A Carta Perdida de Duarte Coelho ao Rei dos Cariris
Das poucas cartas de Duarte Coelho que sobreviveram ao tempo, nenhuma era destinada aos cariris. Por que não? Fiquei pensando como seria. Esta é uma carta que se encontra...além da imaginação.
No v(1), n(15), uma carta imaginária de um já envelhecido Duarte Coelho, donatário da capitania de Pernambuco, a um hipotético (?) rei dos Cariris. Transcrita para o português quase atual. Adicionalmente, alguns links para pesquisas interessantes sobre a história colonial. O tom da carta varia ao longo da mesma, conforme o velho Duarte tenta convencer o rei da nação cariri de uma ideia que ele tem para o futuro de Nova Lusitânia.
Uau! Que assunto interessante! Por que não compartilhar? Aquele seu inimigo antigo, que detesta newsletters, pode odiar receber um texto como este. Ajude-o! Não faça por mim, mas pela América, como disse Michael Keaton em The Founder (“Fome de Poder”).
Fala Quero-Quero, Rei dos Cariris! Acho que é assim que se pronuncia vosso nome, não? Foi o que me disse o Gaspar. Tenho tido grande dificuldade em pronunciar os nomes das pessoas de vossa tribo. Cousas da colonização, se é que me entendes. Saudações do teu amigo Duarte, diretamente de Lisboa!
Dia destes, conversando com nosso amigo comum, Caramuru, tive a ideia de uma ótima piada e, no meio da conversa, eu disse: Caramuru, você é o cara! Ele não riu muito, mas penso que seu humor é que não se adequa mais ao dos de Portugal. Em Nova Lusitânia, quando lhe chamam por seu nome de batismo, Diogo, ele sequer responde. Caramuru é um bom servo do Senhor, mas não entende meu refinado humor, esta é a verdade, Quero-Quero!
Sei bem que vosso povo não tem os mesmos hábitos que o meu, Quero-Quero. Também sei que alguns do meu povo têm se aventurado em busca do ouro em vossas terras, sem sucesso. Outros têm continuado com a monótona atividade de extração do brasil, esta árvore que ainda é a queridinha da nobreza do meu povo.
Sobre o brasil, outrossim, é razoável que concordemos que, no ritmo que andam estes carregamentos, daqui a pouco não se o tem mais cá nestas terras. Já escrevi muito para El-Rei sobre o problema, mas ele nem sempre me atende, Quero-Quero. Vossa Mercê não acreditaria na burocracia das Cortes…
Como um líder indiscutível dos cariris, Vossa Mercê bem poderia me ajudar. Tenho ouvido por aí que alguns conterrâneos meus têm recompensando alguns dos teus com colares, pulseiras e umas armas. Mas não só os da tua tribo, Quero-Quero! Também os de outras tribos são contemplados! Por favor, Quero-Quero, cuidado!
Veja, este negócio de cariri armado não terminará bem. Armas são perigosas. Você não sabe, mas morrem por ano muitos portugueses vítimas de armas. Eu, como Vossa Mercê sabe, sou da paz. A última coisa que desejamos é ver vosso povo morrendo por não saber como dar o correto manuseio às armas. Eu diria até que é um problema cultural. Armas lusitanas não se adaptam à cultura cariri.
Magnânimo Quero-Quero, veja, escrevo esta carta porque tenho uma ideia que, penso, será também de vosso altíssimo interesse. Sei que já estou velho, mas sinto que Nova Lusitânia é a colônia do futuro. Não será jamais como a descuidada vizinha Itamaracá. Aquela ali parece que foi largada e nada de bom prospera naquelas terras, infelizmente.
A propósito de pouco alvissareiras, Quero-Quero, há cá por perto, um jovem religioso, que tem andado pelas bandas de Salvador. É um homem de Deus, conhecido por Sardinha, que tem causado algum barulho com seus discursos. Mas Vossa Mercê não se preocupe. Algo me diz que ele não vai incomodar por muito tempo.
