A arte de presentear. Solidão. Haikais. Anita Mui (e um pouco de John Woo e Tsui Hark). Selmocast e eu.
Uma súcia de Críseros não se confunde com a astúcia dos Cíceros, tá ok?
Pois é. Chegou o v(2), n(70) da news. ah, 2022 está chegando ao último trimestre e não consigo pensar que os ipês amarelos já se foram. Sobrou só a campanha eleitoral e a Copa do Mundo. Voltem, ipês! (Hoje (ontem), vi um último, ainda florido!)
Presentes - A arte de presentear. Não sei se existe algo assim. Nem se algum povo de um país remoto é citado como tendo desenvolvido a arte de presentear. Certamente já publicaram algum livro (ou curso nas plataformas digitais) com este título.
Aqui vai, gratuitamente, o que penso sobre a arte de presentear. Ela envolve um exercício emocional simples.
Pense na pessoa a ser presenteada (ainda que você não goste dela, tente descobrir em seu registro de memória, alguma pista sobre os gostos da pessoa).
Vá à loja (virtual ou física) em busca de um presente que combine com este gosto.
Compre e presenteie (e não espere nada em troca).
Observe a reação da pessoa não só no momento, mas por alguns dias (este passo é opcional).
Simples, não? Também acho. Mas sempre que recebo (ou vejo alguém receber) uma caneca comprada em uma loja de R$ 1.99 às pressas, sei que não houve ali uma elevada arte no presentear.
É que nem todos nasceram com o dom de presentear bem. Antes que você defenda a criação de uma educação compulsória, deixe-me dizer que não é uma boa idéia (idéia, não ideia…) ensinar alguém a presentear - da forma como eu expliquei acima, pelo menos - de forma compulsória. Dá para ver que há ali uma certa contradição, não?
Talvez eu concorde com você que, para uma primeira vez, você tenha que ser rígido com o moleque, candidato a aprendiz nesta arte milenar do campo da cortesia e da etiqueta humanas. Depois de uma ou duas vezes, vá lá, ele aprenderá e será mais candidato a mestre na arte de presentear do que um destes pérfidos que presenteiam as pessoas com canecas decoradas com gravuras de baixa resolução (e note como seu sangue ferve ao cogitar a idéia de ganhar uma).
Sempre achei divertido gastar (gastar mesmo, não investir...é divertido se perder na busca de um bom presente) um tempo tentando entender a pessoa a ser presenteada. Também sei que nem sempre temos tanto tempo como gostaríamos. Agora, é óbvio que, em média, um sujeito que dá mais canecas baratas do que outros presentes é alguém desprovido do senso estético necessário para o bom exercício da enobrecedora arte de presentear.
Enfim, vale lembrar que presentear amigos, espontaneamente, mesmo que fora de uma data qualquer, não faz mal à sua alma. Não precisa esperar por uma data específica. Espontaneidade pode ser uma boa qualidade, às vezes. E se você não quer que outra alma se incomode, pratique a arte de presentear tal como aqui resumida (ou pelo menos considere os meus insights). Garanto que você não se arrependerá.
p.s. tentei caprichar no texto, leitor. Era para ser um presente para você. Espero que não tenha ficado ruim.
p.s.2. pode-se também pensar em termos econômicos (o custo de oportunidade do tempo), mas, mesmo na Economia, não existe apenas um modelo para explicar como empregar de forma eficiente seu tempo para comprar presentes. Os leitores mais acostumados com o tema (e mais antigos, que leram o livro-texto de Stigler) pensarão logo no exemplo de George Stigler sobre o tempo ótimo para se comprar um bem. Mas há também aquela questão do embrulho do presente (que sinaliza certo carinho…). Enfim, para mais detalhes, precisaríamos de outra conversa...
Solidão - Sentou-se no bar. Os amigos, novamente, cancelaram a parceria na resenha no último minuto. Mais uma vez estava só. Seriam ele e, como dizem, suas circunstâncias. Conformado e triste, pediu uma dose de whisky. Iludiu-se com o fato de que este seria de elevada qualidade, da mais alta estirpe da aristocracia escocesa. Claro que não o era e ele sabia disto. Mas preferiu acreditar na ilusão. Afinal, eram ele e suas circunstâncias…
O garçom lhe trouxe o copo, o dosador e, claro, deu-lhe um chorinho generoso (uma inequívoca prova de que aquilo seria tudo, menos um whisky de qualidade). Pouco importava. Nas calçadas, já escuras, via-se cada vez menos transeuntes. Perdido em um mar (calmo, não revolto) de pensamentos lúgubres, quase não notou as duas moças que permaneciam no ponto de ônibus na calçada oposta, já há muito tempo.
Seus pensamentos depressivos deram lugar a uma súbita solidariedade. Sentiu pena das duas. Xingou, mentalmente, o prefeito, arquiteto daquele horrível sistema de transporte coletivo, e seus asseclas, os políticos. Malditos fossem! Deu um gole furioso de seu whisky barato. Já não pensava nos amigos ou na solidão que sentia. Sentia-se como um imaginário pai das duas garotas, preocupado com a demora das duas.
Prestando mais atenção nas moças, imaginou que o pai de ambas (ou de uma delas) havia chegado. É que viu delas um carro se aproximar. Seria o fim daquela situação aflitiva? Sentiu-se feliz, aliviado pelas moças. No silêncio de sua mesa solitária, agradeceu a Deus pelo fim da (imaginada) angustiante espera. Voltou sua atenção para o cardápio, feliz com o provável desfecho. Já até pensava em pedir um petisco. Carne de sol, talvez?
