto. De humanos o local foi se esvaziando rapidamente.
Lembro-me, já antes de partir também, de um dia em que Popeye me seguiu até o carro esperando um certo convite que nunca lhe fiz. Mais tarde, soube pelos amigos dos gatos, ele migrou para o prédio do lado e foi adotado.
Mas eu falava da Frajolinha. Pois é. Mesmo antes da pandemia, tentei que fosse comigo para Belo Horizonte. Com a ajuda de alguns amigos, já a havíamos vacinado. Desde o início de nossa amizade, ela já se mostrava arredia a uma convivência que incluísse não-felinos em seu território.
Com a pandemia, o prédio, outrora cheio de vida, cada vez mais se parecia com uma espécie de relíquia arqueológica (ou com um bom cenário para paintball). Apenas uns poucos de nós, Frajolinha e alguns outros gatos ainda podiam ser vistos perambulando por ali.
Nos últimos dias, insisti muito para que fosse comigo, mas ela me deu várias negativas. Com o coração pesado, mas conformado, após uma última valsa, parti, deixando-a só, na esperança que sobrevivesse ou fosse adotada. Ainda tenho as fotos que fiz dela na última vez que a vi, lá pelo início de 2020…
O tempo passou e Frajolinha permaneceu no prédio, agora semi-deserto. Por um tempo, pelo que sei, apenas conviveu com o pessoal da manutenção, nem todos amistosos aos da raça felina. Certamente dançou valsas com alguns. Não guardo ciúmes…acho.
Com o prédio praticamente vazio, aproveitou-se para acelerar algumas obras já previstas. Os ‘amigos dos gatos’, os funcionários que lhe dedicavam algum amor, mal iam ao trabalho, agora rebatizado de trabalho presencial. Estávamos todos no remoto. Antes de partir, deixei três sacos bem grandes de ração com o vigia. Dizem que cuidou bem dos gatos.
Na nova lógica digital, trocávamos mensagens e, vez por outra, dividíamos a conta de um ou outro pacote de ração. Uns poucos iam, sem regularidade, ao trabalho, e lá cuidavam de Frajolinha e de alguns outros que restavam do bando que perdera seu líder, o rabugento e caolho Popeye.
Em nosso apartamento, Sofia, que lembra muito Frajolinha, ocupou o vazio que jamais imaginei ter no coração. Depois veio o Pompom, que não se adaptou muito bem - e sua partida não se deu sem dor, claro. Finalmente, juntou-se a nós a Gigi, que, com seu temperamento bem distinto do de Sofia, tornou menos dura a vida no trabalho remoto.
Cheguei a ver Frajolinha há alguns meses, quando fui, ainda com medo de entrar em um avião, a uma reunião presencial. Estava bem arredia. Com a obra, perdeu seu confortável local embaixo da escada e até seu cobertor. Agora ficava sobre a terra, embaixo de outra escada, com menos espaço. Suja, um pouco mais magra e, talvez, um pouco traumatizada com as encrencas em que se meteu.
Uma delas, aliás, deve tê-la abalado bastante. Conta-se que passou quase um mês trancada no telhado, pois se meteu a acompanhar uns responsáveis por uma das reformas para dentro do prédio, ficando trancada no telhado por um bom tempo (creio que semanas). Alguns dos amigos fizeram uma detalhada varredura e a encontraram. Acho que é um bom motivo para se ganhar um trauma (e não falo só de gatos).
Mas traumas e pandemias passam. Com eles, também, o trabalho remoto, pelo menos este, que ainda nos governa de forma incômoda, já que não adotado voluntariamente. Aos poucos estamos retornando ao normal que nunca deixou de sê-lo (apenas ficou suspenso). Cansados de dois anos de isolamento e de um clima de medo e tensão, agora começamos a vislumbrar o retorno à nossa vida anterior.
Deste modo, fui procurar uma residência e, claro, fui trabalhar na minha velha mesa, na minha - então hospitaleira - sala que divido com alguns membros de minha equipe. Claro, reencontrei Frajolinha. Desci do automóvel e instintivamente caminhei no antigo traçado - pré-reforma do prédio - no qual poderia encontrá-la.
Não veio correndo como antes, ansiosa pelo seu desjejum. Tive que tomar a dianteira, e guiá-la. Veio até mim ressabiada, mas algo nela deve ter lhe dito que era eu, o velho Claudio. A partir daí, parecia que estávamos em 2019. Veio, enroscou-se em minhas pernas, concedendo-me a honra de nova valsa.
Estava mais gordinha. Tão bela e amável como antes. Esta é a nossa Frajolinha. (para cantar mentalmente)
Frajolinha é, parece-me, um espírito livre. Recusa-se a ser levada para um lar. Ou pelo menos para o meu lar. Parece preferir a esbórnia neste gigantesco lote que chama de seu. De vez em quando, valsa com alguns velhos amigos e até uns novos que lhe dedicam algum afeto.
Quem poderá julgá-la, não é? Mas eu sinto que isto nunca impediu que nossa amizade fincasse raízes fortes no terreno nem sempre fértil que é o meu coração.
p.s. Amanhã chegarei, aliás, mais cedo. Quero valsar um pouco mais com minha amiguinha.
Talvez você seja novo por estas bandas. Rapidamente: publico duas vezes por semana, geralmente às quartas e sábados. Eventualmente há algumas edições extraordinárias. Assinar (custo = R$ 0.00 + valor do seu tempo para apertar o botão subscribe com seu endereço de e-mail lá…) me ajuda bastante. A temática? De tudo um pouco. Confira os números anteriores aqui.
Me senti participando desta linda valsa…
Lacrimejei.