Voltando ao tema da minha ideia, quero vos dizer que se trata de algo muito mais promissor do que o Brasil, Quero-Quero. Aliás, isto lá é nome de pau? Com um nome destes, não pode dar certo. Até a pronúncia é feia. Muito melhor é falar de a.ç.ú.c.a.r. Quero-Quero! Açúcar, este é o produto do futuro! Ele é parte da minha ideia.
Meus engenhos aqui têm produzido um bocado do maravilhoso açúcar. Dia destes mandei a Brites fazer uns pastéis de Belém para a sobremesa do jantar e disse-lhe que usasse bastante açúcar. Foi incrível, Quero-Quero! Quase não dormi! Tem este produto um efeito, devo dizer, estimulante. Muito melhor que uma boa pilhagem ali, no estreito da Malaca.
Pois bem. Minha ideia é que nossos povos se unam em um empreendimento, Quero-Quero. A ideia é diminuir a exigência de regimentos para o comércio entre portugueses e cariris e estimular a produção e consumo de açúcar. Nada de escravos ou conflitos. A distância de Lisboa joga a nosso favor.
Nesta última visita a El-Rei, verdade seja dita, não fiquei muito otimista mas a lei é-me favorável! Meu foral, minha carta de doação me garantem alguma autonomia! Meu foral, Cariri, minhas regras! Vamos promover a riqueza em Nova Lusitânia! Com a ajuda do grande líder cariri, acredito ser possível construir uma sociedade próspera baseada no açúcar!
Assim que voltar de Portugal pedirei ao meu pessoal para fazer uma minuta de novo foral (acho que é foral mesmo, mas vou consultar o pessoal que cuida das leis…). Farei, por exemplo, que a construção de engenhos exija menos autorizações de oficiaes, Quero-Quero. Eu já tenho evitado a burocracia, sabe? O Provedor-Mor nunca entrou e não entrará jamais aqui para me perturbar. Eu mesmo já cuido da contabilidade dos tributos de El-Rei…
Pense com carinho nesta ideia, Quero-Quero. Poderemos fazer com que Nova Lusitânia seja a mais próspera colônia do império. Aquela com menores exigências burocráticas! De minha parte, deixei reforçado com a Brites que se punam severamente os do meu povo que tentem escravizar os vossos súditos, tal como sempre o fiz. Com paz e comércio pouco sujeito a burocracias, imagine o que não vamos conseguir? Será um sucesso! A nação cariri e Nova Lusitânia serão uma zona de livre comércio poderosa! Orgulho d’El-Rei e de todos nós!
Certeza que faço isto assim que regressar de Lisboa.
D’Lisboa a 03 de (ilegível) de 1553
Duarte Coelho
Nota 1 - A ideia era escrever no estilo original tal e qual a transcrição encontrada em GONSALVES DE MELLO, J. A. DE; ALBUQUERQUE, C. X. DE. Cartas de Duarte Coelho a El Rei. Recife: Editora Massangana, 1997. Contudo, meu talento literário não é exatamente aquela maravilha. Talvez eu faça uma novas versões por aqui, no futuro.
Eu gostaria era de ter muitos inscritos e promover o incrível e interessantíssimo concurso Escreva você mesmo sua versão da Carta Perdida de Duarte Coelho aos Cariris. As pessoas me enviariam seus textos e eu faria uma edição especial na qual os assinantes poderão votar e escolher as melhores cartas. Mas não sou nenhum influencer. Mesmo assim, adoraria ver alguém escrever sua própria versão desta Carta Perdida. Caso você o faça, por favor, avise-me.
Nota 2 - Duarte Coelho morreu em Portugal, no ano de 1553 (agora você entenderá o humor derradeiro, por assim dizer, do texto…).
Nota 3 - Sobre Duarte Coelho e sua conflituosa relação com o representante do Fisco, veja a nota de rodapé 579 na p.201 de VELEZ, L. DE C. B. Donatários e Administração Colonial: A Capitania de Itamaracá e a Casa de Cascais (1692-1763), 2016. Niterói: Universidade Federal Fluminense. O donatário não era um sujeito muito transigente quando o assunto era a própria autoridade…