Sentia uma genuína alegria e quis conferir se o final da história seria feliz. Quase deixou cair o copo: as duas ainda estavam lá. Desolado, pensou que, apesar dos aplicativos de celular, alguns motoristas mais velhos ainda recorrem à consulta aos transeuntes. Ah, a idade…certamente teria sido o caso. Mas, puxa, custava ter um bom celular? Ocorreu-lhe que, talvez, fosse isso mesmo. Afinal, cada motorista também é ele mesmo…e suas circunstâncias.
Enquanto pensava sobre os problemas da pirâmide etária brasileira, a tecnologia e as circunstâncias, não notou que sua dose de whisky já se fora. Colocou dois dedos no copo e começou a se divertir com as pedras de gelo. Não resistiu. Olhou novamente para a rua e notou que um outro carro havia parado.
Pensou que poderia estar ocorrendo um evento na cidade. Não um evento local, mas estadual. Olhou para o copo e sorriu, feliz com sua hipótese. Sentiu-se renovado. Não era todo dia que elaborava hipóteses tão inteligentes. Isso! As moças, como boas cidadãs, estavam mesmo dando informações aos visitantes. Que espírito cívico! Pensou ter percebido que as moças também sorriam. Olhou para o copo e também pensou ter recebido um sorriso da última pedra de gelo.
Foi então que percebeu o que realmente ocorria e a solidão voltou a ocupar seus pensamentos. Caiu em si (suas circunstâncias também caíram em si). A última pedra de gelo só não caiu em si porque virou água. Alguns minutos depois, em troca de um punhado de dinheiro, em algum ponto distante (eis as outras circunstâncias…), roupas (íntimas ou não) também cairiam dentro de um dos carros.
Pediu ao garçom a segunda dose. Desta vez, desconfiou da qualidade do whisky.
Haiku (ou Haikai) - Eu sabia que havia me esquecido de mencionar no episódio do FiBoCa. Mas eis uma lista mais completa das variações temáticas dos haiku.
A more realistic estimate would be half a dozen major modes: (1) senryū (overtly comic haiku); (2) bareku (dirty sexy haiku, too often dismissed as an offensive subcategory of senryū); (3) maekuzuke (haiku verse capping, further divisible into copious modes, as per Glossary); (4) zappai (seasonless miscellaneous haiku; when taken out of context, often mistaken for seasonless senryū); (5) hokku (initiating stanzas, the model among traditionalists for the modern haiku); and (6) hiraku (‘ordinary stanza’; by virtue of its season word and cut habitually mistaken for the hokku, and therefore also sometimes an inadvertent model for the modern haiku, though falling within a linked sequence instead of initiating one and less beholden than the hokku to the imperative of gravitas). [The Penguin Book of Haiku (Penguin Classics). Adam L. Kern]
Os mais divertidos são os senryuu (descobri por estes dias que o nome veio do….nome de uma haikaísta). Ah sim, e todos, se não me engano, seguem a tradicional métrica 5-7-5.
Eu sei que há uns haikais feitos em outras línguas que não a japonesa, mas não entendo bem como se faz com a métrica. Lembre, leitor, que não sou um homem das Letras (o que explica o excesso de ‘le’ nesta frase, acho)…
p.s. Não são haikais, mas os poemas em estilo chinês do general Marusuke Nogi merecem menção e podem ser encontrados neste link. Aliás, leia o verbete todo e veja, aqui, a tradução de seu último poema, escrito quando de seu suicídio após a morte do imperador Meiji.
Anita Mui - Eu a vi em A Better Tomorrow III, o filme que marcou o início do afastamento de Tsui Hark e John Woo (eles levariam anos para retomarem sua amizade…se é que retomaram verdadeiramente a amizade).
Woo e Hark faziam uma dobradinha ótima de produtor/diretor em vários dos filmes clássicos de John Woo. A Better Tomorrow I e sua continuação marcam também o momento em que Chow Yun Fat começa a se destacar no cinema asiático. São filmes incríveis se você gosta de filmes de ação, claro.
Mas quando Woo se preparava para escrever sua história para o terceiro filme, Hark lançou seu A Better Tomorrow III (mais tarde, Woo aproveitaria sua história, alterada, claro, em seu A Bullet in the Head, aliás, um ótimo filme).
Voltando à Anita Mui, ela se apaixonou por um famoso jogador de futebol inglês, mas não foi correspondida (quem nunca, né?). Seu último show, meses antes de falecer, finaliza com sua interpretação da música ‘O Sol do Entardecer’ (夕焼けの歌, no original japonês, interpretada por Masahiko Kondo. Em chinês: 夕陽之歌, letra de Ozu Akira e melodia de Mark Davis), que é a música tema do ABT III. Sabendo que estava doente e que não iria se casar, ela se apresentou vestida como noiva.
A quem interessar possa, ei-la cantada por Anita Mui, aqui, com legendas em chinês e japonês. Cá entre nós, ela canta muito melhor que Kondo san…
p.s. Nomes dos filmes em português? A Better Tomorrow virou Alvo Duplo e Bullet in the Head é Bala na Cabeça mesmo.
This is just in! - Já tinha fechado este número quando, bem, o Selmo colocou no ar (olha que está flutuando aí perto de você) a conversa que tivemos recentemente. Foi uma honra. Quem assistir tudo poderá, além do ótimo bate-papo, notar uns trechos divertidos (o Selmo caiu umas duas vezes e eu fiquei no ar sozinho. Sem mais spoilers.).
Por hoje é só, pessoal e…até mais ler!
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A escolha do presente foi um presente… obrigada! A Frajolinha eternizada está na Enap?