A Covardia Racional e as Caravelas: um exemplo de Risco Moral no século 17
Nem tudo é o que parece e, claro, nem tudo não é o que parece.
Neste v(1), n(11), volto ao tema da História para mostrar que nem tudo é o que parece…ou não?
O século 17, como todos os séculos, viu muitas transformações na história humana mas, sem prejuízo disto, vale a pena pegar um microscópio e mirar no Brasil, especificamente, em Pernambuco. Calibrando o relógio (de areia) com alguma precisão (relógio de areia era o símbolo do Projeto Túnel do Tempo), chegamos à primeira metade do século.
Com um ajuste nas lentes, percebemos um território ocupado pelos cidadãos das chamadas Províncias Unidas que, mais tarde, viriam a ser, com algumas modificações geográficas, os atuais Países Baixos. Sim, um problema para a Coroa portuguesa.
Desviando o olhar um pouco mais no nosso micro-mapa alcançamos Lisboa. A discussão na Corte é sobre como resolver o imbróglio da Pernambuco ocupada. Deixa como está? Ou retoma?
Neste cenário é que se situa o problema interessante das caravelas de fugir, ou seja, dos “covardes” portugueses que não pestanejavam em se entregar aos neerlandeses (ou zelandeses, se você assim o preferir) em alto-mar. Seria um traço cultural lusitano? Seria um vírus que só atingia os marinheiros da Península Ibérica? Um problema de caráter gerado pela religião católica entre os descendentes de Camões? Uma herança genética insuperável?
Ou…seria apenas mais uma evidência de que, como diz a boa Ciência Econômica, pessoas reagem a incentivos? Eu e o leitor sabemos a resposta, mas façamos de conta que é tudo um mistério insolúvel, apenas para dar aquele tom dramático do início das narrativas que buscam prender a atenção do leitor (na Coréia do Norte usa-se um meio mais eficiente, mas não vamos adotá-lo aqui).
É, eu sei, é meio óbvio dizer que pessoas reagem a incentivos. Menos óbvio é entender como isto acontece e é neste ponto que muitas pessoas se confundem, passando a responsabilizar (culpabilizar mesmo) uma suposta “cultura” como a causa de todos os eventos que não consegue explicar.
Por exemplo, em 2014, após ler o ótimo A Crise Financeira da Abolição (Edusp, 2013, 2a edição), de John Schulz, fiz um vídeo para ajudar a desmistificar a visão - muito difundida na minha época de colégio - de que a Lei dos Sexagenários era inócua, era só para inglês ver.
O livro de Schulz nos ensina que os abolicionistas se aproveitaram da lei - que exigia que a idade dos escravos transportados fosse declarada na chegada - para salvar alguns deles. A ideia era usar a esperteza dos traficantes contra eles mesmos. Como? Bem, você descobre no vídeo (melhor ainda, no livro). Voltemos à suposta covardia dos portugueses.
Como eu dizia, o contexto é o da capitania de Pernambuco ocupada pelos neerlandeses e em Lisboa, discute-se sobre como evitar o conflito com as Províncias Unidas.
Assim surge a discussão de se não seria uma boa ideia voltar a usar as caravelas (transporte de açúcar, combate, estas coisas). Ocorre que a taxa de capitulação das caravelas, frente aos navios neerlandeses, era muito alta, valendo, em Portugal, a alcunha de caravelas de fugir.
Claro, pode-se pensar que existiria, na época, certa escassez de bons marinheiros lusitanos - e a Coroa poderia estar em dificuldades financeiras para contratar bons mercenários - mas há um fator bem racional, no sentido econômico (ou seja, indivíduos buscam o maior benefício líquido para si, com suas ações), que me parece a melhor explicação para esta alegada covardia. O trecho a seguir é iluminador.
Tornavam-se, então, ‘escolas de cobardia’, segundo os seus delatores, tripuladas por gente bisonha, pouco destra na manobra de artilharia. ‘Cobardia’, fruto da inexperiência na arte da guerra, mas também de uma armação escudada no crédito a risco, cujos juros de tão elevados só seriam desembolsáveis se a viagem corresse sem acidentes. O perigo e a fraude convidavam os mestres a encontrarem ‘mayor interesse na ruina; porque tomando sobre seus navios a titulo de fornecimento mais dinheiro do que elles valião, de proposito buscavam o perigo ou se não desviavam delle, porque com a perda de suas embarcações eram escusados de pagar as contidades sobre elles recebidas.’ [Costa, L.F. O Transporte no Atlântico e a Companhia Geral do Comércio do Brasil (1580-1663). Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portuguese, 2002 , vol.I p. 494]
Pois é. As viagens eram feitas com contratos de crédito a risco. Contudo, neste caso, os contratos têm uma característica: não era fácil monitorar o que acontece em alto-mar, o que pode ter facilitado, em muitas ocasiões, que os capitães dos navios agissem racionalmente alterando a probabilidade de serem ‘derrotados’, livrando-os de uma dívida. É o tal comportamento ‘cobarde’. Ou melhor, racionalmente cobarde.
O fenômeno em questão, este do sujeito poder mudar a probabilidade do evento para o qual contratou seguro, é chamado, na literatura especializada, de risco moral. O exemplo tradicional é o do sujeito que abandona seu automóvel com a chave na ignição para receber o dinheiro do seguro. Neste exemplo, entrega-se o navio para não ter que pagar a dívida.
Em geral, na aula, segue-se uma discussão sobre como o próprio mercado de seguros se previne e inclui alguma cláusula que tente desencorajar este tipo de comportamento. Talvez esta newsletter possa ajudar em alguma aula de Economia, quem sabe?
Claro, há mais peças neste quebra-cabeças histórico (*) e, meu intuito, hoje, foi apenas o de mostrar (novamente, para quem já me conhece de mais tempo…) que a boa Teoria Econômica sempre pode ajudar a desvendar eventos que somente nos são misteriosos porque há um véu de ignorância facilmente superado com algum estudo.
Um bom teste cliométrico viria a calhar, claro. Bons insights podem - e devem - ser testados, sempre que possível. A covardia racional é uma boa explicação, mas sua importância relativa a outras hipóteses seria melhor verificada com algum teste empírico…
Para finalizar, vale mencionar que a professora Leonor Freire Costa é uma das melhores referências em História Econômica de Portugal. Recomendo fortemente qualquer pesquisa dela.
(*) A discussão envolvia, inclusive, se não seria melhor abandonar as caravelas e construir navios mais adequados para o combate em alto-mar.
Gostou? Espero que sim. A gente se vê na próxima.