A caixa de música e outros temas.
Eu já sei que era uma espevitadeira, mas ainda não entendi de onde vem o 'espevitada'...
Chegou o v(2), n(77). Algo musical, creio.
A caixa de música - Sobre a mesa de fórmica, lá estava a caixa de música. Não combina, eu sei, com mesa de fórmica. Mas estamos preocupados com o meio ambiente e, portanto, o texto foi manufaturado sem o uso de imagens de mesas de madeira, na esperança, algo orwelliana, de que a ausência de menção a móveis de madeira possa ser um efetivo instrumento de combate ao desmatamento. Obviamente, não os menciono mais.
Mas eu dizia que a caixa de música estava lá, sobre a mesa (não era de madeira, ok?). Ao abrir sua tampa, uma bela bailarina rodopiava ao som de uma destas músicas que compõem o acervo destes - cada vez mais raros - artefatos da mobília das famílias. Era de cor preta, com linhas douradas. Aberta, via-se um pequeno espelho e, claro, a bailarina, de cabelos loiros, vestida em azul claro.
Era-lhe, contudo, uma memória perdida, a de como a caixa de música teria ido parar ali, em sua vida. Não se lembrava de tê-la ganho em aniversário. Seus dois primeiros casamentos também não foram pródigos em presentes que não fossem pratos, talheres ou algum outro acessório gastronômico (a queda secular do preço relativo dos alimentos faz coisas, né, leitor?).
De onde viera aquela caixinha? Entre um e outro dia de exaustiva labuta, voltava-se para o mimoso objeto, inquirindo-se sobre sua origem. Dava-lhe corda e o mistério da origem primordial dava lugar a pensamentos esparsos com a música e a bailarina de um movimento só…
É verdade que a caixinha ficava sempre ao lado do computador pessoal, próximo à janela e, assim, todo cuidado era pouco porque chuvas não são exatamente eventos raros, nem necessariamente benevolentes com caixinhas de música. Sempre cuidou para que, estando próximo, a janela não ficasse aberta ao menor sinal de ameaça de chuva.
Não sei se podemos dizer que ela exercia sobre ele certo fascínio. Mas era certo, como já se deve estar evidente ao leitor, que ele se afeiçoara ao objeto. Vez por outro tomava-a em mãos e inspecionava-a por inteiro. Numa destas pôde ver o made in Hong Kong em sua parte inferior. Especulou que o amado objeto teria sido fabricado lá pelos anos 60…ou 70.
Mesmo quando fumava seu charuto, cuidava para não deixar que as cinzas atingissem a caixa e, muito menos, a imaculada bailarina. A poeira, retirava-a religiosamente ao final de cada dia da semana. Gostava de mantê-la limpa. Não só pela beleza, mas também porque temia não encontrar quem a consertasse caso algo desse errado. Conservar não é ser retrógrado. Não necessariamente.
Era uma relação de amor unilateral. Amava a bailarina, a música, enfim, a caixinha de música sem que estas lhe amassem. É verdade que, dando corda ao mecanismo, alegrava-se, mas, note, era ele quem deveria acionar a caixa (unilateral, eu dizia…). Mesmo a pequena bailarina, cujo rosto tinha detalhes bem feitos (abençoado foi o artesão de Hong Kong!), sorria-lhe, mas sem amor. Um sorriso artificial, belo, mas sem alma. Ainda assim, ele a amava.
Em suas noites de solidão - e não eram poucas - cultivava este amor imaginando como seria a interação com a bailarina. Tinha com ela diálogos nos quais falavam sobre viagens que fariam juntos, sobre filhos que teriam ou mesmo sobre programas para os finais de semana. Consultava-a, inclusive, sobre o que escolher para pedir no aplicativo de entregas de refeições (e ela nunca lhe recomendava hambúrgueres, embora ele nem sempre seguisse seus conselhos).
Em seus devaneios, imaginava-se brigando com ela por motivos diversos. Em sua maioria, por conta de seus ciúmes. Ciúme de que ela estivesse pensando em outro (geralmente, o vizinho, que malhava todos os dias, no apartamento da frente), ciúme de sua alegria despretensiosa. Ou mesmo o ciúme de suas imaginárias ausências por conta de compromissos com o corpo imperial de balé. Motivos para se sentir enciumado nunca lhe faltaram.
Era tão enciumado de sua bailarina que escondia a caixinha quando recebia visitas. Temia que desejassem não só vê-la, tocá-la, mas tirar fotos com ela. Para isto, reservou uma gaveta de seu armário de roupas, que mantinha cuidadosamente arrumada e acolchoada.
Não só o amar, mas o envelhecimento veio unilateralmente. Ao longo dos anos, tanto cuidou da caixinha que a bailarina permaneceu jovem e bela enquanto ele já não se parecia mais com quem havia sido. Pelo menos, não fisicamente. Em sua mente, era sempre jovem e ágil, um perfeito cavalheiro, pronto para mais uma dança com sua bailarina que, teimosamente, insistia em seu único rodopio de balé clássico, recusando sempre os convites para valsar.
Num dia chuvoso, após muito trabalho, chegou em casa cansado. Ansioso, sentou-se à mesa, largou sua pasta e abriu a caixinha. Sequer café preparou. Nem do lanche trazido da rua se lembrou. Deu corda e viu, pela milionésima vez, o bailado amado.
Aos poucos, a visão da bailarina rodopiando tornou-se turva. Esfregou os olhos e pareceu-lhe que, finalmente, ela lhe estendia a mão, aceitando seu convite. Esfregou os olhos novamente e não teve dúvida. A bailarina, agora, tinha um olhar vivo, apaixonado.
Olhou para a caixinha e teve a impressão de que, sob o espelho, uma orquestra inteira tocava uma valsa. Em resposta, tocou a mão da bailarina e percebeu que tudo havia mudado. Estava com ela, agora, na caixinha de música, sorridente e valsando.
Fosse ou não um sonho, o fato era que dançavam ao som da orquestra sem que ninguém houvesse dado corda. Percebeu que, a partir daquele momento, a felicidade e a valsa seriam eternas.
Pesquisas eleitorais - Acha que é fácil (e barato)? Então considere esta observação do Erik.
Concertos Brasil-Japão - A professora Tamie Kitahara é referência obrigatória na colônia japonesa (e não só em São Paulo). Sou grato a ela por tantas lições sobre a música folclórica e pelo carinho. Eis aí um concerto diferente, em que ela é protagonista juntamente ao brasileiro Camilo Carrara. Para quem gosta de música, é uma ótima pedida.
Sabedoria Tosettica - Eu não teria dito melhor. Olha ele aí. Aliás, a coluna dele na Crusoé de ontem está imperdível.
Humor - Incentivos importam.
Alfabeto próprio - Este chinês inventou os ideogramas ingleses. Ou algo assim. Sensacional!
Errata - No último número desta enviei um vídeo de ‘donpan bushi’ (ドンパン節) dizendo que decorar o refrão sem se confundir poderia ser um desafio (ou só disse metade disto, vai saber). De todo modo, naquele vídeo, por algum motivo, não há o refrão cantado.
Pois bem, corrijo meu erro com este novo link. De brinde, um tutorial de dança para esta música divertida originária da província de Akita.
Por hoje é só, pessoal e…até mais ler!
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